Diário do México #5 | A Palavra Nahuatl em Chamas

As coincidências das datas da rendição dos indígenas e da festa do Carnaval se suspenderam, e sua relação nebulosa se impregnou em mim

Mais de um mês longe de casa. O Carnaval chegou no Brasil e aqui eu começo a sentir saudade. Da movimentação dessa data, do calor, do feriado (especialmente do feriado, já que o trabalho por aqui só aumenta) e da comida. A comida mexicana é saborosa, tem tudo, para todos os gostos, um pouco como a brasileira, mas a saudade do simples arroz e feijão, da “mistura” bem temperada, da batata frita… Aqui tem tudo isso, mas sempre com sabor diferente. O Centro Cultural Brasil-México, financiado pela embaixada brasileira no México, anunciou um Carnaval brasileiro. Na verdade, o que mais me chamou a atenção nesse anúncio foi: “comidas típicas”. Já estava preparada para ir lá no sábado, segundo dia em que as escolas de samba desfilavam em São Paulo, quando surgiu a possibilidade de uma viagem à Tepoztlán, cidade a 50 quilômetros da capital, já no estado de Morelos, com meus novos amigos argentinos. O fato de a viagem ser barata contou muito, pois, um mês após minha chegada, ainda não recebi a bolsa de estudos que me foi outorgada.

Tepoztlán me lembrou as cidades coloniais brasileiras. Chão de pedra, casas baixas, varandas cercadas por grades de ferro. E, rodeando a cidade, uma montanha que lhe dá um ar de clima temperado, ainda que faça mais calor do que na capital, diferenciando-se sobremaneira das nossas cidades históricas, em sua maioria, envoltas em mata tropical. No topo da montanha, a pirâmide de Tepozteco, antigo templo dos aztecas que habitaram a região até a chegada dos espanhóis. Hernán Cortés instalou-se em Cuernavaca, cidade muito próxima à Tepoztlán, devido ao fato de a região ser estratégica pela fertilidade de suas terras e seu fácil acesso. Essa importância conferida pelos espanhóis já antecipa muito do que se segue.

A cidade, de aproximadamente 25 mil habitantes, está bastante povoada por estrangeiros. Foi caminhando em suas ruas que encontramos uma placa tímida em frente a uma portinha que dizia “Xangaroó, restaurante brasileiro”. Quase sem esperar meus amigos, entrei, segui por um corredor cujas portas laterais davam para lojas de artesanato e, no final desse corredor, se abriu um pequeno jardim, com mesas e cadeiras de madeira. Novamente um cartaz anunciando a comida de casa. Passando pelo jardim, entrei na casinha de madeira, uma pequena cozinha e uma sala com berimbau, bongô e um cajón peruano. Sentada a um canto estava Rosana, acreana que se instalou no México em 1988 e que, junto com um sócio italiano, toca o restaurante em Tepoztlán.

Foi nesse restaurante que soubemos dos movimentos realizados pelos moradores da cidade contra o desmatamento da região, em especial, da montanha que abriga o antigo templo indígena. Ouvimos ecoar também um certo desdém em relação aos turistas – sempre “eles”, nunca se referiam a nós, brasileira e argentinos que, afinal, também éramos turistas. O Carnaval da cidade foi pintado com cores de desprezo, devido à atração de uma multidão que não se importava de verdade com o que ocorria por ali. E pouco depois de dizer isso, uma amiga de Rosana, uruguaia, quem a ajudou a nos preparar escondidinho de carne e caipirinha, apontou assustada o topo da montanha que despontava por cima do telhado. O fogo a tomava. As sul-americanas reforçaram o fato de que as autoridades tardavam sempre em atuar, mais preocupadas com a organização do Carnaval, e a montanha queimava, enquanto eles, os turistas, lotavam as ruas do pueblo.

Após comer, nós também fomos em busca deste Carnaval. Esquecemos da montanha que ardia. E não encontramos a multidão temida pelas estrangeiras, não turistas, no restaurante brasileiro. Encontramos crianças fantasiadas, pessoas comendo tacos e um pequeno parque de diversões armado para a festa, contrastando sua montanha russa com a montanha de verdade às suas costas. Na manhã desse mesmo dia, nós visitamos a montanha de verdade, 400 metros de subida pedregosa e íngreme, para chegar ao templo de Tepozteco. Um argentino, sócio de um outro bar da região, nos havia alertado que subiríamos mais de uma hora para nos deparar com uma pirâmide muito pequena. Foi justamente a modéstia desse templo o que mais me chamou atenção nessa viagem.

A pirâmide feita ao semideus Tepoztécatl era realmente pequena em comparação com as ainda desconhecidas pirâmides de Teotihuacan, por exemplo. Apesar disso, devido a este semideus representar entre outras coisas, a fertilidade, muitos sobem até lá com objetivos místicos. O funcionário do parque arqueológico instalado no local nos advertiu que ali em cima aparecia de tudo, desde casais preparados para fazer sexo, até pessoas amanhecidas em algum bar da região que decidiam acabar a festa no templo azteca.

A tradição por detrás daquelas pedras teria desaparecido, realmente. E, tal fato tivera um início pontual, em um 7 de setembro, nos anos 30 do século XVI, quando Cortés rendeu o maior sacerdote do templo e o obrigou, juntamente com todos os habitantes da região, que fosse batizado. O estrangeiro ressignificou a tradição. Aquele funcionário ainda nos disse que em Tepoztlán se comemora o 7 de setembro, que seria um dia festivo, como aquele Carnaval que nos esperava lá embaixo (as coincidências das datas da rendição dos indígenas e da festa do Carnaval que ocorria naquele momento se suspenderam, e sua relação nebulosa se impregnou em mim).

O funcionário ainda nos contou sobre Cuernavaca, onde está o palácio em que se instalou Cortés, além de outros detalhes sobre a dinâmica da colonização, os antigos rituais indígenas, até a atual presença dos narcos em Cuernavaca. Era realmente simpático e com vontade de contar tudo o que sabia. Perguntamos seu nome. Era um nome nahuatl que significava homem que veio à terra para fazer amigos. Trago apenas a tradução, pois a palavra nahuatl ficou esquecida no topo da montanha de Tlahuiltepec, junto com seu pequeno templo. De volta à capital, ainda soubemos da morte de dois bombeiros que tentaram conter o incêndio na montanha. Talvez ela se vingue, de alguma forma, de tanto esquecimento e exploração.

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