Contra a Criminalização da Política, pela Democracia

Dois pontos me parecem centrais para essa reflexão, para que as bandeiras históricas e conquistas sociais e políticas não sejam jogadas na lata do lixo

Estudantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) fazem protesto em frente ao Congresso Nacional

Passado o furacão, reconstruir e fortalecer as bases

Ainda que o momento de efervescência tenha se dissipado, algumas questões surgidas a partir do que se colocou como as “manifestações de junho”, que, em seu auge, mobilizou em torno de 1 milhão de pessoas no país inteiro, merecem uma atenção e reflexões um tanto mais aprofundadas. Ao contrário do que as suas emergências podem demonstrar, não se tratam de questões pontuais e atingem o centro da atuação e participação política de todos aqueles que se consideram cidadãos e sujeitos de direitos em uma dada sociedade.

Procurando ser conciso sem perder a profundidade das questões levantadas, gostaria de colocar esses pontos em suspensão como forma de contribuir para uma participação que é ativa e reflexiva ao mesmo tempo, procurando demonstrar a importância desse segundo movimento para que as nossas ações não joguem contra nós mesmos. Trata-se de um movimento interessante para observar as forças e interesses em jogo em nossa sociedade e em nosso mundo.

Já falei aqui da importância de mobilizarmos, ocuparmos e dar novos – ou resgatar os velhos – sentidos aos espaços públicos, demonstrando que “o povo” ainda pode fazer sim a diferença. Em meu blog pessoal, no calor do momento, teci as minhas considerações sobre as movimentações em desenvolvimento. Passado o seu auge e realizado várias e intermináveis discussões, seja em rodas de amigos seja em rodas de conversas promovidas pelas universidades, alguns pontos me pareceram muito interessantes de serem levantados, para que consigamos refletir criticamente sobre eles e avançarmos na construção de uma política ativa mais consistente do ponto de vista da crítica ao status quo operante.

Assim, dois pontos me parecem centrais para essa reflexão. Trata-se de pontos que devemos evitar, para que as bandeiras históricas e conquistas sociais e políticas não sejam jogadas na lata do lixo sem a menor consideração, por não se refletir de forma aprofundada sobre elas. São esses pontos que procurarei discutir nesse artigo: 1) A criminalização pura a simples da política e; 2) O esvaziamento de bandeiras ou sobre o que afirmam ser a falta de foco nas reivindicações.

Não refletir profundamente sobre esses dois pontos (podem haver outros, mas são os que mais me chamaram atenção nas discussões de que eu participei) coloca em risco um dos aspectos fundamentais que, paradoxalmente, possibilitaram a dimensão que as manifestações ganharam ao longo do mês de junho, que é a democracia – tão arduamente conquistada pela geração anterior a atual.

Os riscos da criminalização da política

Tenho plena consciência de que a hostilidade (física até) demonstrada à participação de partidos políticos nas diversas manifestações representa um desgaste da política representativa. É e foi um aspecto que esteve presente também em outros movimentos de indignação mundo afora, sobretudo no continente ainda mergulhado na crise que é a Europa. E toda essa ojeriza demonstrada é legítima.

O que me preocupa é negar os partidos em uma suposta defesa do país, num nacionalismo no mínimo duvidoso, dado que essa não é uma das características que marcam o brasileiro em sua generalidade. Mais do que isso, essa hostilização impede a efetividade da participação que a democracia possibilita, ou seja, a rua ao ser um espaço público pode (e deve) ser ocupado pelos diversos setores da sociedade que tiverem interesses em defender as suas posições. As próprias manifestações foram o exemplo da pluralidade desses grupos, muitas vezes com reivindicações contraditórias entre si. Embora os partidos políticos sejam a encarnação do poder estruturado, impedir seus militantes de exercerem um direito básico da democracia é não ter compreensão de seus princípios, além demonstrar falta de noção histórica.

Certamente que ser contra partidos – ou “apartidário” como preferem alguns – é completamente legítimo, mas ela guarda suas sutilezas e pode descambar para uma criminalização pura e simples da política, como ficou evidente na última manifestação na Av. Paulista, no dia 19 de junho, que era para celebrar a revogação do reajuste de R$ 0,20, onde houve hostilização e agressão não apenas de militantes de partidos políticos, mas também de militantes de movimentos sociais.

Que fique claro de uma vez por todas, não há atuação em sociedade que não seja política. Peço o perdão para a repetição exaustiva de um clichê mais do que batido, mas sempre verdadeiro: não tomar posição alguma já uma ato político, dizer que não tem partido é um ato político, dizer ser contra partidos é um ato político. Ou seja, o seu posicionamento contra os partidos representa uma postura que é política e estará a favor de interesses de alguns grupos. Hostilizar e agredir, assim, se torna uma criminalização da política na medida em que impede a sua plena manifestação, sob a falácia de algo que é maior do que “uma bandeira” – nesse caso, “em favor do Brasil”.

Isso não é nacionalismo, muito menos patriotismo. É fascismo. Aceitar o jogo democrático é aceitar a pluralidade política, independente de sua bandeira. Questionar os partidos num sentido crítico não é criminalizá-los ou até mesmo afirmarem que todos eles são iguais. Essa é uma crítica rasa, quando não ressentida, sobre a atuação dos partidos em nossa história, pois ela não tem a potencialidade de alterar a estrutura que sustenta essa forma de atuação partidária. Trata-se de uma crítica que confunde, pois tanto pessoas de esquerda quanto de direita promovem tais “críticas”.

Em minha visão, aprofundar os sentidos da atuação política e a crítica sobre os partidos incide em cobrar dos deles o cumprimento e/ou resgate de suas bandeiras históricas (quando isso é possível obviamente, pois devemos reconhecer que há partidos que são meras criações “biônicas” para sustentar determinados poderes instituídos), principalmente dos partidos declaradamente de esquerda em seus espectros ideológicos, pois que a defesa e a luta pelos direitos sociais foram as bases e os fundamentos de seus surgimentos no quadro político do país.

Assim como tudo é político: tudo é ideológico

No segundo ponto que citei acima, na primeira parte deste artigo, coloquei o risco do esvaziamento de bandeiras. Pior do que isso é o levantamento de bandeiras vazias, como a corrupção. Por que se levantam bandeiras como essa, que diz tudo e nada ao mesmo tempo? Mais uma vez explico, essa crítica sem uma compreensão do sistema que possibilita a sua ação não tem a potencialidade de alterar o quadro existente. Por que ficha limpa para os políticos? E aos corruptores que se beneficiam (e sempre se beneficiaram) da estrutura política que vigora em nosso país há muito tempo (talvez desde sempre)?

Bob Fernandes, jornalista da TV Gazeta, coloca muito bem o que significa esse vazio, num texto em seu blog. No fundo, levantar essa bandeira, como demonstra Bob Fernandes, além de pura hipocrisia, demonstra o quanto o desconhecimento e a ocultação de informações jogam apenas para os interesses dos grupos que sempre foram privilegiados em nosso país. A corrupção não é de um partido, não surgiu e nem cresceu por causa de apenas um partido. O fato de que num determinado momento ela se tornou mais evidente é a demonstração de que quem está no governo não é quem detém o poder de fato.

Isso diz algo muito importante para avançarmos na discussão, de que as questões ideológicas ainda significam alguma coisa nesse cenário que, nas vozes de alguns, parece terra arrasada, onde não se salva um.  Nas manifestações também foi colocado em xeque os posicionamentos ideológicos de grupos, seja partidos seja movimentos sociais, como se pudesse haver ideologia pura ou neutra de posicionamentos políticos.

É bom também deixar claro mais esse ponto: questionar posições ideológicas não o fará menos ideológico.

Afirmar que não há mais diferença entre esquerda e direita é desconhecer os seus sentidos em termos práticos de atuação política, seja em que instância for, mas, sobretudo, no cotidiano de nossas vidas vividas. O MPL expressou muito bem essa questão no programa Roda Viva, que foi ao ar no dia 17 de maio: as bandeiras do movimento são indiscutivelmente por direitos sociais, que são bandeiras históricas da esquerda. Simpatizar com suas pautas, portanto, significaria estar no lado esquerdo do espectro ideológico.

Tudo isso pode soar muito abstrato, pois reduzem algumas questões, que serão sempre mais complexas na vida real. Contudo, conceitos são abstrações que procuram dar conta de organizar e explicar o desordenamento que impera na realidade. Os conceitos, assim, surgem da observação da realidade e não por geração espontânea. Eles, felizmente, nunca darão conta de explicar todo o real, mas são definições que permitem nos localizarmos frente ao “deserto do real” e conseguirmos atuar nele. Assim, esquerda e direita são conceitos que podem dizer pouca coisa e você poderia utilizar outros, como “progressista”, “conservador” e “reacionário”, ou aquilo que dê sentido à sua ação e existência no mundo. O certo é que ele tem uma concretização no chão que pisamos.

Os conceitos, por fim, são históricos e são passíveis de diversas apropriações. No entanto, dentro do que vemos historicamente, é inegável o quanto as bandeiras sociais, que foram o que desencadearam as manifestações de junho no Brasil, sempre foram majoritariamente uma luta travada por grupos que se afirmavam declaradamente de esquerda. E mais, todas as conquistas que obtivemos nesse campo são frutos dessas lutas, inclusive o direito pela livre manifestação de suas ideias. Não precisamos ir muito longe em nossa história para comprovarmos isso, a ditadura civil-militar, instaurada através de um golpe de Estado perpetrado pelos militares, com apoio das elites e classes médias brasileiras, foram eficazes na eliminação, em todos os sentidos, de vozes contrárias ao Estado autoritário e ilegal que persistiu por 21 anos.

Por fim… Em defesa da democracia: para abrir os horizontes

Os dois pontos, que coloquei como centrais para a reflexão que realizei nesse artigo, tem a ver com a defesa das instituições democráticas de nosso país, na medida em que a violência ocorrida em alguns momentos demonstraram o claro desconhecimento de seus princípios. Não por parte de grupos fascistas, pois estes não estão interessados mesmo na pluralidade política e participação livre de seus cidadãos. Mas o foco principal de minha reflexão se dirige àqueles que, sem desmerecer as suas idas às ruas, acabaram por auxiliar uma agenda conservadora e reacionária, com o apoio de alguns meios de comunicação, ao não terem conhecimento claro daquilo que estavam defendendo.

Em minha visão, o risco de golpe era e é mínimo – o que não significa que a democracia esteja consolidada – e, a despeito do que determinados setores da sociedade anseiam, o que se demonstrou nas ruas dificilmente poderá ser cooptado de forma simples e rasteira. Contudo, é preciso estar sempre atento e o caminho sempre será na ampliação do debate e não o contrário – pois que a defesa irrestrita da democracia não será nunca defendida pela direita reacionária, ela, no mínimo tolera, mas não hesitará em solapá-la tão logo tenha oportunidade para tal.

O que procurei demonstrar aqui é que agora há uma necessidade de qualificarmos as posturas políticas que emergiram a partir de uma pauta restrita, como a questão do reajuste da tarifa do transporte público. Essa qualificação perpassará inevitavelmente por reconhecer as forças e interesses em jogo na sociedade brasileira. Entra aqui a questão: qual o projeto de país que queremos?

A sociedade se configura como um grande campo permeado de conflitos, de diversas ordens: sociais, culturais, políticas, econômicas, raciais, religiosas, etc. É somente nessas chaves que consigo compreender o seu funcionamento e é somente a partir delas que consigo vislumbrar transformações possíveis. Em momentos de tensão e conflito explícito, essas posições não podem e não conseguem se ocultar, deixando o “rei nu”. Perceber-se nesses espectros é conscientizar-se de que não há como não estar posicionado em um (ou diversos) dos lados desse conflito.

Daí que as discussões que coloquei aqui tem o objetivo de contribuir para aclarar os nossos posicionamentos ideológicos e políticos. Nesses embates, é mais frutífero questionar-se a si próprio e abrir-se para o debate do que reduzir o outro de forma maniqueísta e fechar-se na certeza de que você conhece o “inimigo”. O mais importante da liberdade democrática não é ter o direito de falar o que quiser, mas antes, a partir dessa liberdade, conseguir vislumbrar saídas e possibilidades de transformações da sociedade.

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