A linha do tempo da professora Rosmary

Uma lição em que a gente podia falar da gente

A Escola São José Guaramirim, de Santa Catarina, também propôs uma atividade de linha do tempo como a narrada nesta crônica. Veja mais imagens no Flickr do colégio

Esta crônica foi selecionada pela Úrsula a partir da dissertação de mestrado “Narrar a experiência da escola: um ensaio poético filosófico à luz da teoria da experiência e da narração de Walter Benjamin”. Veja a seleção.


As aulas de História naquela turma da 4ª série, definitivamente, não eram as mais divertidas da escola pública estadual que há muitas décadas leva o nome de um general.

Primeiro porque as duas aulas semanais daquela matéria caíam sempre na quarta aula, depois do recreio, ocupando assim o lugar mais ingrato naquele tempo escolar de todas as tardes, a penúltima aula. As três primeiras aulas eram mais tranquilas porque a gente tinha acabado de chegar, então ainda estávamos animados e envolvidos com os amigos, e também era gostoso ficar esperando a hora do recreio, para comprar o misto quente da cantina do tio Bil. Mas as duas últimas eram aulas que se arrastavam, já estávamos cansados, e a penúltima era em especial mais demorada, porque sabíamos que ainda teria mais uma aula inteirinha depois.

Era também um pouco triste aquele finalzinho de tarde na 4ª série porque já fazia um ano que não tínhamos mais o tradicional chá com bolacha um pouco antes da saída, que além de ser uma delícia e de voltarmos para casa quentinhos, encurtava um pouco o tempo da última aula. Até hoje não sei se o chá com bolacha simplesmente acabou, ou se eram só as turminhas até a 2ª série que desciam para o refeitório.

Mas as aulas de História da professora Rosmary eram realmente mornas, e eu ficava só pensando comigo mesma o quanto eu entendia a professora, e a matéria, e as lições, mas meus amigos não gostavam dela, nem das aulas, achavam ela muito velha.

Lembrando assim acho até que ela não era tão velha, só tinha um corte de cabelo não tão moderno, e usava óculos com aquela cordinha pendurada no pescoço, e umas roupas sempre escuras, cinzas, marrons, iguais àqueles casaquinhos de vovó. A caligrafia dela na lousa era quase difícil de ler, mas não porque não fosse caprichada, ao contrário, era caprichada demais, clássica, parecia com aquelas letras com as quais se desenhava os nomes nos diplomas e nos convites antigamente. Era difícil de fazer a letra H em cursiva maiúscula para anotar no caderno que era a aula de História.

Eu gostava da professora Rosmary, achava muito bonito seu nome, mas não dizia isso a ninguém, pois todos riam um pouco dela. Eu gostava das aulas, mas mais ainda das coisas aleatórias que ela dizia, já sentada em sua mesa, enquanto copiávamos da lousa, ou líamos o texto no livro, quando ela falava de coisas da vida e dava conselhos.

Em uma dessas ocasiões ela se dirigiu a nós como mancebos, e aí foi uma risada geral. Lembro que nesta aula, por alguma razão, a gente estava sentado em trios, com as carteiras encostadas assim uma ao lado da outra, e eu estava sentada no lugar do meio. Eu me assustei com as risadas, pois demorei a entender que os colegas estavam rindo porque não conheciam a palavra mancebo. Pensei, realmente, eu só tinha visto aquela palavra das leituras da Bíblia, e meus colegas não pareciam ter aquele hábito, ou então nunca repararam mesmo nas histórias e nas palavras diferentes daquele grande livro, caso também tivessem um em casa.

“Mancebo é uma pessoa jovem”, expliquei baixinho para os amigos que estavam por perto, como quem quizesse amenizar a incompreensão entre a turma e a professora, sentindo um pouco de vergonha daquele riso, e, puxa, como eu tinha vontade de que a professora soubesse que eu sabia o que mancebo significava.

Então teve uma aula em que a professora Rosmary explicou para a gente o que era uma linha do tempo, e como a gente podia desenhar e escrever a nossa própria, a linha com a nossa história ao longo do tempo. Aquilo foi muito marcante, pois de repente todos gostaram de parar e se lembrar do que tinham para contar, o que podiam anotar e desenhar sobre suas vidas a cada ano riscado naquela linha marcada com régua no caderno. A gente já usava um caderno grande na 4ª série, e eu pensava que, realmente, uma lição daquelas não caberia no caderno de brochura da 2ª série, que a gente usava com a professora Francisca.

Foi então muito interessante quando, para começar, a professora Rosmary construiu na lousa pra gente ver uma linha do tempo com alguns eventos importantes da História do Brasil, e então nos disse que do mesmo modo deveríamos escolher aqueles eventos mais importantes da nossa história para anotar em cada ano da nossa linha.

Toda a classe se empenhou, e lembro que não nos sentamos em trios porque não era preciso, a gente podia circular assim, falando baixinho, nas carteiras dos colegas e íamos conversando, nos lembrando das nossas histórias, para organizar ali direitinho no caderno. Às vezes um colega ajudava o outro no traçado com a régua sobre a folha, outras vezes a ajuda era para confirmar se aquela história do dente que caiu foi na 3ª ou na 2ª série.

Nessa atividade eu me dei conta de que o caderno era maior porque a lição era não só maior como diferente, porque também eu havia crescido. E ali contando os anos de 1987 em diante, parando obrigatoriamente em 1992 para anotar que meu pai havia morrido, entre outros eventos mais na sequência, termino satisfeita a lição e acho até que utilizei os lápis de cores.

Quando mostrei para a professora Rosmary a minha linha do tempo, pois ela fez questão de olhar um por um os cadernos da gente naquela aula, me lembro da sua compaixão discreta diante dos eventos que eu ali compartilhei, e fiquei muito feliz por aquela professora que eu admirava, ainda que de forma distante, ter dado uma lição tão legal, assim, em que a gente podia falar da gente.

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