De Dom Quixote e de moinhos ou Entre a literatura e o social

A literatura não se separa da esfera social, mas também não se subsume a um discurso panfletário

Como não poderia deixar de ser, por sua própria essência, a literatura sempre causou grandiosas polêmicas. Aos moldes de um movimento cíclico, isso se repete hoje, trazendo, principalmente aos palcos universitários, a querela da aceitabilidade do caráter social da literatura. Nesse cenário, evidenciam-se majoritariamente dois grupos que se digladiam na tentativa de assumir o papel de protagonista. O primeiro grupo advoga que o texto literário teria uma ligação com a sociedade, sendo, portanto, veículo de ideologias e projetos políticos marcados historicamente. Já o segundo grupo, com certa razão, critica nessa visão o fato de se colocar o objeto estético em segundo plano, dando primazia ao panfletário em detrimento daquilo que seria específico do texto ficcional.

Na esteira dessa discussão, vêm à tona projetos polêmicos como o impedimento da circulação de obras de Monteiro Lobato em escolas, ou a alteração de seu conteúdo sob a acusação de deixarem transparecer ideias racistas. De modo semelhante, o panorama internacional apresenta, por exemplo, denúncias contra obras como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, ou contra os livros de Mark Twain, alegando serem portadores de ideias socialmente suspeitosas. Não é preciso dizer que tais propostas são minimamente questionáveis. No entanto, esse tipo de posicionamento extremista invalidaria o traço social da literatura? Ou pode-se dizer que ambos os grupos assumem lugares extremistas?

Uma polêmica desse âmbito cria questões que parecem ecoar através dos tempos em um transcurso histórico que se guia até a Antiguidade Clássica. Nesse tempo, em que as peças reuniam os habitantes das “polei” em torno da encenação, a catarse era um elemento artístico que tinha por função purgar os males dos espectadores, de modo que estava estritamente ligada à ideia de aretê, virtude, excelência humana. As peças estão, portanto, inseridas em um contexto sócio-histórico determinado, no qual os valores vigentes estão indubitavelmente presentes. Também no universo latino, os versos de Horácio são emblemáticos a esse respeito, pois já oferecem o cerne da ligação entre o elemento estético e um projeto pedagógico da poesia: “Aut prodesse volunt aut delectare poetae” (os poetas ou querem ser úteis ou deleitar). Por esse prisma, avançando alguns séculos, tem-se a magnânima obra de Miguel de Cervantes, Dom Quixote, que tinha um projeto pedagógico bem demarcado de acordo com os costumes da época, mas que pelo seu valor estético atinge os tempos atuais como uma da obras mais lidas, citadas e comentadas.

Observar essas obras que se perpetuam ao longo dos tempos permite notar o intrigante fato de que elas sobrevivem mesmo distantes de seu contexto sócio-histórico-político de origem. Fugindo de uma afirmação idealista da imortalidade da literatura, talvez possa se dizer que a tragédia, por exemplo, ainda hoje representa a perplexidade de um sujeito frente aos valores sociais e culturais que o cercam. Naturalmente, essa seria uma leitura moderna de um texto antigo, posto que naquele período a ideia de individualidade assumia uma configuração diferente, considerando a inserção do sujeito em um todo social que o constituía e do qual não se separava. Mas é justamente essa possibilidade de romper os horizontes do tempo admitindo diferentes leituras que faz rica a experiência literária.

Isso pode trazer à discussão outra perspectiva que permita associar o social ao estético sem exclusivismos ensimesmados. O imbricar de uma obra a uma conjuntura social não impede que se tenha uma elaboração formal sofisticada de seu texto, possibilitando uma outra experiência de mundo que não seja subserviente a imposições ideológicas. No caso de Dom Quixote, por essa perspectiva, seria possível perceber uma dimensão existencial nas atitudes do engenhoso cavaleiro que, não discernindo bem entre a realidade e o delírio, acaba por levar à reflexão sobre os limites entre estes dois domínios.

Não são apenas as obras canônicas da antiguidade que revelam essa potencialidade. Em um contexto mais recente, estão presentes as obras de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, dois exemplos de como o registro textual esteticamente elaborado viabiliza a observação de certas mazelas e injustiças sem se ater simplesmente a isso. No conto de Clarice Lispector, “A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais”, também se pode perceber como uma visão de determinado aspecto da sociedade pode levar a uma reflexão mais ampla e mais complexa. Nele, uma mulher que acaba de sair do cabeleireiro se depara com um mendigo a lhe pedir esmola. Exposta a ele, a mulher, de uma classe social privilegiada financeiramente, percebe que o pedinte tinha uma enorme ferida na perna. Isso a incomodou profundamente, pois, isolada em seu círculo de convivência, ela não tinha contato com esse tipo de miséria. O texto se desenvolve a partir da demonstração da alienação daquela mulher somada ao seu contato com o mendigo, de modo a construir uma reflexão existencial. Então, a ferida que o homem lhe expõe e que lhe incomoda é a sua própria ferida, a sua falta constitutiva, e é também a ferida da sociedade e do leitor.

É claro que nada impede que um romance, conto ou poema tenham um projeto político mais estritamente demarcado. Isso ocorreu com frequência nas criações do período da Ditadura Militar ou nos movimentos pró-independência realizados em alguns países africanos, por exemplo. Mas o seu valor não reside exatamente nesse fato, caso contrário estaria se tratando de um manifesto político-governamental ou de um ensaio de sociologia. Nesse caso, cabe observar qual a especificidade que o impacto estético pode dar ao tema, conciliando o bojo social e o tratamento formal da obra de arte. Afinal, é isso o que se observa em um trabalho como o elaborado por Portinari no quadro Os Retirantes.

Os Retirantes, de Cândido Portinari

O trabalho com as cores quentes nesse quadro potencializa a percepção sobre a miséria presente em uma terra árida e quente. Além disso, as imagens cadavéricas dos retirantes arrancam o homem de sua humanidade. Desse modo, eles são jogados numa contagem regressiva rumo à morte, que se apresenta na imagem do alfanje constituída pela união da figura do urubu e do cajado.

Sob tal perspectiva, a literatura poderia ser comparada imageticamente às batalhas do fidalgo Dom Quixote. Lutas loucas contra moinhos gigantes, mas que exatamente pela loucura de misturar a realidade e a ficção, as quais são efetivamente inseparáveis, perpetuam-se pelo espaço e tempo. Portanto, diferente de como visualizam alguns dos personagens dos dois grupos antagônicos que visualizam a literatura como algo que se refere simplesmente ao social ou algo fechado em si mesmo, é possível conciliar essas duas faces sem extremismos, o que pode ser notado em trabalhos de grandes teóricos como Antonio Candido ou Costa Lima.

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