Diário do México #4 | Eles estão vivos

O nome Rulfo ganhava vigor, vitalidade, ocupava um lugar à mesa

Vim para a Cidade do México porque me disseram que aqui vivia o escritor que estudo, um tal Juan Rulfo. Na verdade, ele faleceu em 1986, e suas duas obras canônicas, o livro de contos O chão em chamas (El llano en llamas) e o romance Pedro Páramo foram lançados na primeira metade da década de 50. Depois disso, o autor não publicou mais literatura. Em 1980, realizou-se aqui na capital mexicana, no Museo Nacional de Bellas Artes, uma exposição de suas maravilhosas fotografias. Era, portanto, também, um fotógrafo de qualidade. E foi isso que se conheceu de toda a sua obra até bem pouco. Foi isso que conheci também até antes dessa viagem. Já aqui, me deparei com outras obras de Rulfo, em livros da Biblioteca Central da Unam, cujo mural feito à maneira de mosaico com pedras de diversas regiões do México, pelo artista e arquiteto Juan O’Gorman junto com Gustavo Maria Saavedra e Juan Martínez, toma todo o prédio de doze andares de livros e salas de estudos. Há ali diversos livros com outras fotografias de Juan Rulfo (até o momento, tive contato no Brasil com o 100 Fotografias, publicado pela Cosac Naif, o Juan Rulfo photographer, versão em inglês de uma edição espanhola com outras tantas fotografias e o Oaxaca).

Também me deparei com um livro editado pelo diretor da Fundação Juan Rulfo, Victor Jiménez, quem faz parte da bibliografia da minha dissertação, Alberto Vital, o professor que assessora meu intercâmbio e biógrafo de Rulfo e Jorge Zepeda, jovem doutorando que se especializou na recepção das obras escritas do mexicano. Nesse livro, me deparei com obras que me eram completamente desconhecidas, publicadas a partir dos manuscritos do escritor-fotógrafo. Primeiro, uma tradução do poema “Elegias a Diuno”, de Maria Rainer Rilke, feita por Rulfo a partir de outras duas traduções do alemão para o espanhol, depois, anotações sobre algumas construções arquitetônicas do México. E, enfim, o texto “Castelo de Teayo” (Castillo de Teayo), uma espécie de conto em que o narrador é o próprio Juan Rulfo quem viaja em busca das ruínas desse castelo, localizado em um povoado em Veracruz. Nenhuma de suas demais obras escritas simulam ao leitor a consonância entre autor e narrador que se encontra em Castillo de Teayo. Nunca Juan Rulfo me falou tão diretamente como através deste pequeno conto. Sabia que aqui sentiria maior proximidade com seus estímulos, com seus motivos, mas não esperava que fosse “ouvi-lo” tão diretamente na voz de narrador literário (não me refiro àquela voz das cartas à Clara Aparício, publicadas no livro Aire de las Colinas, em que a voz de Rulfo se dirige direta e unicamente a sua eterna amante). Pelo instante em que durou aquela leitura, Juan Rulfo reviveu. Ainda, nessa semana, após essa leitura maravilhosa (em todas as concepções que a crítica da literatura latino-americana vem bombardeando essa palavra) fui convidada para um almoço, pelo professor Vital, com uma especialista nas fotografia de Rulfo e com o arquiteto Victor Jiménez. Uma das frases de Jiménez a respeito da obra literária e fotográfica de Rulfo foi a responsável pelo desenvolvimento de minha pesquisa. E lá fui eu, conhecê-lo.

Nos encontramos em um restaurante espanhol (o que só sensibilizou minha habilidade, ainda que precária, de fazer relações; não pude deixar de pensar na ironia de discutirmos Juan Rulfo em um restaurante, enfim, criollo). Victor Jiménez e a doutoranda Paulina Villán Vargas já estavam sentados à mesa quando cheguei. O professor Vital nos apresentou. Até mesmo o “hola, mucho gusto” que eu disse ao arquiteto me pareceu ignorante. Sentei-me entre a doutoranda, mais jovem e com quem criei uma simpatia imediata, e o professor Vital, quem já conhecia. Escolhíamos a comida no cardápio em que tudo parecia saboroso quando chegou um senhor de cabelos de um branco brilhante, óculos de lentes redondas e aro de metal fino à frente dos olhos mel que ajudavam a compor sua expressão simpática. Era Pablo Rulfo, um dos três filhos de Juan Rulfo. Sentou-se ao meu lado, no lugar que lhe ofereceu o professor Vital. Nem preciso dizer que fiquei quase totalmente muda nesse almoço. Falava apenas quando era imprescindível. E ouvia, porque me pareceu que o que mais me beneficiaria naquele momento era ouvir aquelas pessoas, aqueles nomes de bibliografia que na maioria das vezes (sempre, no meu caso) nós estudantes associamos a nomes de mortos. E eles mencionavam Rulfo: “tu padre sacó aquellas fotos, te acuerdas?”, “sí, pero era muy chiquito cuando las tomó”. O nome Rulfo ganhava vigor, vitalidade, ocupava um lugar à mesa. Ali, ao meu redor, naquele banquete platônico, todos estavam vivos. Diferente da surpresa que revela a leitura de Pedro Páramo, fui tomada por uma surpresa totalmente oposta. Eles estavam vivos! E me senti mais viva também, com ainda mais vontade de estudar, de conhecer, de saber e de continuar a adentrar esse caminho fantástico que escolhi, o de lidar com as obras de Juan Rulfo.

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