Fantasias Feitas de Sombra

O fantástico/maravilhoso, a tragédia sugerida, a influência de Poe e a natureza maldita em Lovecraft

H.P. Lovecraft (1890 – 1937) é, como outros escritores do gênero fantástico, vítima de seu apelo visual. Algumas de suas histórias adaptadas para o cinema concentram-se nos aspectos de “horror” em sua obra, por vezes deformando-a. Tendo visto propagandas nauseantes dos ditos filmes, demorei a me livrar da má impressão; fui me arriscar a ler um conto seu pela primeira vez numa coletânea com vários escritores do fantástico. Devagar, o autor foi-se despindo da aura de “cine-enjôo” que adquirira para mim.

Em A Maldição de Sarnath, volume de contos, encontramos muitos tipos de história. Em algumas, o tom predominante é o do fantástico, o do maravilhoso, próximo ao conto de fadas, ainda que um conto de fadas sombrio. É o caso de “Os Outros Deuses” e, especialmente, “A Árvore”. Já em outros, as possibilidades ficam esboçadas, sugeridas, sem alcançar algo concreto: a trama não avança para o horror ou à tragédia, apenas deixa no ar que poderiam ocorrer ou já ocorreram antes que a história começasse. Assim é em “Polaris”, “Além da Barreira do Sono” e “Memória”.

Há ainda textos em que se sente a influência de Edgar Allan Poe: “A Tumba”, em que temos a narrativa na primeira pessoa, recurso usual de Poe. Outro conto com essa influência é “A Maldição de Sarnath”: sua linguagem requintada, repleta de descrições de um cenário belíssimo à iminência da catástrofe — tudo isso me lembrou “A Máscara da Morte Rubra”.

É possível que esse preâmbulo “belo”, essa abertura de descrição exuberante, cheia de beleza, que citei em “A Maldição…”, seja uma variante de uma característica comum nessas narrativas: a natureza vista como ambígua, como suspeita, na melhor da hipóteses; na pior, como inimiga do homem; como se os astros celestes e as criaturas – minerais, vegetais – fossem precursoras ou aliadas do Mal.

“… e em torno de seus carvalhos terrivelmente nodosos foram tecidas minhas primeiras fantasias da meninice (…)”
(“A Tumba”).

“Pela janela norte de meu quarto brilha a Estrela Polar com misteriosa luz. E durante as diabólicas longas horas de escuridão, ela ali brilha”
(“Polaris”).

“…e a Cabeleira de Berenice tremula fantasmagórica e distante no misterioso leste…”
(“Polaris”).

“No vale de Nis, a maldita lua minguante brilha palidamente…”
(“Memória”).

“(…) Alinhada está a verdura em cada encosta, onde vinhas malignas e trepadeiras rastejam…”
(“Memória”).

“Odeio a lua, tenho medo dela…”
(“O que vem com a lua”).

Lovecraft foi portanto muito mais do que o autor de cenas nauseantes priorizadas nas adaptações de sua obra para o cinema. Foi um escritor de fantasias com perspectiva sombria, enveredou pela ficção científica e até adentrou o macabro puro – porém de forma muito pessoal, e, com frequência, sugestiva.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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