Bokeh ou Purpurina?

Ressonâncias entre o city pop japonês e o pop urbano brasileiro

imagem: Icaro Mello

Dois mil e vinte e quatro chegou, e a animação das festas de fim de ano continua com a chegada do pré-carnaval – que esse ano preencheu o mês de janeiro. Para manter a energia festeira de vocês, a edição desse mês da coluna de playlists é dedicada a evidenciar pontes intercontinentais da música pop. Olhando para um período de grande fertilidade criativa da música brasileira, e uma de suas representações mais emblemáticas – o “pop boogie urbano” dos anos 1980 –, buscamos as ressonâncias dessa musicalidade do outro lado no mundo, no Japão, com gênero muito peculiar: o city pop.

Pra começar, esse ano que se inicia marca o aniversário de 70 anos de dois ícones do pop brasileiro, os arranjadores, compositores, multi-instrumentistas e produtores musicais Robson Jorge e Lincoln Olivetti, que formaram uma parceria que foi responsável por dar uma nova cara para a Música Popular Brasileira na década de 1980. Os dois se conheceram na segunda metade da década de 1970, nos estúdios da gravadora CBS, e a parceria se iniciou em 1977, com álbuns como Nesse Inverno, de Tony Bizarro, Samba Marca Registrada Brasil, do grupo Alma Brasileira e o LP de estreia, homônimo, de Robson Jorge. Juntos produziram trilhas de novela, como Dancing Days (1978-79) e Baila Comigo (1981) e trilhas de filmes, como Rio Babilônia (1982).

Do virtuosismo musical de Robson Jorge e da incessante busca pela excelência sonora de Lincoln Olivetti, nasceu uma sonoridade que mudou a música brasileira – e “forçou” a MPB para fora do tradicionalismo sonoro (que já refutou o uso da guitarra elétrica, por ser um estrangeirismo). O que os parceiros construíram como identidade dos trabalhos que produziram, desaguou em outros artistas e produtores, construindo uma paisagem sonora da indústria musical brasileira. Foi nos anos 1980 que essa parceria se solidificou e adquiriu uma sonoridade característica, cristalizada no álbum Robson Jorge & Lincoln Olivetti (1982), único álbum conjunto que lançaram – LP que se tornou uma joia (em admiração e valor de mercado). Em seu currículo, produziram, arranjaram e foram instrumentistas em obras de Tim Maia, Sandra Sá, Rita Lee, Emílio Santiago, Gilberto Gil, Gal Costa, Djavan, Marina Lima, Marcos Valle, Roberto Carlos, Xuxa, entre muitos e muitos outros.

Infelizmente a crítica musical passou a acusar Robson e Lincoln de pasteurizarem e americanizarem a música brasileira – pelo uso da guitarra elétrica e sintetizadores –, responsabilizando-os por uma queda de qualidade da produção nacional. Inclusive, muito do que se atribuiu e se atribui ao conceito da MPB é um resgate da música política de protesto, ou de outras disputas por um lugar de protagonismo do gênero da história da música (mas esse é um papo para outra hora). Com defensores da tradição da MPB ressentidos que sua tradição já não emplacava mais, a perseguição empreendida contra os parceiros levou Robson ao ostracismo e Lincoln a acentuar sua reclusão. Robson Jorge morreu em 1992, relegado pela crítica e pela indústria. Lincoln também passou a viver nos bastidores, colaborando com diversos artistas, mas fora dos holofotes.

Como um prato cheio para aqueles que acreditam na justiça da história, o trabalho dos dois passou por um movimento de resgate, pelas mãos de novos produtores e DJs, nos últimos 10 anos.

Ainda no campo do resgate histórico, o city pop foi um desses gêneros “esquecidos” e recentemente escavados por produtores e DJs. No caso deste, o principal motor de ressurreição foi o movimento vaporwave: uma corrente estética (e memética) da música e das artes visuais que surgiu no início da década de 2010, muito pautada pelo movimento maker e pelo copy & paste. Através do remix de joias escondidas do city pop, expoentes do vaporwave recortavam, invertiam, alteravam tom e velocidade.

Mas o que é o city pop? Como todo gênero da música pop, não há resposta fácil. O termo se refere, principalmente, a produção musical japonesa do final dos anos 1970 e do decorrer dos anos 1980, de fortíssima influência ocidental (principalmente do soul, do funk, do disco e do rock), classificada como música urbana. Infelizmente, da mesma maneira que o pop urbano daquela década, o gênero foi alvo de críticas, o que resultou em seu (relativo) esquecimento.

É neste caldeirão sonoro que trazemos para vocês a playlist Bokeh ou Purpurina, uma seleção que percorre, ora aqui, ora ali, clássicos destes gêneros, resgatando seus brilhos, por tanto tempo distorcidos pelos olhos difusos do tempo. Com artistas como Rita Lee, Tim Maia, Djavan, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Masayoshi Takanaka, Mariya Takeuchi, e muitos outros, a música nos guia por um caminho que vai dos pioneiros do gênero até produções mais recentes do rap e do futurefunk.

As outras edições da coluna você encontra aqui na Úrsula, e as playlists estão no perfil da revista no Spotify. Aproveitem e conheçam também meu perfil pessoal, com outras tantas viagens musicais.

Autor

  • Poeta, historiador, produtor de conteúdo, produtor cultural, curador e seletor musical conhecido como Ico. Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP), realiza pesquisas voltadas ao patrimônio e memória, além de se aventurar constantemente na história da literatura de ficção científica. É obcecado em escrever, desenhar e fazer playlists.

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