Claudia Leitão: “A Extinção do MinC é Nefasta para o Brasil”

Ex-secretária de Economia Criativa do ministério, Claudia fala da “incompreensão sobre o papel estratégico da cultura”

Claudia, então secretária de Economia Criativa do MinC, no II Colóquio Celso Furtado, em 2012 | imagem: Elisabete Alves

Professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE), ex-secretária de cultura do Ceará (2003–2007) e ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (2011–2013), Claudia Leitão discorreu à Capitu sobre o fim do MinC, uma das primeiras ações do presidente interino Michel Temer. O ministério foi substituído pela Secretaria Nacional de Cultura, equipamento do Ministério da Educação (MEC), sob a gestão de Mendonça Filho (DEM). Claudia, segundo a Folha divulgou após a publicação desta entrevista, foi convidada a assumir a nova secretaria e recusou.

Claudia crê que, apesar da parceria frutífera entre o MEC e o MinC, “a soma das duas pastas terá performance menor do que ambas como organizações distintas”, pelas complexidades próprias de cada ministério. Percebe nesse tratamento dado às políticas públicas em cultura uma “incompreensão dos governos sobre o papel estratégico” dessa área. A tarefa do MinC, diz ela, é estimular “a criação, produção, circulação e consumo de bens e serviços culturais, cujo valor agregado é cada vez mais importante neste século”.

Por fim, comentando os problemas relacionados ao ministério da Cultura ainda sob a tutela de Dilma — como a extinção da Secretária de Economia Criativa, “cassada pelo próprio ministro Juca Ferreira, em 2015, dentro do mesmo governo que a havia criado!”. Além dos papéis distintos que um bom ou mau ministro têm na pasta, ela elenca quatro desafios da área.

Que impactos podemos esperar do fim do MinC?

A extinção do MinC é nefasta para o Brasil. Trata-se de uma ação irresponsável, com graves consequências para a população e para o campo cultural brasileiro. Para entender os impactos negativos da extinção do MinC, vale a pena resgatarmos a história das políticas públicas culturais brasileiras. Na década de 1970, por exemplo, sob o regime militar, a política cultural do Estado serviu de instrumento para enfrentar o descontentamento das classes médias diante da crise de eficiência econômica que assolava o país, assim como a concentração de renda e o crescimento da inflação. Não parece semelhante ao que estamos vivendo nos dias de hoje?

A institucionalidade da cultura no Brasil se ampliou no governo militar para servir aos interesses de uma Política Nacional de Cultura que se transfigurou ao longo dos governos militares. Com o objetivo de formular políticas culturais “socialmente mais abrangentes”, o governo Geisel (1969–1973) criou o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que não era uma instituição, mas um programa que teve como primeiro apoiador o Ministério da Indústria e Comércio, sob comando de Severo Gomes (1974–1977), e não o Ministério da Educação e Cultura, em que, por hierarquia burocrático-organizacional, afinidade disciplinar e pertinência temática, deveria ter nascido. Na gestão de Ney Braga no MEC (1974–1978), implantou-se o Conselho Nacional de Direito Autoral, o Conselho Nacional de Cinema (Concine) e a Fundação Nacional de Arte (Funarte), lançando-se o primeiro Plano Nacional de Cultura. A ampliação institucional da cultura se estendeu ainda às empresas de economia mista como a Radiobrás e a Embralivro, em uma primeira tentativa mal sucedida de trazer para o âmbito da cultura as políticas das indústrias culturais. Afinal, mesmo no começo do governo Lula o cinema era um setor conduzido pelo Ministério da Indústria e do Comércio Exterior, que ainda em 2003 se recusava a se transferir para o MinC!

Com a ausência de uma política mais ampla de financiamento, o Ministério da Cultura limitou historicamente as suas ações aos editais e às leis de incentivo fiscal. Editais são instrumentos, mas não constituem uma política. De um lado, sua sazonalidade fragiliza o campo cultural, criando relações de dependência, sobretudo dos artistas, com o Estado; de outro, as leis de incentivo contribuem para a hegemonia da indústria cultural, pois a captação de recursos via leis de incentivo acontece em grande parte para fomentar projetos de grande apelo mercadológico. Uma política cultural deve refletir o modelo de desenvolvimento adotado pelo país. Entre o dirigismo político e as visões neoliberais, é preciso uma vontade política que reconheça o campo de disputa entre as artesanias e as indústrias culturais, entre a inovação e as demandas do mercado, intervindo para equilibrar as assimetrias que o próprio sistema capitalista produz no que diz respeito à criação, produção, distribuição e consumo de bens culturais.

Até os nossos dias, o ministério não logrou realizar uma política de financiamento à cultura capaz de enfrentar a hegemonia das indústrias culturais sobre as artesanias culturais brasileiras. Esse é o desafio de um novo programa de financiamento à cultura como o Procultura. A questão é que os lobbies no Congresso Nacional não permitem ao MinC avançar no enfrentamento das assimetrias presentes no campo cultural. Por outro lado, a incompreensão dos governos sobre o papel cada vez mais estratégico da cultura na qualificação de um novo modelo de desenvolvimento mantém o ministério ainda marginal e sem prestígio político. Essa, para mim, é uma das mais fortes razões para que ele não seja extinto.

No panorama que você apresenta das políticas culturais na ditadura, algumas ações não eram ligadas ao Ministério da Indústria e Comércio, mas ao Ministério da Educação e Cultura (gestão Ney Braga). Essas atividades também foram prejudicadas por uma visão industrialista?

A omissão do Estado é um tipo de ação a favor da cultura de massa produzida pela indústria cultural. Não se pode nem se deve tratar o produto cultural como um produto qualquer, submetendo-o unicamente às regras do mercado. Os franceses construíram, através de sua política pública de cultura, a chamada “exceção cultural”, quando reivindicam espaços de comercialização de seus bens e serviços, por exemplo, junto à Organização Mundial do Comércio. Eles estão certos.

O trabalho do MinC pode continuar sendo feito na nova estrutura?

MEC e MinC vêm construindo na última década uma reaproximação, uma agenda comum de políticas integradas à favor da educação das artes e da cultura na escola. A formação em gestão cultural também vem avançando, assim como houve a criação de alguns observatórios de economia criativa pela extinta Secretaria da Economia Criativa nas diversas regiões do país. Essas ações, mesmo se ainda insatisfatórias, são frutos da parceria do MinC com as universidades brasileiras e devem ser ampliadas. Mas, se várias iniciativas vêm tomando forma e conteúdo nessa cumplicidade estratégica, não se deve solapar a autonomia da cultura nessa relação.

A soma das duas pastas terá performance menor do que ambas como organizações distintas! Ressalto, ainda, que o novo organograma do MinC que será anexado ao Ministério da Educação, a partir da criação de uma Secretaria Nacional de Cultura, não é mais aquele estruturado por Celso Furtado na década de 1980, quando o MinC foi criado. O Ministério da Cultura avançou muito em sua dimensão e significado (e poderia ter avançado muito mais!), pois as políticas culturais se transversalizaram, ganhando maior interlocução com novas áreas (como a ciência e tecnologia, o turismo, o trabalho e emprego, as comunicações, a indústria e comércio, entre outras) fruto da “culturalização” dos debates sobre o desenvolvimento no século 21. O Ministério da Educação é imenso, burocrático, engessado nos seus programas, ainda desafiado, depois da universalização da escola, a oferecer qualidade de ensino aos estudantes brasileiros.

O Ministério da Cultura, a despeito do seu parco orçamento, é complexo, pois possui uma estrutura que envolve secretarias e vinculadas com missões extremamente importantes. De uma Agência Nacional de Cinema (Ancine) a uma fundação voltada à memória e à pesquisa (Casa de Rui Barbosa), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com capilaridade em todos os estados brasileiros, à Fundação Nacional das Artes (Funarte), o MinC cumpre uma função estratégica nas chamadas Sociedades do Conhecimento! Afinal, sua tarefa é formular, implantar e monitorar políticas para a criação, produção, circulação e consumo de bens e serviços culturais, cujo valor agregado (tomemos a dimensão econômica para exemplificar…) é cada vez mais importante neste século. Mesmo alguns ministros que passaram pelo MinC tiveram dificuldade em compreender a estrutura sofisticada e complexa do ministério! Vale ressaltar que, à exceção da Ancine, essas vinculadas sofrem historicamente pela carência de recursos humanos, financeiros e infraestruturais, que prejudicam o seu desempenho.

Você acredita que a extinção do MinC é um resíduo ou uma volta da visão mais instrumentalista da cultura de que falávamos?

A transformação do MinC em um apêndice da educação reduz e subalterniza as políticas culturais. Não necessariamente instrumentalizando-as a favor de uma visão pragmática e mercadológica, mas limitando-a à missão educadora do MEC (que já não é pequena…) e, por conseguinte, criando obstáculos aos seus novos significados no século 21. Corre-se sempre o risco de se considerar a cultura como a “cereja do bolo”, como sempre alertava o ex-ministro Gilberto Gil quando se referia às tradicionais percepções da cultura associadas à produção dos eruditos, às belas artes.

Foi divulgado que o governo Dilma também pretendia unir o MinC ao MEC, projeto abortado por pressões sociais. O Ministério da Cultura já vinha sendo relegado a segundo plano?

Não tenho conhecimento de que Dilma Rousseff desejasse extinguir o MinC. Pelo contrário, quando estive com a presidente propondo a criação de um plano interministerial para fazer avançar as dinâmicas econômicas dos setores culturais e criativos no Brasil, ela foi a primeira a se animar com a ideia e a transferir a construção do Plano Brasil Criativo para dentro da Casa Civil. O plano, quando formatado, foi abortado por Marta Suplicy [ministra da Cultura de 2012 a 2014], que não nos permitiu entregá-lo à presidente. Imagino que essa atitude já fazia parte de um boicote ao governo Dilma.

Uma lástima! Quanto mais frágil é a institucionalidade de uma área, mais ela estará sujeita a idas e vindas. Por outro lado, a vulnerabilidade das pastas da cultura também ocasiona um maior personalismo à sua gestão. Um “bom” ministro produzirá “boas” políticas, enquanto que um “mau” ministro pode produzir retrocessos nefastos à pasta! Ainda, com a ausência de profissionais concursados, de um quadro de expertos, o MinC não consegue produzir políticas de Estado capazes de dar continuidade aos programas importantes, apesar dos mandatos…

O que parece flagrante é uma degradação de uma ideia de cultura, ou de políticas públicas em cultura. Com Gil e Juca, uma concepção cultural antropológica foi trazida à tona. Nesse sentido, o seu trabalho pelo progresso da economia criativa indicavam a perspectiva de que a cultura compõe não só processos simbólicos, mas de infraestrutura. Já com Marta Suplicy, com o vale-cultura, mais assistencialista, algo disso parece ter sido perdido. Você concorda com essas afirmações? Como devemos entender a cultura em um projeto de Brasil?

Foi um outro presidente do PMDB, José Sarney (também “sem votos”, como o interino Michel Temer) que separou as áreas da educação e da cultura, criando o MinC [pelo decreto 91.144, de 1985]. Sarney chamou para estruturá-lo, para ser seu ministro, um homem de planejamento, gestão, estudos econômicos, mas também das Ciências Sociais, das artes e da filosofia: Celso Furtado. Vinte e cinco anos depois da gestão de Furtado à frente do Ministério da Cultura, tive a honra e o privilégio de liderar o processo de institucionalização da Secretaria da Economia Criativa (SEC), cuja missão era formular e implantar políticas públicas capazes de retomar, reavivar e resignificar as relações e as conexões entre cultura e desenvolvimento, ou seja, contribuir de firma eficaz e efetiva para transformar a criatividade brasileira em inovação e a inovação em riqueza.

A SEC deveria garantir que o amplo espectro de setores e de empreendimentos criativos não fossem reduzidos ao âmbito das indústrias culturais e à mera dimensão mercadológica dos seus bens, características do pragmatismo. A secretaria, em vez de dogmatizar um conceito de economia criativa, buscou garantir princípios que a fundamentassem: diversidade cultural — valorizar, proteger e promover a diversidade das expressões culturais nacionais como forma de garantir a sua originalidade, a sua força e seu potencial de crescimento; inclusão social — garantir a inclusão integral de segmentos da população que em situação de vulnerabilidade social por meio da formação e qualificação profissional e da geração de oportunidades de trabalho, renda e empreendimentos criativos; sustentabilidade — promover o desenvolvimento do território e de seus habitantes garantindo a sustentabilidade ambiental, social, cultural e econômica; inovação — fomentar práticas de inovação em todos os setores criativos, em especial naqueles cujos produtos são frutos da integração entre novas tecnologias e conteúdos culturais. Furtado reivindicava há mais de 30 anos o “direito à criatividade”, muito antes do surgimento do conceito anglo-saxônico de “indústrias criativas”! Mas a institucionalidade da SEC foi cassada pelo próprio ministro Juca Ferreira, em 2015, dentro do mesmo governo Dilma que a havia criado! Levanto aqui algumas reflexões sobre extinção da Secretaria Nacional da Economia Criativa que também são oportunas no momento de extinção do próprio ministério:

1. Há uma dificuldade das pastas da cultura em avançar na formulação de políticas públicas que possam intervir de forma eficaz e efetiva nas dinâmicas econômicas dos bens e serviços culturais e criativos. Essa rejeição me parece histórica e se reflete de várias formas: nas insatisfatórias políticas de fomento e financiamento, nas visões assistencialistas da cultura, no apreço ao marketing cultural em detrimento às políticas públicas.

2. Os governos ainda se alimentam de imaginários “desenvolvimentistas” que se limitam à valorização da produção de “hardwares” em detrimento dos “softwares”e, nesse sentido, não reconhecem o papel da cultura como estratégico para o desenvolvimento.

3. A estrutura jurídico-política dos estados é desfavorável a um relacionamento profícuo com os setores culturais e criativos, assim como reduz o espaço da gestão cultural, que participa de forma marginal das decisões políticas sobre o desenvolvimento dos territórios e populações.

4. As políticas públicas para a economia criativa são por natureza, transversais e, por isso, exigem do Estado uma capacidade de concertação e de integração entre pastas e programas, o que nem sempre acontece.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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