Clarice, Ulisses e a Figueira

Detalhes em Clarice Lispector abrem afluentes a partir da história principal; por eles, vê-se a crítica de instituições sociais e da fé

A individualidade que se cumpre na fertilidade e na criatividade natural, e que se degrada no ventre seco, na inveja e na produção doentia. Os temas todos parecem de um peso árido, e no entanto são tratados em um livro infantil, na história que nos narra um cão, sobre uma figueira, galos, galinhas, pintinhos e velhos. Trata-se de Quase de Verdade, obra de Clarice Lispector. Com uma linguagem menos densa do que a de outras produções dela, o livro tem no cerne problemáticas comuns na escritora: é como que uma amostra sutil e delicada. Por ser um livro clariceano é que, mergulhando nos detalhes, nos perdemos nos caminhos que a história implica. É esse o percurso que faremos nesse texto: erguer camadas imprevistas, e assim corroer instituições sociais e até questionar determinada corrente de fé.

Ao lado disso tudo, preste atenção na preocupação em divertir a criança leitora com som e cor e gosto, algumas brincadeiras com as palavras e uma moral pontual e instintiva, de ver o bom e ruim, de dar valor ao pequeno no dia. Não vou tratar muito disso, mas é justo o que deve funcionar na leitura para as crianças pequenas. De todo modo, adiante:

Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade? Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu.

Quem se apresenta como narrador é o cachorro de Clarice, Ulisses. Ele nos diz quem é, diz que faz xixi na sala, que gosta de criança, que gosta de carinho na barriga. E que vai contar uma história. Que é a que segue: em um quintal, havia galos e galinhas, bicando e cantando em torno de uma figueira que não dá frutos, todos cuidados por uma senhora e um senhor. Aquela descrição da vida de Ulisses, puro dia-a-dia, se mostra mais do que arbitrária: há ali uma atenção à beleza simples do cotidiano:

E a história? Bem, ela se inicia no enorme quintal de uma senhora chamada Oniria. Oniria é meio mágica também, mas só quando entra na cozinha. Imaginem que, com ovo, farinha de trigo, manteiga e chocolate, ela consegue fazer explodir um bolo que é gostoso até para rei e rainha. Pergunto a você: quem é a pessoa mágica na cozinha da sua casa?

Quem é, leitor? Eis aqui algo de potencial afetivo muito grande. Além disso, se se notar que ‘Oniria’ remete à ‘onírico’, ao sonho, ao criado, ao imaginário — assim como a história de Ulisses, para quem ‘gosta de inventar’ —, teremos um sinal para lidar com os nomes dados aos outros personagens:

O galo se chamava Ovidio. O ‘O’ vinha do ovo, o ‘vidio’ era por conta dele. A galinha se chamava Odissea. O ‘O’ era por causa do ovo e o ‘dissea’ vinha por conta dela. Aliás, o mesmo acontecia com Oniria: o ‘O’ do ovo e o ‘niria’ porque assim queria ela. Casada com seu Onofre. Bem, você já sabe que o ‘O’ de Onofre era em homenagem ao ovo — você adivinhou certo: o ‘nofre’ era malandragem dele.

De primeira vista, posso destacar referências à literatura: Ovídio, poeta romano; Odisseia, obra de Homero (cujo protagonista é Ulisses; e Ulisses é obra de James Joyce). A continuar nesse raciocínio, eu teria de achar um referente para Onofre — o que não consegui. O nome só é o mesmo de Santo Onofre, um eremita que sobreviveu a tentações e recebeu a comida das mãos de um anjo. Esse referente, apesar de longínquo, é coerente: na história, haverá a tentação e o alimento será dado por uma benção.

No entanto, mais seguro do que avaliar as referências é destacar que, em cada nome, isto é, em cada identidade, há uma fração que não depende do indivíduo, e outra que é criada pela sua vontade. Essa fração permanente, no entanto, é o símbolo vívido do que ainda não é, do que está para nascer, do próprio devir. A identidade, a individualidade aqui surge feito uma mistura entre o aleatório e a escolha, entre — o que seria coerente com Clarice — o caos e a ordem, ambos de potência criativa. A figueira, que não tem nome, que é categoria apenas, ela que não dá frutos, anti-individual, não-criativa, é que será a vilã, ingênua e invejosa.

(…) a figueira, por não ter o que fazer, se esforçou para pensar. O esforço era tão grande que até caíram no chão algumas de suas folhas. E ela enfim teve um pensamento. (…) O pensamento da figueira apodreceu e virou inveja. Apodreceu mais ainda e virou vingança.

Ela decidiu enriquecer às custas das galinhas, usufruir do que elas criavam. Através de um acordo com um nuvem que era bruxa, suas folhas brilhariam como o sol, fazendo com que as galinhas e os galos nunca dormissem, e botassem ovos e cantassem o dia todo. Da bruxa, nuvem preta, é dito que:

A bruxa má se chamava Oxelia. O ‘O’, etc., etc., você sabe. Ela, uma vez consultada, nem precisou pensar muito: era tão ruim que era nuvem que nem chover chovia.

Novamente, a personagem não é natural, ela não cria o que pode. Para continuar na análise (insegura) dos nomes, podemos notar que a letra X no nome dá ambiguidade à ‘Oxelia’ — como se lê? OcséliaOsséliaOchélia ou Ozélia? Ou, mais fácil, retirando a partícula ‘O’, que é comum a todos, teremos Célia ou Zélia? A fração da individualidade que é escolha da bruxa é, deliberdamente, uma incógnita. Essa interpretação é pelo menos coerente, mais do que isso, adequada, em um livro que brinca com o som das jabuticabas estourando na boca, do latido do cão, da intervenção canora de um pássaro da alegria.

Mesmo talvez imprecisa, a análise dos nomes vai abrindo afluentes, e é assim que a história de fato nos leva a abalar uma série de instituições sociais. Ainda há três exemplos disso. O primeiro, mais fraco, é o de Oquequê, funcionário de Onofre e Odissea, que fica na casa no momento em que os dois viajam. É por isso que ninguém faz nada a respeito da maldade da figueira: Oquequê ‘era preguiçoso e só fazia comer, dormir e namorar, sem tomar conta de nada’. O nome dele é composto da partícula comum e de duas preposições, quero dizer, de dois instrumentos de ligação, não-significado, só meio. Também vale dizer que ele é som, gostoso de ouvir como as palavras de origem africana, mas, de novo, flui e termina em si — ora, justamente o que o personagem faz.

Jesus segundo Mateus e Oxalá segundo o Candomblé

O segundo exemplo surge se olharmos de perto a história da figueira-que-não-dá-frutos — ela existe, notadamente, na Bíblia. Em Mateus, lemos:

E, avistando uma figueira perto do caminho, dirigiu-se a ela, e não achou nela senão folhas. E disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti! E a figueira secou imediatamente. E os discípulos, vendo isto, maravilharam-se, dizendo: Como secou imediatamente a figueira?

Jesus, porém, respondendo, disse-lhes: Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes, não só fareis o que foi feito à figueira, mas até se a este monte disserdes: Ergue-te, e precipita-te no mar, assim será feito;

Isso reforça a ideia de que Onofre se refira ao santo, e isso implica em uma nova camada de significações, que logo avaliaremos. Voltemos à história: a figueira, então, enriquece com a superprodução de ovos e ao mesmo tempo deixa exaustos os animais. As galinhas planejam um meio de se libertar, que se mostrará efetivo, e após a vitória, reivindicarão:

— Queremos a liberdade de cantar só de dia! (…)

— Queremos só por ovo quando decidirmos e queremos os ovos para nós! São nossos filhos!

Não será difícil sustentar que aqui há no subliminar as questões do trabalho e da liberdade feminina. Isso é presente no restante do livro, na escravidão imposta aos animais e no alvo da figueira, a riqueza. Além disso, falaremos da luta necessária, tanto nesses termos ‘sociais’ quanto na batalha cotidiana pela própria individualidade. O que as galinhas fazem? Saltam nos galhos da figueira e deixam que os ovos caíam no chão, se perdendo.

A figueira ficou horrorizada com o desperdício. Era um prejuízo danado. E nem ao menos gostava de omelete. E toca os ovos a caírem. Cada ovo que caía, fazia no chão o seguinte barulho: pló-quiti, pló quiti, pló-quiti.

É uma pena sacrificar tanto ovo? É, mas às vezes a gente precisa fazer um sacrifício.

De fato, vencem e se libertam. A figueira tenta pedir ajuda à bruxa, mas:

(…) Oxelia tinha uma maldade tão grande que queria mal também à figueira, até então sua companheira de ruindade. E ela disse:

— Considere-se feliz! Pois eu poderia castigar você mandando fazer uma noite de tempestade e fazendo com que um raio caísse em cima de sua copa e partisse em dois o seu orgulhoso tronco!

Após a derrota da figueira, as galinhas comemoram, cantando e chupando pirulitos. Em vez de lamber, como é certo (aqui há um exemplo daquela moralzinha pontual que citei), elas mordem, e então crack crack crack perdem os dentes. Podemos pensar, além disso, que no gesto de comemorar a vitória, também comemoravam a humilhação da árvore, o que não é natural, que advém de um sentimento mais próximo à Oxélia. Isso é coerente pelo que vem: sem dentes, pedem ajuda à uma nuvem boa, Oxalá, que não só lhes entrega o que comer — sem precisão de dentes, as jabuticabas — como perdoa a figueira, dando-lhe a chance de ter figos; e, não só, perdoa também a bruxa-nuvem-preta, fazendo com que chova.

Oxalá é o terceiro exemplo dos caminhos imprevistos a que nos levam os nomes. Oxalá é a mais importante divindade do Candomblé, associado à criação do mundo e do homem, à fé. Quando pensamos nisso, podemos comparar com a tradição cristã do conto da figueira: lá, Jesus amaldiçoa para sempre a árvore; em outra versão, ele a destrói. Certos comentadores interpretam que essa foi apenas uma demonstração da onipotência e força do messias, pelo fato de que, na Bíblia, nessa história, não era tempo de figos. Vendo tudo simultaneamente, enxergamos Jesus agindo só pela força, como a própria Oxélia — e, por outro lado, Oxalá, personagem ligada à outra corrente religiosa, perdoando, fazendo o bem puro.

A dar valor à essa linha interpretativa, acabamos por crer que Quase de Verdade tem vários âmbitos de leitura: do primário, em que Clarice brinca com sons e tem alguma moral boba, até uma revisita quem sabe em idade mais adiantada, para ver o que está escondido ali. E aí se vê que há ali a crítica sutil do trabalho e da falta de liberdade, e a defesa do indivíduo — não como poeta, não como artista, não se trata de uma defesa do exuberante: mas da criação simples e própria, cumprimento das faculdades naturais de cada um. Como as receitas que a sua pessoa especial faz na cozinha, como o brotar de frutos na árvore ingênua.

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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