Bueno de Rivera: um surrealista na geração de 45

Um mergulho no inconsciente, uma poesia intimista. Bueno Rivera e seus profundos devaneios poéticos

Um poeta seduzido pela vertiginosa profundidade de um poço ou exalando suspiros em bolhas em angustioso afogamento: assim nos é apresentado Bueno de Rivera na poesia asfixiante de suas duas primeiras obras, Mundo Submerso (1944) e Luz do Pântano (1948). Nascido em 3 de abril de 1911 na cidade de Santo Antônio do Monte, no interior de Minas Gerais, o poeta se mudou ainda jovem para Belo Horizonte, sobre a qual editaria o famoso Guia Rivera. Na capital, se envolveu com variadas atividades, dentre as quais destacam-se as profissões de microscopista e de locutor, sempre citadas em sua poesia.

Sua obra poética, apesar de não ser extensa, pois além dos dois citados livros publicou apenas mais um, Pasto de Pedra (1971), é valiosa e densa. A publicação do primeiro livro coincide com a formação da geração de 45, enquanto a do segundo está nela imersa. Os poetas pertencentes a essa geração, na qual foram estendidas as conquistas da geração modernista de 30 e em que se destacaram preocupações com o social, são caracterizados, segundo João Cabral de Melo Neto, pela filiação a um poeta mais antigo. No caso de Rivera, é nítida sua filiação à obra poética de Drummond, principalmente à chamada fase social de sua poesia, sendo-nos possível identificar, inclusive, surpreendente semelhança de imagens entre as escritas de ambos.

A originalidade de Rivera, entretanto, está muito mais na face intimista de sua poesia do que em sua face social. Intercalada àquela que poderíamos chamar, talvez, de “escrita do locutor”, que dirige à coletividade seu apelo solidário, está a “escrita do microscopista”, cujo olho espreita a intimidade de sua memória e de seu inconsciente:

És o múltiplo, o das sete profissões.
O microscópio à direita, um olho imerso
no mistério da lâmina.
À tua esquerda, o microfone, surdo
ao teu apelo solidário.

Essa poesia intimista, que chamamos aqui de “escrita do microscopista”, traz um aspecto intrigante e recorrente: as temáticas ligadas ao poço e ao afogamento, que originam uma atmosfera asfixiante em seus versos, pois sendo geralmente “curtos, quando longos bastante sincopados, as imagens superpostas gradativamente, lembram a respiração do afogado, difícil, entrecortada de sustos e soluços”, como aponta Affonso Ávila. Esse tema recorrente na poesia de Rivera nos remete à sua experiência de quase afogamento em um poço na infância, que o marcou profundamente. A própria solenidade com a qual o poeta se debruça sobre o poço nos mostra um ato quase ritualizado, sugerindo que a experiência traumática da infância seria constantemente revisitada pela memória, agora transfigurada em palavra poética:

Amigos, silêncio.
Estou vendo o poço.

No fundo profundo eu me vejo
presente. Não é
a cacimba de estrelas. Amigos, é o poço.

É justamente dessa experiência traumática que, segundo Affonso Ávila, “vêm os consequentes desarranjos psíquicos no sono, nessa determinante que nos leva a supor quase o surrealista”. A essa constatação do crítico sobre a presença do surrealismo no sono agitado e nos terrores noturnos desencadeados pela experiência de quase afogamento, acrescentamos que a justaposição de imagens poéticas sem aparente vínculo racional, como se estas fossem um jorro do inconsciente, e ainda a livre associação de ideias, que remete aos devaneios febris de uma mente atormentada pela lembrança traumática, são também traços surrealizantes fortemente presentes na poesia de Rivera:

Apenas o poço. A vela na lama
Como um dedo de fogo.
Ânsia de afogado, suspiros em bolhas.
O susto no sono.
A sombra descendo sobre os aposentos,
O suor nos espelhos. A sombra
Abafando a criança, a sombra fugindo.

Essa imagem repleta de significações, em que o poeta se debruça sobre o poço, teria, inclusive, uma projeção em sua profissão de microscopista, cujo olho espreita através do tubo do microscópio. Por isso chamamos sua poesia intimista, anteriormente, de “escrita do microscopista”, pois é possível verificarmos uma identificação entre os dois temas, com o poço sendo uma espécie de maximização da figura do microscópio. Isso pode ser comprovado pela mesma solenidade, já revelada no ato de olhar o poço, com que o poeta escreve sobre a atuação do microscopista:

O olho no microscópio
Vê o outro lado, é solene
Sondando o indefinível.

Em prefácio à seleção dos Melhores Poemas de Bueno de Rivera (2003), Affonso Romano de Sant’Anna atesta que as duas primeiras obras do poeta mineiro trazem “uma poesia marcadamente surrealista e os títulos desses livros dizem muito bem desse mundo submerso, subterrâneo, dessa luz difusa sobre as pantanosas águas do tempo. Há uma atmosfera onírica, mágica, lúgubre, que pode lembrar pinturas de Salvador Dalí ou Max Ernest.” Vemos um exemplo dessas imagens surreais no poema “Canção do sono”, publicado em Luz do Pântano (1948):

Uma rosa flui no espaço.
É a lua ou a canção do bêbado?

Rivera, ainda que pertencente cronologicamente à geração de 45, apresenta esse surrealismo nos temas e também na forma de sua poesia. Isso atesta que é errado supor uma ausência do surrealismo no Brasil apenas por não ter havido um grupo que assim se autodenominasse, já que “a ausência de normas ou de imposição de regras no surrealismo dificilmente constituiria um grupo oficial, como nunca constituiu”, conforme ressalta Sérgio Lima. Essa foi a feição do surrealismo no Brasil, pois não se restringiu à época das vanguardas, mas atuou através de ecos em vários autores dos anos 20 em diante.

Sobre esses traços surrealistas em Rivera, temos, inclusive, um poema publicado em Mundo Submerso (1944), “O bêbado no cemitério”, que traz a técnica da escrita automática. Essa proposta dos surrealistas de uma escrita na qual a razão e sua ordem não interferissem nas livres associações do inconsciente é utilizada pelo poeta para reproduzir uma livre conexão de ideias realizada em um estado de embriaguez:

Ó mesa branca mar de mármores túmulos copos bigodes e espumas
fantasmas mundo disforme rolando na vitrola imenso bar na madrugada frio
na testa longos pensamentos desfiando nas mãos que procuram apoio no espaço
o insolúvel espaço sem amigos sem berços (…)

Tais reflexões atestam o fascínio e o mistério desse abismo que seduz os leitores da poesia de Rivera para que, com o poeta, espreitem a escuridão do poço. Fica, portanto, o convite para a leitura de seus poemas e a espera de que haja uma reedição das obras desse surrealista preocupado com o social, poeta mineiro e universal, Bueno de Rivera.

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa