A arte que interpreta o crime

Exposição “Crime e Castigo” permite pensar a modernidade a partir da sua “falha” e traz testemunhos artísticos sobre a natureza do Mal

O Musée d’Orsay, em Paris, apresenta, até o final de junho, a mostra Crime et Châtiment – les artistes fascines par les grands criminels (“Crime e Castigo – os artistas fascinados pelos grandes criminosos”) que retrata, de maneira inédita, a cultura e suas relações com o universo do crime, incluindo seus atores e as modalidades de punição, entre o final do século XVIII e as últimas décadas do século XX.

Se, durante esses duzentos anos, a imprensa ocupou um papel importante, no que concerne à produção de fatos, à caracterização de herois e vilãos, são os artistas os verdadeiros protagonistas da exposição. Para além do crime, a mostra sugere uma reflexão sobre a natureza do Mal e, nessa perspectiva, encontra na arte um testemunho espetacular. De fato, no final do percurso, nos damos conta de que muitos dos grandes nomes da história da pintura abordaram a temática em questão – Picasso, Goya, Guéricault, Jacques-Louis David, Daumier, Magritte, Degas e outros tantos.

O projeto de Crime et Châtiment é de autoria de Robert Badinter, advogado criminalista e ex-ministro da Justiça que conseguiu aprovar, em 1981, a lei que aboliu a pena de morte na França. Para a curadoria da exposição, Badinter lançou o convite a Jean Clair, figura importante do cenário artístico francês, ex-diretor do Museu Picasso, membro da Academia Francesa de Letras.

Essa composição pouco usual de curadoria está na origem do formato (não menos surpreendente) da exposição: o percurso torna evidente a pesquisa que acontece para além das artes visuais. Quadros compõem ambientes mesclando-se a documentos diversos, como textos, manuscritos, ilustrações, artigos de jornais, revistas científicas, além de documentos pertencentes ao campo das ciências jurídicas, objetos (como uma guilhotina, por exemplo), maquetes, enfim, rastros de uma época, provas materiais da história recente, reconstituindo a cultura de um período, com seus valores e suas marcas sociais e políticas.

Da pintura

“Death of Marat I” (1907), de Edvard Munch

Inspirada pelos escritos de Sade, Baudelaire, Dostoievski, a pintura, entre os séculos XVIII e XX, trata e tematiza o crime e suas variantes – a mulher criminosa (femme fatale), a justiça, a prisão, as narrativas amargas, manchadas de sangue. É interessante poder contemplar, lado a lado, leituras de um mesmo acontecimento, realizadas por pintores de escolas diferentes, como é o caso de A Morte de Marat, por Jacques Louis David e por Edvard Munch, respectivamente em 1793 e 1907.

Na versão neoclássica de David, vemos Marat morto em sua banheira, momentos após ser apunhalado no coração por sua jovem opositora — Charlotte Corday – cuja imagem está ausente nesta representação. À força pictórica da obra extremamente realista de David adiciona-se o fato de que o pintor foi amigo de Marat, dado que acrescenta sem dúvida carga emotiva à fruição. O mestre francês pôde começar a realizar o trabalho momentos após a morte do homem que foi um dos chefes da Revolução Francesa.

Já sob o olhar expressionista de Munch – distante de seu tema no tempo e no espaço –, as pinceladas livres e as cores vivas posicionam a figura de Charlotte Corday no primeiro plano da composição. Somos testemunhas do crime que acaba de ser cometido: a criminosa se apresenta a nós. Estranhamente, somos estranhamente convidados a integrar a cena. Percebemos o ambiente, que sofre uma brusca deformação da perspectiva. O corpo morto de Marat parece elevar-se, flutuar, sobre o leito que ocupa, enquanto a mulher, em sua postura imóvel, entrega-se, resignada, convicta, uma vez o crime concluído.

Da modernidade

“The Menaced Assassin” (1927), René Magritte

A exposição ainda nos permite pensar a modernidade a partir de um ângulo interessante, em que podemos relacionar a estrutura social que se instaura no século XIX, em decorrência das transformações tecnológicas, da circulação da informação, da industrialização, do crescimento urbano, com questões sobre a gestão das “falhas” de organização dessa nova estrutura. Como mapear e controlar o crescimento da criminalidade? Será que podemos determinar o caráter do criminoso? De que maneira punir, por quais meios, e com quais finalidades?

A urbanidade e suas marcas integram o pensamento sociológico moderno. O homem passa a ser, definitivamente, objeto de estudo. Da antropologia, passamos à psicologia, à fisiologia, que tentam, cada qual à sua maneira, compreender o crime como ato exclusivamente humano. É em meados do século XIX que nasce e se desenvolve uma abordagem científica do temperamento do criminoso. O italiano Cesare Lombroso desenvolve uma antropologia do crime que tem como base as caractarísticas fisiológicas do criminoso. Ao mesmo tempo, a imprensa da época lança mão do poder de apelo das histórias sangrentas e cruéis do cotidiano, chacinas, homicídios, abusos sexuais.

Badinter ressalta que o mito fundador da humanidade se baseia num crime, remontando ao Gênese, ao fratricídio cometido por Caim contra Abel. Nisso ele encontra outro argumento contra a pena de morte: “o homem mata. Quem? Seu irmão. Simbolicamente, todo assassino mata seu irmão”, explica. Desse modo, a pena capital perde sua legitimidade a partir do momento em que passa a representar uma “justiça que mata”.

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