Vladimir Safatle: Bento Prado Jr. — Pensar sem Lugar, Escutar sem Limites

No início deste junho, o Colóquio Bento Prado Jr. — Aventuras da Filosofia Brasileira honrou os 80 anos de nascimento e dez anos de morte de Bento Prado Jr., filósofo, professor da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, um dos grandes intelectuais da história do país. Sobre o evento, as inquietudes e o legado de Bento Prado, Capitu conversou com Vladimir Safatle, coordenador da comissão organizadora do colóquio, que desmistifica projetos de filosofias nacionais, descreve na crítica da ideia de sujeito uma renovação ética e política possível e defende uma prática filosófica que costure contrários e transborde fronteiras.

O subtítulo do colóquio é “as aventuras da filosofia brasileira”. Vocês conseguem definir o que seria essa filosofia brasileira — ela pode ser delimitada como uma “filosofia alemã” ou uma “filosofia francesa”? Como Bento Prado se enquadra nessa filosofia brasileira?

Esta é uma maneira de colocar a questão: a quem interessa insistir atualmente na existência de “filosofias nacionais”? Elas servem para, de fato, descrever o jogo de forças imanentes a experiências filosóficas singulares, experiências estas que se fazem, na verdade, através não do respeito, mas da desqualificação de tradições, do salto improvável em direção ao que não andava junto (como Deleuze e sua “tradição” composta pelo inglês Hume, pelo francês Bergson, pelo holandês Spinoza e pelo alemão Nietzsche)? Ou elas servem para reiterar a existência de um espírito que só existe para dar alguma organicidade ao Estado-nação com seu símile intangível e “imaterial”, a saber, a “cultura nacional”? Se tivermos tais questões em mente podemos medir o tamanho da inovação empreendida por Bento Prado. Em vez de procurar afirmar uma especificidade nacional, ou de se filiar a alguma tradição filosófica historicamente constituída, Bento insistiu em pensar sem lugar. Isto significa: pensar ouvindo as ressonâncias a respeito das quais a filiação a projetos e tradições nos deixou surdos. Pensar desconsiderando os limites que a identidade da adesão a filiações nos impõe. A distância em relação aos centros produtores dos textos que compuseram o cânone da história da filosofia, o descentramento em relação à sua geografia, não aparece como desterro, mas como a possibilidade de uma escuta sem limites.

Pondo a questão anterior sob outro ângulo: penso que ao se falar de filosofia brasileira, o que se aponta é um processo em que filosofias estrangeiras são retrabalhadas em condições difíceis, e sem um impacto comparável, até pela questão da língua.

Bem, podemos inverter o valor de sua questão e dizer que talvez esta seja uma condição importante para fazer filosofia hoje. Pois esse retrabalho é a condição do exercício de um movimento de relações que exige os fluxos contínuos de tradução, a reconstrução em linguagens que não foram aquelas nas quais os problemas em questão foram inicialmente originados. Como se só fosse possível pensar traduzindo os problemas em uma língua “errada”. Mas “errada” não porque incorreta. “Errada” porque fruto de uma errância, de um deslocamento parecido àquele que Samuel Beckett se auto-impôs ao decidir escrever em uma língua que não era a sua. Não creio que o caminho esteja em estabelecer um estilo e um conjunto de objetos que “seriam nossos”, mas de assumir essa condição de estar a constituir uma fala sem lugar, fruto da compreensão de uma circulação global de discursos.

Como essa situação periférica afeta o percurso de Bento Prado? O que ela herda da tradição filosófica e que originalidade alcança?

Eu insistiria em uma dimensão propriamente filosófica deste movimento descentrado. Pois se o lugar do pensar é o desabamento dos lugares, se sua geografia é a anulação dos limites dos espaços, é porque todo pensar efetivo é aquilo que se deixa impulsionar por uma experiência comum que, no entanto, não tem língua própria. Um fundo comum que é fundamento, Grund, mas ao mesmo tempo abismo, Abgrund. Não há uma gramática comum que faria de todas as tradições a emulação dos mesmos problemas, um esperanto filosófico. No entanto, toda gramática específica é atravessada por aquilo que ela não apreende integralmente e que produz experiências que nos levam a “metamorfoses categoriais”. A aposta de Bento Prado era de que deveríamos pensar a partir deste atravessamento, confrontando-se com este comum desprovido de linguagem própria, mas que se revela no quiasma entre incompatíveis (como poderiam ser incompatíveis Deleuze e Wittgenstein). Ao fim e ao cabo, por mais improvável que possa parecer, esta era a melhor resposta sobre o que significava fazer filosofia no Brasil. Foi esta resposta que Bento Prado nos legou.

Qual o legado, para a filosofia brasileira contemporânea, dos esforços de Bento Prado? No mesmo sentido: o que os trabalhos recebidos e aprovados para o colóquio mostram do filósofo, quais pontos esclarecem ou ampliam — isto é, que panorama traz o colóquio?

O que vemos é que Bento Prado representa ainda para muitos a possibilidade de servir-se da filosofia para refletir desrespeitando fronteiras e objetos específicos. A natureza universalista do discurso filosófico lhe é constitutiva, cabendo a nós compreender de maneira mais precisa e crítica o que pode ser “universalismo” neste contexto. Se compreendermos tal universalismo como a tentativa de identificar um conjunto de valores comuns aos quais o pensamento deve se vincular, teremos a submissão da filosofia a uma certa “humanidade” normativa e, muitas vezes, colonial. Mas se compreendermos “universalismo” como o que faz com que nosso pensamento nunca se reduza ao contexto no qual ele foi enunciado, se o compreendermos como a constituição, sempre possível, de um campo de implicação genérica próprio a todo verdadeiro ato de pensar, então acho que estaremos mais próximos do que representou para nós a experiência intelectual de Bento Prado.

No colóquio, será lançado o livro póstumo Ipseitas. O que esse lançamento implica para os futuros estudos sobre Bento Prado? Que novidade ou aprofundamento traz em relação às obras já publicadas?

Este era o primeiro volume do que deveria ser a trilogia mais importante de Bento Prado. Era evidente a importância que ele dava a tal trabalho, que deveria ser uma espécie de obra magna que apareceria como o saldo de uma vida de reflexão filosófica. Mesmo que o livro encontre-se em estado de manuscrito incompleto, tenho certeza de que ele saberá apontar os caminhos que Bento Prado gostaria de trilhar no interior dos debates da filosofia contemporânea do sujeito. Neste sentido, o livro serve como um horizonte a ser completado por novas gerações

Gostaria que comentasse as principais áreas de atuação de Bento Prado. Ética, política, estética — brevemente, como podemos ter um panorama do que ele tentou realizar nesses campos?

Os principais pontos de interface na experiência filosófica de Bento Prado são a literatura e a psicanálise (ou o campo mais amplo das epistemologias da psicologia). A meu ver, este é o resultado de sua questão filosófica fundamental ser, como eu dissera em artigo recente na Folha de S.Paulo: Que seria ser si mesmo? O que significa falar na primeira pessoa? Mas, principalmente, que alteridade tal afirmação de si implica? De fato, Bento Prado procura nos lembrar como há uma alteridade lá onde acreditava encontrar apenas o que me é “próprio”. Esta é talvez a alteridade mais difícil de apreender, mesmo que seja a mais necessária a desvelar. Daí seu interesse em produzir uma filosofia capaz de construir quiasmas com discursos do descentramento e do atravessamento de si, como a psicanálise e a literatura moderna. Bento não foi apenas o responsável por desenvolver entre nós uma certa liberdade da filosofia em relação a seus objetos, problemas e tradição. Ele foi quem serviu-se desta liberdade para fazer perguntas como: O que é uma filosofia que ouve a linguagem bruta de Guimarães Rosa? O que é uma filosofia que se pergunta pela opacidade do inconsciente?

Essa questão do sujeito, referida na coluna para a Folha, me lembra de um outro texto, também seu, que saiu na Cult, sobre Lacan. Ali, se não me engano, experiências de dissolução do sujeito anunciavam certas possibilidades de emancipação política e ética. É esse um potencial que podemos avistar também em Bento Prado? O que a discussão que ele traz implica para o nosso colocar-se no mundo?

De fato, a reflexão sobre a “impropriedade do si mesmo” é um ponto a aproximar Bento e Lacan, autor que ele conhecia bem e a quem dedicou um importante texto sobre as relações entre imaginário e biologia. Eu diria que esta pode ser uma base para a reflexão sobre o impacto ético e político de uma dinâmica de reconhecimento da alteridade que não se reduza apenas à temática do reconhecimento da outra consciência, mas que vá mais além perguntando-se sobre o reconhecimento daquilo que não tem a forma da consciência, mas que, no entanto, nos implica. Eu mesmo procurei desenvolver este ponto em meus últimos livros e procurei, no último capítulo de Grande Hotel Abismo, mostrar como este era um debate herdado das reflexões de Bento Prado.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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