Diálogo profundo com o autor

Uma crônica sobre os momentos em que os livros nos implodem pelo riso, pelas lágrimas

Hoje um professor nos confessou ter chorado pela morte da cadela Baleia, lá pelas tantas de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos. Tinha onze anos e chamou-se de ingênuo. Já eu não tenho esses álibis. Fui pego desprevenido em um ônibus circular por esse capítulo que começa à queima-roupa: a cachorra Baleia estava para morrer. Como em um lead jornalístico, a pirâmide invertida na qual a notícia vem primeiro e o resto é decorrência por ordem de importância. Um capítulo antes, aquele ponto final anterior passado, e agora tudo mudou-se, estamos no inverso da expectativa. Justo ela. O animal que salvou a família. Ela que entendia cada um dos familiares. Pobrezinha da Baleia.

Esse é uma crônica pra gente compartilhar isso mesmo, esses momentos em que os livros implodem a imaginação e nos saem pelo riso, pelas lágrimas, pela respiração mais forte.

Deixa eu continuar a minha história. Justo a Baleia. Ela de quem sabíamos os pequenos prazeres: onde dormia ao calor da borra retirada, o debaixo da árvore onde se remexia nos gravetos e folhas. E o jeito pelo qual morreu, pelas mãos do próprio dono, ele, enclausurado na obrigação, a família, enclausurada dentro da casa se esforçando pela ignorância. O jeito pelo qual morreu, sem entender nada, com as pernas destruídas pelo tiro de espingarda, e enquanto a escuridão crescia nos olhos ela só figurava seu paraíso particular, seu mundo cheio de préas. Não é isso que é a morte? A falta de sentido, o apagamento da memória, o último suspiro da vontade.

Meus olhos lacrimejaram só um pouco naquele banco de ônibus e eu não li o resto da viagem. Fiquei triste da mesma forma pela morte do irmão de Miguilim, em Campo Geral, de Guimarães Rosa. Justo ele, tão esperto. Aqui se chora por ele, pela ligação de afeto com o irmão e pelo potencial que morre sem se cumprir. Também é isso, a morte, a quebra brusca dos laços e o apagamento das estradas. Em outro exemplo, não cheguei a chorar, mas fiquei algo triste e perturbado pela morte de Dumbledore, em Harry Potter. Pois é. E vi no filme e fiquei tão perturbado e triste quanto da primeira vez. Porque ali aquele mundo perdia seu guia de sempre, a sabedoria final que recompunha o sentido e dava lógica à tudo. A morte do patriarca (ou de deus) é a perda da ordem, multiplicação de caminhos, como em Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez (e como em Crime e Castigo, de Dostoievski).

Tudo isso fala de muito perto aos nossos próprios anseios. É por isso que nos atinge tão fundo? É por isso que consegue ser mais que sensação, imagem, som, abstração apenas, e se concretizar em uma atitude, uma expressão? Outros escritores poderão nos fazer rir, outros poderão nos fazer pensar. Que história de identificação desse tipo você pode compartilhar? Qual o autor que dialogou profundamente com você?

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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