Quando o indivíduo toma para si a responsabilidade de espalhar cultura
O Governo Federal, pelo programa Mais Cultura, prometeu zerar o número de municípios sem bibliotecas. De acordo com o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, 661 cidades não possuem esse tipo de equipamento. Mas o projeto estatal não é o único a se esforçar pela difusão cultural. No segundo semestre desse ano, comemoram o primeiro aniversário duas iniciativas individuais nesse sentido: a Biblioteca Carmelinda Guimarães, em Goiás, e a Biblioteca Pote de Mel, no Paraná, são resultado do que poderíamos chamar de ativismo cultural — o indivíduo toma para si a responsabilidade de espalhar cultura, e espalha.
Em Goiânia, a Biblioteca Municipal de Artes Cênicas Carmelinda Guimarães, feita com “verba zero e muita vontade”, de acordo com seu criador, Gilson Borges, tem seu primeiro aniversário neste mês de agosto (27). Na homenagem do título, na história de sua criação e no percurso de Borges, existem marcas do esforço pela cultura. Segundo ele, “Goiânia conta, atualmente, com um curso de Artes Cênicas, da Universidade Federal de Goiás, e diversos grupos de teatro, que tem feito um excelente trabalho, sem, no entanto, ter muita opção de acervo para desenvolver suas pesquisas. Por isso decidi levar a ideia adiante”.
Borges é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Novo México (EUA). Estuda Biblioteconomia na UFG e é editor-assistente da revista Pesquisa Agropecuária Tropical, da Escola de Agronomia e Engenharia de Alimentos da universidade. Publicou em 2008 Teatro Goiânia: História e Estórias, sobre o primeiro teatro construído na cidade, em 1942. “Um dia conheci o ator e diretor João Bosco Amaral, que havia sido recém-contratado para dirigir a Casa das Artes, espaço mantido pela Secretaria Municipal de Cultura de Goiânia para ensaios, oficinas e apresentações. Ele ficou bastante entusiasmado com o projeto [da biblioteca] e me convidou a colocá-lo em prática”, diz ele.
Para a formação do acervo, reuni os livros que já estavam no local, aos quais juntei muitos livros que já possuía e comecei uma campanha de pedidos de doação. Conseguimos um espaço na Casa das Artes, que foi limpo e pintado. Para comprar estantes, vendi livros de outras áreas, que não partilhavam o mesmo assunto do acervo, nos sebos de Goiânia.
O projeto previa a contratação de um bibliotecário mas, até hoje nenhum foi contratado. Tudo o que conseguimos foram dois funcionários, que hoje permitem que a Biblioteca funcione de segunda a sexta, das 8 às 20h. Em vista disso, assumi toda a organização e processamento do acervo, através de trabalho voluntário. O espaço foi inaugurado com cerca de mil itens, entre livros, CDs, CD-ROMs, DVDs, fitas VHS, revistas e trabalhos acadêmicos. Com a campanha contínua por doações, juntamente com permutas que fiz com outras bibliotecas especializadas na área (Galpão Cine Horto (MG); Teatro Alfa (SP); Trip Teatro (SC); SBAT (RJ); Escola Livre de Teatro (SP) hoje temos mais de 1500 itens.
A biblioteca foi batizada com o nome de Carmelinda Guimarães, “crítica teatral que começou sua carreira no A Tribuna, de Santos, substituindo Pagu, que havia sido presa”. Borges afirma que Carmelinda “escreveu críticas para o Estado de S.Paulo, e diversos livros, dentre eles um sobre Antunes Filho e outro sobre a Cia. de Teatro Martin Cererê, do diretor goiano Marcos Fayad. Desde que mudou-se para Goiânia, ela tem sido um exemplo de incentivo ao teatro em Goiás, divulgadora do teatro goiano em outros estados”.
Sempre de acordo com Borges, “o acervo da Biblioteca já está todo tombado e classificado e estou, agora, concluindo o processo de catalogação. O próximo passo será informatizar o acesso ao acervo. Para isso, consegui autorização da Embrapa, para utilizar, gratuitamente, o programa de gerenciamento de bibliotecas Ainfo, por ela produzido”.
Mas não pára por ai. “A próxima etapa do meu trabalho inclui a organização de um banco de dados do teatro goiano. Para isso, estou reunindo material apresentado em festivais de teatro em Goiânia, como o já tradicional Goiânia em Cena, que ocorre sempre em outubro, e o I Festival Nacional de Teatro de Goiânia, que ocorreu no último mês de maio”. Borges conclui: “Felizmente, os meus esforços tem rendido frutos”.
Pote de Mel: pegue um livro, devolva quando quiser
Alessandro Martins, jornalista, autor de Livros & Afins e uma série de outros blogs, conta que do costume de tomar um café na Panificadora Pote de Mel acabou surgindo a ideia de fazer uma biblioteca naquele local. No blog, Martins escreveu: “Chega uma idade em que você descobre que não pode mudar o mundo inteiro. Basta mudar um pedaço dele, aquele que cerca você. Já é o suficiente e, ao mesmo tempo, não é pouca coisa”. Um ano depois, completando seu primeiro aniversário em julho passado, a biblioteca foi usada por centenas de pessoas e recebeu muitas doações. A Biblioteca Pote de Mel, apelidada de Bibliopote funciona sem burocracia, sem cadastro, sem exigências. As únicas regras são:
1. Leve este livro para onde quiser durante o tempo necessário;
2. Cuide dele. Depois de ler, devolva;
3. Este livro não deve pertencer a ninguém;
4. Se ele estiver em prateleira particular, leve-o, leia-o, passe-o adiante ou devolva.
5. Se quiser, doe um livro para a Biblioteca Pote de Mel.
Segundo ele, é difícil dizer quantas pessoas visitaram, quantos livros foram emprestados ou doados, porque não há controle desses números. “A dizer das pessoas: mil é uma conta baixa e 10 mil uma conta alta. A dizer dos livros doados: 300 é uma conta baixa. E 1000 uma conta alta”. Ele destaca que “mesmo com a possibilidade de as pessoas levarem os livros e nunca devolverem, o acervo vem crescendo, o que denota que os livros em parte são devolvidos e que doações continuam. A idéia sensibiliza os fãs de bibliotecas livres”.
O lugar onde a biblioteca foi colocada é um de seus pontos fortes, de acordo com Martins. “Bibliotecas no seu formato habitual são importantes, mas elas colocam o livro, de certa maneira, em um lugar onde as pessoas vão buscar unicamente livros. Se não sou uma pessoa ligada a livros ou se não preciso de um livro por um motivo específico (pesquisa acadêmica, técnica, escolar), não os procuro. Colocando os livros em lugares em que as pessoas vão no dia-a-dia, eles passam a fazer parte do cotidiano, desde como enfeite até como fonte de entretenimento e conhecimento. Nesse sentido, acho que a Bibliopote coloca mais livros na vida das pessoas”.
Martins ensina: “Se você quiser fazer uma biblioteca como essa (ou outra ideia similar), aconselho que procure algo próximo a você, que já faça parte do seu dia-a-dia, um estabelecimento que os donos lhe conheçam e que confiem em você. Mostre que uma biblioteca (ou seja lá qual for a iniciativa) acrescenta valor — social, inclusive — ao estabelecimento. O custo de gerenciamento é zero: só é necessário o espaço”.
De preferência, que seja um lugar com grande circulação. Quanto mais variadas as classes sociais presentes, melhor. O caso da Pote de Mel é excelente; ela é próxima a diversas universidades e ao Hospital das Clínicas: é um verdadeiro caldeirão”. Perguntamos a ele se ainda acreditava naquilo que escreveu no blog, há um ano atrás, sobre mudar o que te cerca. Martins respondeu: “Acredito, sem dúvida. Sei que faço minha pequena diferença no mundo. Talvez faça uma grande, no longo prazo. Não digo isso pra me gabar. É uma verdade simples. Os atos simples podem (ou não) ter grandes consequências.