Luciana Zaterka: Filosofia da Química, Nietzsche e Transhumanismo

Autora, com Ronei Mocellin, de um livro sobre a identidade epistêmica da química, a doutora em filosofia fala das relações entre a ciência e história, ciência e ética, ciência e economia, entre outros temas

Em janeiro de 2022, será lançado pela editora Ideia & Letras Ensaios de História e Filosofia da Química, trabalho dos filósofos Luciana Zaterka e Ronei Mocellin que investiga o que caracteriza a química como ciência, analisando a sua formação histórica, os contextos sociais e econômicos em que está imbricada, suas implicações éticas. À Úrsula, Luciana comenta, na entrevista abaixo, todos esses temas, além de se referir também ao afastamento dos cientistas em relação à história das suas áreas – e as consequências disso –, à tese de que o filósofo Friedrich Nietzsche teria dado base ao negacionismo que permeia o nosso presente. Por fim, trata de transhumanismo e dos seus interesses de pesquisa futuros.

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Luciana é pós-doutora em história da ciência e doutora em filosofia, com mestrado e bacharelado tanto em química quanto em filosofia. Professora de filosofia moderna na Universidade Federal do ABC (UFABC), ela é também autora de A Filosofia Experimental do Século XVIII: Francis Bacon e Robert Boyle e editora do livro Life and Evolution: Latin American Essays on the History and Philosophy of Biology. Acesse outras informações no seu site pessoal.

A filósofa Luciana Zaterka

Eu queria que você falasse um pouco sobre a filosofia da química – mesmo dentro da filosofia não é muito comum que se conheça – e qual a situação da pesquisa nessa área no Brasil.

Realmente. Quando a gente fala na interface da filosofia com as ciências, mesmo na epistemologia, na teoria do conhecimento etc, tomar a química como estudo de caso, ou a química com a sua identidade epistêmica, com a sua cara, é muito difícil. A gente vê muito filosofia da física, a gente vê bastante coisa – atualmente, de uns quinze anos pra cá – de filosofia da biologia. Mas filosofia da química não é realmente uma área de estudos comum. Eu até queria estudar a razão disso. É claro que você tem uma perspectiva da filosofia da ciência, até porque as ditas ciências mais abstratas, teóricas, matematizantes, elas ganharam sempre um estatuto mais importante – os “pais” da revolução científica são sempre aqueles que trabalharam com astronomia, com matemática, com física – na historiografia das ciências, essas ciências matematizantes têm um lugar mais importante. A química acabou sendo descoberta como tão importante quanto numa historiografia mais recente. E isso significa – acho que você vai num ponto central – que nós não temos muitos filósofos e historiadores da química no Brasil.

Encontramos alguns grupos, é verdade. Por exemplo, grupos de pessoas bem mais velhas, que eram químicos de formação – é interessante, porque na história da ciência isso sempre foi muito comum: aquelas pessoas que trabalhavam nas suas ciências, depois elas se aposentam e aí elas vão fazer uma história da física, uma história da biologia, uma história da química – pessoas que atuaram sempre nessa interface, da história da química e química propriamente dita, sempre estudos mais voltados para a história. Você tem também grupos que ou estão dentro de um departamento de história ou conseguiram montar uma pós-graduação em história da ciência, mas sempre, esses historiadores da química, com uma pegada mais histórica que epistemológica. Então, o número de filósofos da química mesmo no Brasil não é muito grande.

Foi uma alegria encontrar o Ronei, que é um filósofo também, tem uma formação parecida com a minha, então a gente pode discutir temas em comum. Acho que o grande barato dessa história é que a gente sempre procurou, nesses 10 ou 12 anos que trabalhamos juntos, fornecer o que seria essa identidade epistêmica da química. Por que a química é diferente? Ela não pode ser reduzida à física. Ela tem uma interface forte com questões de biologia, mas também não pode ser reduzida à biologia. O que é que faz a química ser, de fato, dos pontos de vista histórico e epistêmico, uma ciência própria? Nesse livro, tentamos dar uma resposta pra isso. Não sei se conseguimos, mas, enfim, tentamos.

O filósofo Ronei Mocellin

Você consegue dizer a qual resposta vocês chegaram? Qual é a identidade epistêmica da química, assim de uma forma geral?

Olha, os capítulos são uma argumentação em várias perspectivas – historiográfica, filosófica, sociológica –, claro que é juntando tudo isso que tentamos dar uma resposta mais precisa. Mas eu poderia te adiantar que a identidade epistêmica da química está na relação, na imbricação, entre o lado teórico e o lado prático. É uma ciência que você não consegue defini-la sem o laboratório – ela tem um espaço epistêmico. Um físico, por exemplo, faz experiências? Lógico. Astrônomos fazem experiências? Lógico. Mas a química tem um diferencial: ela tem um espaço próprio dessas experiências. Eu não posso fazer muitos dos procedimentos químicos se não for no laboratório, nesse espaço absolutamente montado, criado para esse manuseio laboratorial. E eu não defino as substâncias químicas por si, aprioristicamente. A química surge na relação entre os materiais, nas reações químicas.

Mais do que isso, e esse é o ponto primeiro e principal, penso que o modo de existência dos produtos químicos é fundamental. O que quero dizer com isso: não importa somente o local em que esse fármaco, em que essa substância, em que essa molécula foi produzida, só o laboratório ou só a indústria. Os produtos químicos são soltos na sociedade. Então, eu tenho que me preocupar com a temporalidade, com os desdobramentos ecológicos, com as questões econômicas. Os materiais químicos eles vão se imbricando, por vários caminhos, na sociedade. Não é simplesmente produzi-los e pronto.

E tem uma terceira questão que eu acho fundamental: falar em química é falar necessariamente em algo que é incerto. Quando, no laboratório, numa indústria, se produz alguma coisa, pode-se ter a melhor das boas vontades, mas, na história que eu solto esse produto, ele pode ter interações outras. Uma coisa é fazer testes laboratoriais com algumas centenas de moléculas. Outra coisa é soltar isso na atmosfera, em relação com os animais, com as plantas. Essa molécula pode ser absorvida, e aí o que acontece? Aí entra algo que trabalhamos bastante na conclusão: a relação entre a química e a ética. O que a gente tem de fazer para minimizar as incertezas? A gente não vive sem a química, é uma ingenuidade falar que o que é natural não tem química. Por outro lado, é claro que é uma ciência que tem riscos, ela está ligada à tecnociência. Isso não significa não confiar nela – muito pelo contrário, precisamos dela – mas tentar lidar com ela de uma outra maneira.

Você falou um pouco no começo dessa questão de que os químicos, no fim da vida, se dedicam a fazer uma história da química. O Thomas Kuhn também fala de como as ciências, diferentemente da filosofia, o mais avançado é colocado em uma espécie de manual, que é o contato que os recém-chegados têm com o que a área produz. Como você vê esse, digamos, abandono da história por parte das ciências e o que a gente pode aprender retornando à história das ciências?

Nossa, por acaso você tocou no final do nosso capítulo 2. Esse capítulo, chamado “História Natural, Filosofia Experimental e a Emergência da Química Moderna”, tem dois pontos principais. A gente começa com um tema muito caro, que é a filosofia experimental – nascida com Francis Bacon, desenvolvida pelos membros da Royal Society –, e mostra como essa filosofia experimental entra no século XVIII, no século das luzes.

E aí é interessante porque você vai ter mais do que uma filosofia experimental: há nomes como [Herman] Boerhaave, um químico que adere à perspectiva da Royal Society, e há pensadores como [Jacques] Diderot e Gabriel François Venel, que não aderem à filosofia experimental de homens como [Robert] Boyle, Robert Hooke e Francis Bacon, porque eles vão enfatizar o que eles acreditam que é um âmbito prático e operacional e vão deixar de lado, por exemplo, teorias a priori como a teoria corpuscular da matéria, do Boyle. Eles acreditam que vão para o laboratório sem teorias a priori – se isso é possível ou não, é uma outra questão. Você tem essas filosofias experimentais no século das Luzes – e, a gente sabe disso, esse é um grande momento de divulgação, é a época das enciclopédias, dos compêndios, dos grandes tratados e manuais. A química começa a ser disseminada no meio dessa empreitada.

O químico tem de tomar muito cuidado com os valores ditos externos: econômicos, políticos e assim por diante. Nessa perspectiva, eu diria que a história e a filosofia da química são essenciais

Em um terceiro momento desse capítulo, a gente mostra que a química se torna uma ciência autônoma quando ela consegue desenvolver uma nomenclatura própria. Mas quando o senhor [Antoine] Lavoisier e, é claro, toda uma corrente, fornecem à química um estatuto e uma nomenclatura, ele deixa de lado a história. Até então, com Bacon, os membros da Royal Society, [os pensadores do] início do XVIII, toda vez que você falava do antimônio, você contava a história do antimônio, todas as pessoas que tinham lidado com o antimônio – para então entrar no seu assunto. Com Lavoisier, a história sai de cena. Aí você tem uma química muito mais dogmática, muito mais fechada, muito mais técnica – tecnicista, se você quiser. E é só agora, no século XX, que a gente volta e tenta mostrar – por meio da história e da filosofia da ciência, por meio da história e da filosofia da química – a importância de saber como as descobertas foram feitas, para que você não seja um alienígena dentro do seu próprio mundo – você aperta um botão e não sabe nem o que é a luz… porque é isso: sem a história e a filosofia, nós nos tornamos apartados do mundo, porque são elas que nos relatam como que as coisas chegaram a ser o que elas são. Como historiadora da ciência, eu sou uma entusiasta: é impossível você fazer filosofia da química sem a história, e vice-versa.

Mas você diria que os cientistas, os químicos, ganhariam algo, na prática atual deles, mais tecnicista, se eles se voltassem para a história?

Para desenvolver as suas pesquisas individuais, técnicas, acho que não. Mas eu não tenho dúvida que eles se tornariam químicos muito mais atuantes, com preocupações éticas, biológicas, sociológicas. Que químico a gente quer formar? É um químico absolutamente técnico? Ou a gente quer um químico com a perspectiva de que a química produz substâncias que ganham modos de existência, que a química pode produzir riscos e incertezas? A gente quer que o químico conheça textos clássicos como o de [Herbert] Marcuse, que trata da responsabilidade social e, portanto, mostra que o químico tem, sim, responsabilidade no seu laboratório e tem de tomar muito cuidado com quais valores [trabalha]. E aqui eu não estou me restringindo aos valores cognitivos, de adequabilidade empírica, aos valores internos à ciência. Esse químico tem que estar preocupado com os valores ditos externos: econômicos, políticos e assim por diante. Nessa segunda perspectiva, eu diria que a história e a filosofia da química são essenciais.

Em uma entrevista, você se referiu à ideia de que a gente não pode separar fato e valor. Queria que você falasse um pouco disso.

Para nós, é fundamental fazer essa distinção entre os valores internos à ciência e os valores que hoje sustentam a prática científica. Quando, por exemplo, no livro, se fala da questão dos plásticos – a loucura que é essa temporalidade do plástico, um simples copo de café dura seiscentos anos, e como o plástico penetra em outros modos de existência, não só na natureza, mas nos corpos humanos (já está na placenta…) – a gente chega em um ponto fundamental: você tem uma perspectiva econômica, capitalista etc, que dirige a ciência e tem interesse na continuação da produção do plástico. Quando você discute questões de ciência e valor, você pode – isso aprendi com o professor Hugh Lacey – continuar a pensar no desenvolvimento de materiais como o plástico, mas, podendo pensar em outras perspectivas para sustentar a química. A gente traz como exemplo um estudo de poloneses que conseguiram produzir as mesmas características do plástico, mas com produtos 100% renováveis. Nós sabemos, temos conhecimento, conhecemos as metodologias – a gente tem de usar isso que a química hoje já sabe para minimizar os problemas ecológicos, de saúde humana etc. O que precisa é ter interesse.

Isso é que é gigante na ciência: ela pode se aprimorar, se desenvolver, ela pode falar ‘isso aqui está errado, sim’. É isso que faz dela o que ela é; isso é um ponto positivo que os negacionistas querem usar como ponto negativo

Quando eu dou palestras, as pessoas falam pra mim: “Quem vai ter interesse? É muito caro investir nisso”. É caro até um momento; depois que você tem a tecnologia, o meio ambiente, o planeta Terra, nós vamos sair ganhando com isso. É uma questão de você por na balança e pensar a médio prazo.

A influência de Friedrich Nietzsche é muito grande na sua história, na sua pesquisa. Em debates frequentes, as pessoas acusam tanto Nietzsche quanto o que elas chamam de pós-modernismo de solapar as bases da ciência, de negar que possa existir verdade, assim abrindo espaço a essa presente de “pós-verdade”. Como você vê isso? Nietzsche abriu espaço para as fake news

O Nietzsche tem uma importância fundamental na minha formação. Como eu venho das ciências duras – eu tenho graduação e mestrado em química – Nietzsche foi uma ferramenta que me fez enxergar que a ciência não pode ser dogmática, que não existe neutralidade científica coisa nenhuma, que a ciência é uma construção etc.

É claro que o radicalismo do Nietzsche, o chamado perspectivismo nietzscheano, abriu, sim, caminhos [para a pós-verdade] – assim como os franceses e os pós-construtivistas – mas eu acho que [isso se deu] porque foram mal lidos, mal contextualizados, ou seja: pessoas que não conhecem de fato o contexto e a razão de ser dessas obras – quem eram os interlocutores de [Gilles] Deleuze, de [Michel] Foucault, de Nietzsche, de [Jacques] Derrida e assim por diante – leram na vertical, leram muito mal, se apropriaram de uma maneira absolutamente superficial e é como se tivessem conseguido ter uma base teórica para justificar esse absurdo que a gente está vendo hoje. Esses autores são muito sérios, muito bons, muito competentes, que abriram perspectivas extremamente importantes para a gente pensar a sociedade, o corpo, a saúde, a doença, a vida – mas são autores que têm de ser contextualizados, e, como em qualquer área de estudos, eles precisam ser lidos seriamente, com todo rigor e cuidado.

De qualquer maneira, o Nietzsche que me é tão caro foi um Nietzsche parcial. Foi um Nietzsche que deu uma chacoalhada em mim, que me me mostrou que a ciência não é a ciência dos humanistas, a ciência da neutralidade, a ciência imparcial – isso foi muito bom pra mim. Mas eu não sou nietzscheana quando eu falo de filosofia da ciência. Nietzsche foi um instrumento de trabalho. Eu uso Nietzsche até um determinado momento – naquela dúvida mitigada, proveitosa, naquela dúvida que você vai até um ponto; o ponto seguinte não é um relativismo e não é um perspectivismo. Claro que eu acredito que a ciência é mutável, ela não possui verdades absolutas, mas eu acho que isso é extremamente salutar para ciência. É por isso que a ciência não é uma religião – a religião trabalha com dogmas; a ciência trabalha com verdades, com verossimilhança, se você quiser usar uma terminologia do [Karl] Popper. Isso é que é gigante na ciência: ela pode se aprimorar, se desenvolver, ela pode falar ‘isso aqui está errado, sim’. É isso que faz dela o que ela é, não tem problema algum; isso é um ponto positivo que os negacionistas querem usar como ponto negativo.

Para terminar, eu gostaria que você falasse da sua pesquisa de uma forma mais geral, de como esse livro a ser lançado se posiciona nessa pesquisa e o que você pretende fazer depois.

Eu trabalho já há bastante tempo com o que eu chamo de programa baconiano do conhecimento. O que é isso? É você ter, desde a modernidade, do século XVII, não mais só uma intervenção sobre a natureza, mas também intervenções sobre o próprio corpo, que se torna um objeto técnico – as primeiras transfusões de sangue começaram nesse século, essa perspectiva de conseguir a longevidade, de adiar a morte, de acreditar que espíritos jovens poderiam ser inseridos em corpos velhos para rejuvenescer os tecidos (uma ideia absolutamente atual, do transhumanismo!). Eu trabalho com a origem desse programa e como isso ganhou determinadas dimensões, por exemplo, ao longo do século XVIII, com as questões de [Julien Offray de] La Mettrie e o corpo como máquina; depois o cientificismo, a eugenia tomaram ainda mais o corpo como objeto.

Mais ou menos de uns cinco anos pra cá, até saiu um artigo meu na revista Aurora, eu comecei a trabalhar com questões de transhumanismo, [a pensar] pela perspectiva das substâncias químicas e da biologia, como o corpo está sendo transformado – experimentos de criogenia, por exemplo. Então, hoje em dia, [abordo esse] programa de longa duração, que vem do século XVII até a nossa época, e eu escolho alguns momentos históricos para ver como essa filosofia experimental entrou no âmbito da vida.

Para o ano que vem, eu fui convidada a reeditar o meu primeiro livro, que foi a minha tese de doutorado, defendida com a [Marilena] Chauí, Filosofia Experimental no Século XVII: Francis Bacon e Robert Boyle. Esse estudo está esgotado. Eu quero reeditá-lo com um ou dois capítulos a mais, então agora estou começando a trabalhar em um capítulo [estudando] o Boyle e a Donna Haraway, que trabalha com questões do transhumanismo e sobre a ciência de um modo geral. Boyle foi um dos primeiros a efetuar a bomba a vácuo e fazer experimentos dentro dela; punha pássaros, galinhas nela, porque queria descobrir se o ar era responsável ou não pela vida desses animais. Há todo um estudo que mostra como surgiram esses primeiros experimentos, qual era o lugar do testemunho neles, quem eram as pessoas que davam aval a eles, e a Donna Haraway problematiza o locus tanto dos experimentos quanto dos testemunhos. Então, agora eu vou voltar um pouco para a origem do programa baconiano, para tentar entender quem eram essas testemunhas, se era uma ciência publicizada ou não, porque isso talvez dê um gancho para eu começar a olhar para o desenvolvimento da ciência de uma outra maneira.

Acho que nos próximos dois anos o barato vai ser esse.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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