Demétrius Ávila: “Criar utopias, ensina Darcy, é conceber o país que se deseja mediante um projeto exequível”

O entrelaçamento entre atividade intelectual e ação política na trajetória de Darcy Ribeiro e os papéis que o pesquisador e parlamentar pode ter no Brasil contemporâneo

“O avanço da análise requer o advento da crítica, que apenas poderá adquirir a devida dimensão à medida que Darcy seja mais lido”, diz Demétrius | imagem: Daniel Fucs

colaboraram neste entrevista Duanne Ribeiro e Rafael Bensi

O antropólogo, historiador, sociólogo, escritor e parlamentar Darcy Ribeiro completaria 100 anos em 2022. Para celebrar o centenário, Úrsula publica entrevistas sobre o legado do autor. A primeira é com o professor Demétrius Ávila, doutorando e mestre em história pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Demétrius fornece um panorama dos atuações de Darcy em vários campos de atuação, ressaltando elementos do seu pensamento que podem ser reavivados no Brasil contemporâneo: os subsídios para o debate sobre racismo, uma concepção crítica das noções de populismo e um entendimento renovado dos regimes políticos americanos. Além disso, o professor destaca o caráter prático da atividade intelectual de Darcy, que operava tendo em vista a transformação da realidade: “A teoria jamais foi tratada por ele enquanto mera erudição, enquanto pedantismo academicista, mas como farol para a ação política”.

Como define o trabalho de Darcy Ribeiro?

Impõe-se, primeiramente, a necessidade de precisarmos no que consiste esse trabalho. Afinal, Darcy Ribeiro atuou e produziu em diversas e variadas áreas, desde a observação direta de populações originárias até a escrita de quatro romances e a elaboração da lei educacional brasileira, passando pela confecção de uma teoria sobre o Brasil que o impeliu a entabular, preliminarmente, uma espécie de nova teoria da história – aqui, refiro-me a O Processo Civilizatório, publicado em 1968. O trabalho de Darcy Ribeiro é um conjunto amplíssimo e diversificado de “fazimentos”, para evocar uma palavra enunciada pelo próprio, que era dado, também, a inventar neologismos. Por conseguinte, a primeira definição de seu trabalho se coloca entre o amplo e o multiforme. A segunda definição, contígua à primeira, fundamenta-se em sua audácia. Darcy Ribeiro encarnou como poucos o preceito de Marx e Engels, desenvolvido mais tarde por Gramsci, segundo o qual deve recair sobre os pensadores a tarefa imperiosa de transformar o mundo, e não apenas descrevê-lo, interpretá-lo. A teoria jamais foi tratada ou escrita por Darcy enquanto mera erudição, enquanto pedantismo academicista, mas como farol para a ação política. Por essa razão, não se pode compreender sua produção intelectual dissociada dos combates políticos por ele travados, em diferentes períodos, desde o confronto com Carlos Lacerda em 1959, em torno da primeira Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB), até sua peleja contra o neoliberalismo nos anos 1990, época em que exercia mandato de senador.

Qual é seu legado intelectual?

Além da referida audácia – que consiste em uma conclamação aos intelectuais dos países explorados para que adotem posições de combatividade, instrumentalizando o conhecimento em favor das lutas políticas justas e necessárias – ainda provém de Darcy Ribeiro, tomada sua vasta obra, o apelo à totalidade: à concepção em totalidade do que se pretenda compreender. Esse apelo desnuda a adesão de Darcy ao método dialético, demonstrada por uma passada de olhos em sua série de Estudos de Antropologia da Civilização, redigida no decorrer dos anos em que esteve exilado no Uruguai e em outros países latino-americanos, por conta do golpe civil-militar de 1964. Intentando elucidar as causas do subdesenvolvimento e da dependência do Brasil, Darcy reescreve a história da humanidade (O Processo Civilizatório), seguida de uma abordagem do desenvolvimento desigual das Américas (As Américas e a Civilização), para embasar uma análise política, econômica, social e cultural mais minuciosa da América Latina (O Dilema da América Latina) e, finalmente, chegar à especificidade do Brasil, colocado no interior desse tão dilatado quadro (Teoria do Brasil).

Esse enorme esforço teórico fez brotar um vocabulário conceitual próprio, possibilitou a elaboração de categorias de análise originais, o que constitui uma contribuição inestimável de Darcy Ribeiro – embora pouco reconhecida – às ciências sociais latino-americanas e brasileiras. Para ele, pensar nossa realidade tacitamente a partir de conceitos exógenos, importados, correspondia a uma forma de submissão intelectual aos países centrais, correlata à dependência econômica impingida por estes. O resultado dessa submissão não será outro senão alienação, igualmente ensejada pela visão fragmentada do Brasil, das Américas, do mundo. Daí o apelo à totalidade, que é uma constante em sua obra, ao passo que inusual na produção acadêmica há muitas décadas.

Em 1995, Darcy Ribeiro publica O Povo Brasileiro, sua opus magna e, segundo ele, verdadeiro e imprescindível desfecho da série de Estudos de Antropologia da Civilização. Ora, em tempos de supressão das metanarrativas, no dizer [do sociólogo] Anthony Giddens, Darcy traz à luz uma grande narrativa sobre o Brasil, comparável aos trabalhos ensaísticos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda publicados nos anos 1930. Contrariamente ao julgamento dos que atribuem a O Povo Brasileiro a pecha de anacronismo, de extemporaneidade, o livro é um libelo lúcido e atualíssimo contra o neoliberalismo, contra os perigos neocoloniais disfarçados pela euforia da globalização, é um alerta contra a permanência dos velhos mecanismos de repressão às lutas populares, subjacentes ao otimismo democrático e constitucional da Nova República. O Povo Brasileiro exprime originalidade conceitual, perspectiva teórica, descritiva e analítica abrangente e inserção combativa nos domínios da política. Exprime, pois, uma síntese do legado intelectual de Darcy Ribeiro.

Como um dos intérpretes do Brasil, o quanto sua análise ainda é produtiva e no que ela precisa ser avançada?

Fora comum, por algum tempo, atribuir ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a alcunha de “príncipe” da sociologia brasileira. Se conferimos a “príncipe” o significado de herdeiro e se ampliamos o escopo da sociologia para o do pensamento social em geral, esta alcunha serve com maior propriedade a Darcy Ribeiro. Mais do que qualquer de seus pares geracionais – intelectuais do quilate de Florestan Fernandes, de Antônio Cândido, de Oracy Nogueira – ou dos renomados cientistas sociais de gerações pósteras, a exemplo do referido ex-presidente, Darcy soube reconhecer o valor e a pertinência de escritos literários e do ensaísmo social produzidos anteriormente à institucionalização das ciências sociais acadêmicas no Brasil. Destarte, fez reviver a Capistrano de Abreu, a Manoel Bomfim, a Arthur Ramos, dentre outros pensadores que ainda têm o que dizer para bem da nossa autocompreensão. Reverberando suas vozes em escritos como O Povo Brasileiro, a análise de Darcy Ribeiro permanece produtiva, dado que tais vozes denunciam e explicam fenômenos como o racismo, explicitando contornos e particularidades que este tenha adquirido no decurso da história brasileira.

Importante, por igual, é a afronta de Darcy Ribeiro à hegemonia de determinadas leituras dessa mesma história, produtoras de discursos como os que orbitam em torno da categoria de populismo. Em O Dilema da América Latina, Darcy propõe uma reclassificação dos regimes políticos latino-americanos e engendra uma nova tipologia desses regimes, assim como das formas de militância política desenvolvidas na região. Ao criticar e ressignificar a categoria de populismo, por seu caráter demasiadamente generalista e por seu emprego invariavelmente ideológico pela institucionalidade acadêmica dominante, fornece-nos Darcy lentes efetivamente mais precisas para o exame da história política brasileira anterior a 1964.

Quanto ao avanço da análise de Darcy Ribeiro concernente ao Brasil, este deve ser prioritariamente menos o da análise em si do que o de seu alcance. O avanço da análise requer o advento da crítica, que apenas poderá adquirir a devida dimensão à medida que Darcy seja mais lido. Não se trata, porém, de apenas incorporá-lo escolasticamente aos currículos acadêmicos – nos quais, de fato, Darcy Ribeiro tem sido uma ilustre ausência –, mas, sobremodo, às formações políticas propiciadas por partidos e movimentos sociais a seus quadros e à sua militância. Em face disto, por exemplo, a dita tipologia política latino-americana, por ele engendrada a começos dos anos 1970, obterá os aportes necessários à própria atualização e, consequentemente, poderá avançar, tornando-se instrumento utilíssimo para a leitura das disputas hodiernas pelo poder.

Tendo em vista os debates políticos e sociais do Brasil de hoje, o que um retorno às ideias de Darcy Ribeiro poderia proporcionar? Como ele pode contribuir, o que ele pode esclarecer quanto aos dilemas atuais?

Ao cerrar os olhos em definitivo, Darcy Ribeiro preocupava-se com seu Projeto Caboclo, pelo qual tencionava promover a ocupação “sustentável”, como diríamos hoje, da Amazônia, a um só tempo protegendo a fauna, a flora, as populações indígenas e os demais habitantes da floresta – coadunando preservação e desenvolvimento econômico. Em seus anos derradeiros, Darcy lutava pela biomassa como fonte primordial de energia para o Brasil, distanciando-se do Darcy de O Processo Civilizatório, que apostava no caminho da “revolução termonuclear” em direção ao futuro; lutava, também, pela regulamentação legal dos transplantes de órgãos, por uma educação pública, estatal e gratuita adequada à autossuperação das debilidades brasileiras; lutava, enfim, por uma legislação de trânsito que estancasse o número aberrante de mortes trágicas nas ruas, avenidas e rodovias do país. Os discursos e projetos do senador Darcy Ribeiro, eleito em 1990, revelam um intelectual cônscio, amalgamado com um político ativo e combativo. Nenhuma das suas lutas, desgraçadamente, perdeu atualidade – em tempos recentes, recrudesceu a devastação da Amazônia, o extermínio de populações originárias, a precariedade da educação básica.

Tanto quanto inspiração para a pugna contra um sem número de mazelas, as ideias de Darcy Ribeiro servem como esclarecimento quanto às suas causas, no curso de um processo multissecular. Entrementes, para mais do que voltar-se ao passado de aniquilamento e superexploração das gentes brasileiras, no afã de descortinar as origens de suas expiações no presente, Darcy aponta um futuro de abastança e reconciliação do povo brasileiro com a história. Declaradamente utopista, não o aponta movido por um otimismo ingênuo, posto que, para ele, o significado de utopia passe ao largo do irrealizável. Criar utopias, ensina-nos, é conceber o país que se deseja mediante um projeto exequível. Desta feita, talvez a mais significativa contribuição de Darcy Ribeiro incida na remição da atividade política: em não sendo o suficiente apenas idealizá-lo, somente a política permite colocar em marcha a realização de um país próspero e dignificante para a integralidade de seu povo.

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