Insurreição Política da Classe Média Brasileira: Golpismo e Corrupção

O Brasil é de novo o que nunca deveria ter deixado de ser: uma republiqueta de bananas

Manifestação de 2013 / Manifestação pró-impeachment 2016 — Pato da FIESP. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil e Rovena Rosa/ Agência Brasil

Desde o resultado das eleições de 2014, com a reeleição da presidente petista Dilma Rousseff, o Brasil tem afundado numa grave crise política, e hoje, aproxima-se perigosamente de uma crise institucional. A oposição — agora, capitaneada pelo (ex)principal partido da base governista — finalmente materializa seu plano de derrubar o governo que, desde 2002, é legitimamente eleito pela população brasileira.

Muito mais do que expor a falência do nosso sistema eleitoral e político e a atuação com aspirações políticas e ideológicas do judiciário brasileiro, a atual crise política desnuda uma preocupante característica de parte significativa da sociedade brasileira, disseminada principalmente entre a classe média: o conservadorismo, com traços autoritários e fascistas, travestido de oposição liberal de direita.

Nas sociedades capitalistas, as classes médias são responsáveis pela transmissão da ideologia das elites dominantes — a burguesia — e no Brasil não é diferente. A última grande movimentação social da classe média brasileira ocorreu em 1964, durante o período que antecedeu o golpe militar: a chamada “marcha da família com Deus pela liberdade”; o objetivo? Derrubar o então governo progressista de João Goulart. E é através dessa classe média que hoje, da mesma maneira que os militares conseguiram em 1964, a oposição vem encontrando meios e suporte para tirar do poder mais um presidente democraticamente eleito.

Desde 2002, com a chegada de Lula à presidência, a classe média demonstra-se incomodada e ressentida. Lula (e mais tarde, Dilma) propôs-se a administrar os “estragos” causados pelo capitalismo, revitalizando a função social do Estado. Dessa forma, foram criados empregos (principalmente terceirizados, seguindo a tendência de economias desenvolvidas, como forma de ampliação dos ganhos de produtividade), políticas de recuperação do salário mínimo e a ampliação de programas de redistribuição de renda (como o Bolsa Família). O desenvolvimento social e o aumento da renda como mecanismos gerenciadores das contradições do capitalismo obrigaram o governo a adotar uma política econômica conservadora, a fim de evitar confrontos com o capital, porém, propondo reformas para reduzir a pobreza e diminuir a desigualdade social, e, nessa reforma “conservadora”, o estimulo ao consumo é essencial para a incorporação desse novo proletariado à lógica capitalista. Dessa forma, o governo expandiu a oferta de crédito, aumentando o padrão de consumo do subproletariado brasileiro (chamado pelo governo e pela grande mídia de nova classe média) e ativando o mercado interno. Inseridos formalmente no mercado de trabalho e com perspectiva de cidadania salarial, esse subproletariado, surgindo agora com acesso a itens de consumo, passa a incomodar a classe média tradicional — branca, educada, escolarizada e, como já mencionado, alinhada ideologicamente aos valores burgueses — ao invadir seus seletos espaços de reprodução social e sociabilidade historicamente demarcados. Baseando a inclusão social principalmente pelo consumo, o plano de governo petista levou essa nova classe a tomar para si os principais signos de distinção social da classe média tradicional: os “valores burgueses”, reivindicando seu lugar na sociedade de consumo como forma de afirmação social, e, numa sociedade onde significativa parcela da população possui pouco ou nenhum acesso a um mínimo padrão de consumo, é de grande importância para as classes dominantes apresentarem-se como “consumidoras”, diferenciando-se do restante da realidade nacional e mostrando seu sucesso como classe que comanda o país.

Dessa forma, num desesperado “instinto” de autopreservação, a classe média tende a atacar o principal responsável por colocar em risco a materialidade de sua existência histórica: o governo petista. Assim, ela apresenta-se politicamente conservadora, apoiada em ideias moralistas e disposta ao radicalismo de direita como forma de minar qualquer mudança na estrutura de classes já estabelecida. Ancorada nos tradicionais e perversos valores meritocráticos do capitalismo, ela prega — numa maneira dogmática que beira o teologismo — que o assistencialismo de Estado, ao tentar diminuir os danos causados pelas contradições do capitalismo, acomoda e corrompe o ser humano, desvirtuando-o de sua “natureza” competitiva e tornando-o refém do governo.

A fim de exercer oposição e manifestar seu ódio ao PT, a classe média tradicional apoia-se em três principais pilares: a violência; a corrupção; e o conservadorismo moral: a violência — reconhecido problema dos grandes centros urbanos brasileiros — legitima a segregação do espaço e a opressão às camadas mais pobres da sociedade. Em defesa da paz e da segurança pública, prende-se sem flagrante e atira-se sem motivo. Dessa maneira, define-se o que pertence ou não o indivíduo, de acordo com sua origem social; a corrupção é o caminho mais fácil para atacar o governo, afinal, quem compactua com isso? A corrupção é a origem significativa parte do discurso “político” da classe média tradicional, originando comparações rasas e sem qualquer fundamento com regimes totalitários, pois é inconcebível que um governo corrupto cobre uma carga tributária tão pesada de mim para — pior — “dar” aos mais pobres; e por último, o conservadorismo moral mantém a força e a intensidade do discurso. Qualquer pauta “amoral” que represente ameaça às estruturas já definidas torna-se algo a ser combatido, ou seja, antigas lutas por direitos civis no país tornam-se genericamente comunistas e apoiadoras do governo corrupto. O caráter seletivo da organização social da colônia, fundada na grande propriedade rural escravocrata, mantém-se no gene da classe média tradicional, que tenta sempre e a qualquer custo tirar do campo da discussão temas como o racismo, o feminismo, a homossexualidade, o aborto, a legalização de drogas etc.

A nova insurreição política da classe média ocorreu em 2013, durante as manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL): após a comoção social causada por uma truculenta e desastrosa ação da polícia militar de São Paulo para conter os manifestantes no quarto dia de manifestação, outras centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em diversas cidades de todo o país. As manifestações tomaram força, porém, tonaram-se carentes de forma. E como bem disse diversas vozes gritadas a todo pulmão, “não é só pelos 20 centavos”. E a partir desse momento, iniciou-se o movimento oposicionista que desencadeou a atual crise política.

Muito além da tarifa, o MPL é um movimento de esquerda, diretamente ligado à luta contra a lógica mercadológica, porém, durante as manifestações de junho, ele acabou tornando-se um fio condutor ideológico, trazendo milhares de pessoas às suas manifestações. A classe média — desde 2002 insatisfeita com o governo federal e recentemente ressentida por ver o PT tomando também a prefeitura de São Paulo — viu a oportunidade de trazer novamente para a discussão suas pautas e legitimar sua reexistência política. Ideologicamente pobre e politicamente analfabeta, seria difícil qualquer tentativa de organização social, portanto, a apropriação de uma manifestação já consolidada foi de grande conveniência. A partir desse momento, o caráter das manifestações transformou-se radicalmente. Cartazes e placas em protesto contra a corrupção e ações do governo federal foram muito bem-vindos pela grande mídia, que imediatamente passou a legitimar as manifestações. Rostos pintados de verde e amarelo, entonações emocionadas do hino nacional e bandeiras do país por todos os lados mostraram o caráter direitista de quem agora tomava as ruas.

A apropriação que ocorreu nas manifestações foi como um rito de passagem para a classe média. Por meio e pelas manifestações, ela pôde instaurar-se novamente como classe social presente e atuante na sociedade, disposta a escrever sua história, ciente de que ocupa um lugar distinto na sociedade brasileira atual, e precisa, a todo custo, defender seu “espaço”.

Além da consolidação de sua identidade social, a classe média descobriu que é possível organizar-se socialmente, principalmente por meio das mídias sociais (também seguindo como exemplo o MPL). Seu modus operandi é torpe e raso, porém, funcional: a reivindicação por melhor saúde e educação, combate à corrupção e melhor aproveitamento do dinheiro público são consenso entre a sociedade, porém, são apropriadas pela classe média através da grande mídia. Dessa forma, essas reivindicações perdem o ar progressista e são travestidas como conservadoras, uma vez que a grande mídia — além de declarada defensora da redução do Estado — procura manter esse tipo de debate em nível abstrato, pois bem sabe que qualquer transformação nas estruturas políticas já estabelecidas seria potencialmente prejudicial a ela própria. Conhecedora da vulnerabilidade política da classe média, sua intenção é manter um permanente estado de insatisfação geral, esperando que a população lute contra “tudo isso que tá aí”, objetivando uma mudança de governo (e, obviamente, nunca uma mudança de sistema político).

A partir daí, as manifestações contra o governo petista tornaram-se frequentes. Sempre mantendo o mesmo perfil de participantes (majoritariamente brancos, escolarizados e com renda superior à média nacional), elas seguiram travestidas de democráticas, evitando falar em derrubada da presidente e posicionando-se como oposição legítima, visando as eleições de 2014. Após a reeleição do governo petista, os movimentos de direita responsáveis por organizar as manifestações assumiram-se como golpistas, passando a adotar uma retórica mais violenta, depreciativa e caluniosa, disseminada rapidamente pelas redes sociais. A oposição e a mídia tradicional passaram rapidamente a apoiar publicamente as manifestações, vislumbrando como única opção para derrocada do PT a derrubada do governo legitimamente eleito. As manifestações tornaram-se mais frequentes e intensas. A política deixou de ser assunto de acadêmicos e da esquerda, tomando o ambiente coletivo dos brasileiros. A chegada da nefasta figura de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados representou a “esperança institucional” da direita brasileira.

Típico representante das velhas oligarquias políticas (conservador, religioso, dono de contas na Suíça e respondendo a diversas acusações de corrupção), Cunha dedicou seu tempo como presidente da casa para impedir qualquer ação ou medida do governo para alavancar a economia, mergulhando o país numa grave crise econômica, com único objetivo de depreciar o governo petista. Após dezenas de pedidos de impeachment protocolados pela oposição arquivados, Cunha aceitou um pedido de afastamento da presidente Dilma após descobrir que deputados do PT não votariam em seu favor no conselho de ética da casa, que investiga quebra de decoro do parlamentar. O pedido foi aceito antes de a presidente completar um ano de governo.

Uma comissão especial para analisar o pedido rapidamente foi instaurada, dando parecer favorável ao afastamento da presidente, levando o processo ao plenário da Câmara — e foi aí que o país vislumbrou a “casa do povo”.

Os pronunciamentos dos deputados a favor do impeachment — sempre citando Deus, a família, a pátria, a nação e vociferando contra corrupção — circularam o mundo, tornando-se motivo de chacota (principalmente por, aproximadamente, 150 dos deputados pró-impeachment responderem por denúncias de corrupção). Primeiramente, a análise mais instintiva que alguém pode fazer é: “Esses representantes não são o espelho do povo brasileiro; um povo trabalhador, honesto, lutador”, e começar a questionar coisas como o quociente eleitoral do nosso sistema misto de votação. Mas, para nosso assombro, esses deputados são exatamente o espelho da nossa sociedade — pelo menos, da nossa classe média e sua ideologia hegemônica. Assim como significativa parte do nosso parlamento, ela é conservadora, corrupta, mesquinha, egoísta e hipócrita; muito mais além, ela é racista, fascista, preconceituosa e ignorante. Em resumo, ela prefere conviver com um político que compra bolsas de 10 mil dólares para a esposa com dinheiro desviado do contribuinte do que com um governo que redistribui renda.

Ontem (11/5/2016), o Senado Federal aceitou a admissibilidade do processo de impeachment, afastando uma presidente democraticamente eleita por 54 milhões de votos, sob a qual não pairam quaisquer denúncias de crimes, e empossando como presidente da República Michel Temer — este, sim, investigado por participar de esquemas de corrupção e pertencente a um partido que há anos e anos rouba, usurpa e violenta nosso país. Hoje, ouvem-se fogos nas ruas, as pessoas foram trabalhar com camisas e bandeiras do Brasil. Hoje, comemora-se o retrocesso; a volta das antigas oligarquias políticas. Hoje, o Brasil é de novo o que nunca deveria ter deixado de ser: uma republiqueta de bananas.

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