Está morto, podemos chamá-lo de filósofo: sobre Olavo e outras questões

A multifacetada recepção do falecido e propostas de como e por que lê-lo

Pombos em um tabuleiro gigante de xadrez | imagem: Vlad K

Na medida em que Olavo de Carvalho queria ser considerado como filósofo, sua morte é o melhor que lhe poderia ter acontecido. Vivo, pela sua personalidade e pelas suas cruzadas ideológicas, seria sempre visto através do prisma de relações de poder, seja pela condição de aliado ou adversário político, seja como elemento na disputa por capital simbólico, isto é, por ativos de reconhecimento e valor social (o conceito é do sociólogo Pierre Bourdieu; trazemos aqui só uma definição rápida). Assim, por um lado, Olavo foi lido como um repositório de recursos para a ação política de certa direita e como o provedor de uma marca de distinção para esse grupo; por outro, como opositor a desbancar ou intelectual amador a denunciar ou, ainda, figura folclórica surpreendentemente influente, apesar de tantas boas piadas.

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>> “Existem filósofos no Brasil?“, por Lucas Nascimento
>> “Mapa do espectro político da direita“, por Rafael Teixeira

Não há, hoje, texto do Olavo, por mais metafísico que seja, capaz de escapar de estar arraigado a essas lutas. A relação com a obra de Olavo logo de início passa por alguma tomada de posição. Ao núcleo duro dos leitores do falecido, que inclui os fiéis do Seminário de Filosofia – o curso oferecido por ele desde 2009 – essa relação foi marcada por estrutura hierárquica dentro da qual os discípulos expressam humildade e respeito diante do mestre (para notar isso, basta ver os comentários na página do professor no Facebook, todos cheios de dedos). Era Olavo quem detinha o poder de atestar se estavam no caminho da evolução intelectual e/ou o cultivo da proximidade com Olavo era indicativo de uma evolução intelectual. Ainda mais, segui-lo era ser especial, constituía o signo de um destacamento do comum social – o que se constata nos depoimentos de Pedro Sette-Câmara e Martim Vasquez da Cunha. Esse perfil de recepção gostaria de ser hegemônico: é dele que vem, sempre que se faz uma pequenina crítica, a (auto)afirmação da inalcançável superioridade intelectual de Olavo, objeto de culto.

Para outros setores da direita – da direita? Me pergunto se essa assimilação do leitorado de Olavo à direita pode mesmo ser automática –, ele aparecia não só como intelectual orgânico, mas enquanto um recurso nas brigas por hegemonia (essas referências a conceitos do teórico marxista Antonio Gramsci irritariam Olavo? Digo que o agradariam: ele, no fundo, foi um grande gramscista…1). A filosofia (ou a erudição) é apropriada pela política como lastro; o filósofo, o erudito, apenas por aderirem a um lado, concedem a ele uma qualificação, uma reserva de pensamento, uma profundidade. Olavo cumpriu esse papel: deu a uma direita recalcitrante um chão filosófico, murado de arrogância, no qual poderia se desenvolver. Além disso, entre as cartas das quais dispunha, havia aquela do Filósofo – alguém anterior, que não exatamente dita o que se deve pensar, mas que garante que o seu pensamento se dá em uma ambiente fundamentado. Olavo, aliás, sabia que esse jogo estava sendo jogado e se esforçou para criar um cânone; daí seu esforço por dignificar nomes como Mário Ferreira dos Santos.

Do lado negativo da recepção, duas grandes posturas. A academia o enxerga como amador, pois teria feito seu trabalho filosófico sem submetê-lo ao debate do grupo de pesquisadores do meio, uma prática que visa garantir a qualidade das pesquisas (essa história me parece um pouco mais complicada do que isso, mas para os propósitos deste texto a deixemos como está). Acrescente-se a isso seu típico polemismo e a metralhadora de ofensas que dirigia contra profissionais da universidade e se entenderá que Olavo, nessa seara, seja menos detestado do que ignorado. Já a esquerda o identifica como ideólogo do que há de pior na sociedade brasileira, por exemplo, quando nega a contribuição negra às culturas do Brasil e do mundo, despreza os saberes e religiões africanos, normaliza a escravidão e mesmo culpa os negros por terem sido escravizados (veja uma análise sobre isso na revista Griot). Olavo, de resto, constantemente incentivou, de forma mais ou menos explícita, um golpe militar2, e aconselhou a criminalização do “comunismo”3 (o modo como ele define esse termo tem a flexibilidade da paranoia; no fundo, isso suporta a criminalização de qualquer dito inimigo) e, ao descrever a esquerda, levou a falácia do espantalho to a whole new level4. Dessa forma, ler Olavo, para esse setor, equivaleria a endosso ou capitulação. Caberia, então, recusar sua obra em lote, para evitar suas decorrências destrutivas.

Esses são tipos ideais; creio que a recepção ao professor, intelectual orgânico, filósofo, ideólogo pode ser mapeada com modulações das categorias que eu esbocei aqui. Sobraria ainda falar do bufão e caricato. Olavo se popularizou também por ser um tipo de Dercy Gonçalves – desbocado, pródigo em palavrões – e por ter uma presença de vídeo fundada em agressividade e sarcasmo, o que funciona muito bem on-line (compare com o Felipe Neto em sua primeira fase [exemplo] ou um personagem como o Sr. K., do Nerdcast). Podia igualmente utilizar um humor rasteiro e infantil (criava, por exemplo, “apelidos” como Arruinaldo Azevedo, para o colunista Reinaldo Azevedo, e “Éporca”, para a revista Época aparentemente alguns orgulhosos olavetes consideram isso um sinal de gênio). Essa ridicularização do outro é do mesmo modo bem-sucedida em outros âmbitos (pense em um programa como o Comedy Central Roast – enfatizo esses paralelos para demonstrar que Olavo é a manifestação de uma estética que não se reduz a ele, e que continua efetiva em outros espaços). Com isso, muito se ria com Olavo; mas, claro, ria-se dele também. O filósofo se deixou levar por todo tipo de parvoíce, como a de que havia pedaços de feto na Pepsi. Não quero dar muita atenção a isso, porém, pois as piadas não ajuda muito em desconstruir Olavo.

Veem-se as redes em que os textos do Olavo se inscrevem e em que agem. São intrincadas e vigentes: talvez tenhamos de esperar décadas ou século para que se desfaçam e outras leituras sejam possíveis. Sob esse apaziguamento, as contribuições de Olavo, quais sejam, poderão ser aquilatadas sem tantos vieses. Isso não é inusual: ora, não lemos sem peso na consciência Martin Heidegger (1889-1976), filósofo que foi filiado ao Partido Nazista e de quem as cartas comprovariam o antissemitismo (há controvérsias)? E isso tendo em vista que 2ª Guerra não está apagada do nosso horizonte político. Os conflitos se tornam cada vez mais opacos conforme se afastam as épocas em que cativavam as atenções; as partes de uma obra filosófica se destacam dos interesses do seu tempo e se abrem a uma percepção fria e produtiva. A quem, hoje, soa necessário tomar partido, junto com Blaise Pascal (1623-1662), pelos jansenistas e contra os jesuítas? Todas as lutas podem chegar ao ponto em que serão vistas pelos pósteros como Gulliver via a guerra entre o povo que abria os ovos por cima e o que abria por baixo.

Olavo de Carvalho em nova perspectiva – já

Isso ocorrerá com as nossas lutas (se ainda houver vida na Terra plana ou não acharmos outra para repetir nossos erros), e nesse momento  será simples apenas analisar algo como a teoria de Olavo sobre os quatro discursos de Aristóteles, sem se preocupar (muito) com outras das suas opiniões. Mas, até lá, precisamos estar travados nas posições que eu esquematizei acima? Não. É possível e necessário, tanto à direita quanto à esquerda, empreender abordagens outras. Seguem algumas proposições nesse sentido.

Veja também:
>> “De onde vem o olavismo? A academia deve fazer uma autocrítica“, por Lucas Nascimento
>> “Espero que outros alunos de Olavo percebam como percebi: não há nada ali“, por Horácio Neiva

Os alunos ou admiradores de Olavo precisam “matar o pai”, para usar uma expressão de Freud. É contrária mesmo à filosofia de Olavo a reverência que ele lhes pedia e que eles lhes concedem. A hostilidade direcionada aos olavetes que viraram a casaca (exigência de lealdade e gratidão), a proteção dos textos olavianos que recorre à carteirada e à acusação de inveja, a constrição auto-imposta sempre que se vai fazer o mínimo reparo a qualquer coisa que o mestre disse – tudo isso são amarras que Olavo, apesar do que promulgava sobre liberdade intelectual, legou a eles. Também não é preciso assinar embaixo do que o marketing pessoal recomendou que o “único filósofo brasileiro” (risos) dissesse. A aclamada, nesses nichos, excepcional erudição de Olavo não é excepcional, embora, claro, impressionante fora dos meios acadêmicos. Seus livros, por melhores que sejam, não são intocáveis ou inigualáveis como um quinto evangelho. São livros de filosofia e têm a estatura dos livros de filosofia. Partir disso não é perdê-lo como filósofo – é inclui-lo, sem couraça, no debate filosófico (por exemplo, pode-se tentar responder à pergunta que Olavo anularia com ironia: qual é, de fato, a relevância da sua teoria dos quatro discursos?).

Esse grupo precisa, ademais, discernir o valor das ideias do Olavo dos efeitos da sua retórica. Combatente eficaz, ele consegue caricaturizar e/ou dar a aparência de ter levado ao absurdo seus oponentes com rapidez. Uma frase impactante, um escárnio bem dado, e um corpo de pensamento soa, mais que derrotado, indigno de ser confrontado. Esses procedimentos não são estranhos à filosofia, não obstante, podem suprimi-la se excessivos, fazendo de todo diálogo performance erística. Caso não queiram ser apenas gente que quer ganhar debates, custe o que custar, os alunos ou admiradores de Olavo precisam perceber como a sua representação dos autores que ataca (com base na seleção de trechos atacáveis) é insuficiente e conveniente, e que o polemista – adequando-se ao que Popper chamaria de pseudociência – construiu em torno de si uma redoma de irrefutabilidade, na medida em que podia dispensar como imbecis, iletrados, analfabetos (termos dele) todos que defendessem pontos de vista alternativos. Você pode até acreditar que quem o critica “não entendeu ou não leu o que ele escreveu”, mas precisa notar que essa tese é poderosa demais; pode ser tanto verdade (a comprovar) quanto esconderijo.

Quanto ao outro lado político-epistemológico (no qual, não haja dúvida, eu me inscrevo), uma das primeiras necessidades é deixar pra lá a desqualificação de Olavo como filósofo. “Filósofo” não é um elogio, só informa que a pessoa atua com textos e/ou problemas abrangidos pelo que se convencionou ser (o que é dependente de época e lugar) a filosofia. Concedo: há um halo de santidade na palavra – sentimos por vezes que devemos atribui-la somente a líderes espirituais, atletas da ética e vanguardistas do pensamento. Há muito de falsificação e redução da história da filosofia nisso. Os filósofos, muito mais numerosos do que os contidos pela coleção Os Pensadores, também foram cientistas, políticos e religiosos comuns, de influência sempre muito marcada pela tradição de intelectuais menores ou maiores que deram a si o trabalho de retomá-los na posteridade. São os manuais de filosofia que criam a ilusão de uma sucessão de gigantes. É mais adequado e factível entender a palavra “filósofo” com a trivialidade de “jornalista” ou “pescador”. Simplesmente esses escrevem jornais e pegam peixes e aqueles leem e escrevem “filosofia”. Olavo era filósofo? Claro, por que não? Lia e escrevia sobre filosofia.

No Brasil, há muita resistência a se conferir, a brasileiros, o título “filósofo” – aliás, até a si mesmos: professores antigos da Universidade de São Paulo, por exemplo, defendem que ali não se forma filósofos, mas historiadores da filosofia. Será esse um fenômeno da nossa síndrome de vira-lata? Deixemos esse tema para outro ocasião. Ressaltemos aqui só que essa modéstia foi manipulada por Olavo, que, com o caminho aberto, pode afirmar que ele sim era filósofo e ele somente formava filósofos (leia, nessa direção, “Filosofia uspiana, ou: tremeliques de Mlle. Rigueur“). Uma análoga prática publicitária é usada no slogan da escola Nova Acrópole, que anuncia exercer “filosofia à maneira clássica” (eu tendo acreditar que esse é um “clássico” construído). Esse cenário indica que a filosofia universitária brasileira não só incorre em um erro de tática (desbota o seu próprio papel na sociedade) como deixa de enfrentar um problema filosófico: o que é um filósofo? Sim, isso foi tratado algumas vezes, mas no geral essa questão surge como um tema de simplórios. Enquanto isso a boiada olavista passa.

Outras desqualificações fáceis similarmente só colaboraram para que Olavo conseguisse vender-se como herói romântico, pobre e solitário escritor contra um mundo de mal-intencionados e estúpidos. A crítica pela via da qualidade da sua produção filosófica peca nesse sentido. Primeiro, pois sempre muito ligeira: após três meses ou oito horas assistindo ao Seminário de Filosofia, já se produzem veredictos sobre as obras completas de Olavo – eu me pergunto com qual outro autor faríamos algo do tipo. Segundo, porque não é assim que lemos filosofia: aceitamos, contornamos ou tematizamos a inadequação dos pensadores aos valores desta época e não exigimos deles infalibilidade – nós aceitamos, contornamos ou tematizamos sua ciência falha e dizemos que “os grandes filósofos são maus historiadores da filosofia”5. Essa forma de crítica é neutralizada sem dificuldade e, quando isso ocorre, a imagem de iconoclasta atormentado por ressentidos se fortalece. Sei que, com Olavo vivo, engajar discussões com ele significaria prestar-se a ser a) agredido e vexado; b) enredado em um jogo de afetação de autoridade intelectual cheio de name-dropping; c) jogado à diversão da turba olavete. Mas agora ele está morto e, como não é inusual, seus textos podem ser interlocutores mais calmos e decentes. Agora, póstumo, ele ainda nos pergunta: “Será que eu mesmo terei de inventar objeções esquerdistas inteligentes contra as minhas opiniões?”. É hora de não mais conceder a ele essa vitória por W.O.

O mínimo que você precisa fazer para não deixar vencer um idiota

Muitos me objetariam que o que cabe quanto à Olavo é a simples exclusão. Eu compreendo que, por um lado, estando ele ainda ligado às relações de poder que expus, pautar o debate com seu nome implica dar força a correntes políticas que hoje devastam o Brasil. Por outro, é fato que a “estratégia” do ostracismo tem sido executada há décadas e a influência do filósofo se estendeu sem problemas, alimentando-se aliás dos cancelamentos. O corolário disso é que Olavo foi fundamental para a eleição e para o governo de Jair Bolsonaro: o filósofo afirmou, por exemplo, que o presidente o usou como “poster boy” e emplacou alguns discípulos na máquina, como o ex-chanceler Ernesto Araújo, o ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodrigues (outro ex-ministro, Milton Ribeiro, falou de criar uma “TV Olavo de Carvalho“) e o assessor da presidência Filipe Martins. Creio que se ter deixado Olavo crescer na sombra, montado no troninho do gênio incompreendido, cooperou com essa situação. A tarefa de definir e publicizar a estatura de Olavo é a tarefa de desmontar uma ponta de lança do obscurantismo.

Os memes nos asseguram que depois de morto ele está bem calado, mas faríamos mal em nos satisfazer só com as piadas: Olavo tem ainda efetividade. Seus livros e aulas vão atrair interessados em filosofia de todo tipo, entre eles gente sem definição política e que no pacote vai levar uma. Seus seguidores mais próximos, atualmente, pelo que sei, em disputa velada pela posição do mestre, continuam atuantes. Seu nome segue um ícone aglutinador de redes bem ativas. Veja só, não é que Olavo pode ter razão? “Eleger um presidente da República é menos importante do que eleger presidentes de centros acadêmicos“. Disputar a influência das suas ideias é agir no nível da formação de atores políticos. Isso não se restringe à refutação, esforço certamente necessário; pode funcionar pela mera inclusão dos seus trabalhos filosóficos em um meio filosófico, onde ele se diluirá enquanto falácia de autoridade em pessoa, e pode passar até pela apropriação do seu pensamento: imagine só, um Olavo de esquerda?

Acima de tudo, é necessário fazer isso porque isso é exatamente o que Olavo não faria. Aquém do que possa ter dito, o maior dano causado por ele foi o amesquinhamento do debate e do aprendizado: sob Olavo, a conversa filosófica se empobrece, porque é reduzida ao desejo de “vencer”, de sobressair, de se mostrar mais importante. Para “vencer” (vence-se, mesmo, discussões em filosofia?), cabe humilhar e apelar ao apoio da torcida. A filosofia de Olavo, por mais “brilhante” que seus apóstolos queiram pintá-la, não se separa dessa ética do pedantismo; é filosofia da pose e do pedestal que se afirma contra uma filosofia da pose e do pedestal. Se Sócrates disse “só sei que nada sei”, Olavo viveu como quem diz “eu sei mais que você! eu sei mais que você!”. São os tremeliques de Mlle. Plein de Soi-Même, e eles jamais permitiriam ler ou ouvir, sem que houvesse a intenção usar essa situação para um futuro contra-ataque, alguém que se lhe opusesse. Ter generosidade intelectual é ser anti-Olavo. Afirmar que é possível aprender com o outro sem demonizá-lo é ser anti-Olavo. Ler Olavo sem vontadezinha de nocaute e picuinha, sem se limitar a encontrar recursos para derrubá-lo é ser anti-Olavo.

Já se foi o rei dos pombos-enxadristas! Rearranjemos as peças, comecemos de novo.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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