Existem Filósofos no Brasil?

Interrogando uma pergunta até que ela deixe de fazer sentido

“Se superássemos uma certa imagem do filósofo, não perceberíamos que já temos, evidentemente, filósofas e filósofos como Sueli Carneiro e Ailton Krenak (foto)?” | imagem: Produção Cultural no Brasil

Existem filósofos no Brasil? Muito se faz essa pergunta e há muito se debate a respeito nos mais diversos meios, quer acadêmicos, quer mais populares. É notável como ela ressurge constante e insistentemente, como algo que parece nos assombrar e nos perseguir. Afinal, temos algum pensamento filosófico próprio? Poderíamos ser considerados, em alguma medida, um país capaz de produzir filósofos e contribuir para o debate contemporâneo filosófico, assim como para a história universal da filosofia?

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Perguntas já fornecem, por si mesmas, muitas respostas sobre como compreendemos aquilo de que perguntamos. Por isso, antes de arriscar qualquer resposta a uma pergunta tão polêmica e disputada quanto essa, me parece importante levantar uma outra interrogação: o que é necessário pressupor para que a pergunta sobre se existem filósofos no Brasil faça sentido?

Tentarei levantar, aqui, quais me parecem ser os pressupostos para que essa pergunta faça, de algum modo, sentido para nós. Também quis mostrar que, para que ela seja adequadamente respondida, esses pressupostos precisam ser questionados de modo que, em última instância, a própria pergunta perca o seu sentido.

 

Ninguém teria a pretensão de refutar que existe formação em filosofia no Brasil. Muito pelo contrário, sabemos a quantidade gigantesca de instituições de ensino superior dedicadas a fornecer esse tipo de formação. Sabemos, também, que algumas das pessoas que são assim formadas se tornam, elas mesmas, professoras nessas instituições, de alguma maneira consideradas aptas a participar da formação de uma nova geração. Quando nos perguntamos, portanto, se existem filósofos no Brasil, portanto, não nos perguntamos, evidentemente, sobre se há pessoas formadas em filosofia ou professores de filosofia no Brasil. O que significa que, de alguma maneira, consideramos que o fato de ser formado em filosofia ou ser um professor de filosofia não faz de alguém, automaticamente, filósofo. Supomos, então, em geral, a famosa distinção entre professor (ou historiador) de filosofia e filósofo.

 

Esse, porém, me parece ser apenas o nível mais superficial das suposições por trás de nossa pergunta: “Existem filósofos no Brasil?” Digo isso porque é necessário pressupor ao menos também mais uma coisa: que os povos originários não têm, eles mesmos, uma filosofia que permita falar da presença de “filósofos” neles. Se admitíssemos que os povos indígenas, os descendentes dos povos africanos e, em geral, os amefricanos (para usar um termo de Lélia Gonzalez) têm, eles mesmos, alguma filosofia, teríamos de admitir, já de pronto, que há filósofos no Brasil, e não haveria por que formular a questão nesses termos. Se ela é formulada assim, então, é porque temos uma concepção de filosofia específica em mente: uma concepção que se vincula a um certo modo de fazer filosofia que não associamos aos povos originários ou de origem não-europeia, mas sim a uma outra cultura e tradição, que vem de fora do Brasil (e também de fora de outras culturas que constituíram o Brasil, como a africana). Mais do que isso: uma concepção segundo a qual a filosofia é, por definição, herança de uma determinada cultura e tradição, a assim chamada “ocidental”, de modo que não faria sentido pensar que fosse possível encontrá-la em outro lugar senão nos espaços que se vinculam e traçam alguma linha de continuidade com essa tradição.

 

Por fim, me parece ser necessário explicitar ainda um terceiro pressuposto: ao perguntarmos “existem filósofos no Brasil?”, estamos, de algum modo, já pressupondo uma imagem masculina da filosofia. Talvez alguns digam que isso não passa de um recurso retórico de minha parte: afinal, quem disse que a pergunta é sempre formulada assim? E, sem dúvida, muitas formulações são possíveis, e talvez nem sempre a questão do gênero apareça nelas (por exemplo, ao se perguntar “existe filosofia original produzida no Brasil?”, ou ainda, tal como faz o recente o excelente dossiê da revista Cult sobre história da filosofia brasileira, “existe uma filosofia brasileira?”). Ainda assim, me pareceria muito mais retórico, e mesmo intelectualmente desonesto, pretender que essas perguntas não são em geral formuladas pensando sobretudo em termos masculinos, o que, para quem conhece o meio da filosofia, dificilmente aparecerá como uma questão meramente “gramatical”, pois basta se perguntar sobre que imagem tendemos a associar mais imediatamente com a figura do sujeito que faz filosofia. Mais do que isso: essa imagem não está atrelada apenas a gênero, mas também a cor de pele e orientação sexual. Por que, afinal, imaginamos de imediato, ao nos perguntar se existem “filósofos”, a figura de um homem branco, hétero e cis?

 

Assim, poderíamos dizer que há três eixos em torno dos quais os pressupostos de nossa pergunta giram e que precisam ser tematizados: um eixo metodológico (ou seja, que diz respeito ao que um filósofo faz), um eixo canônico (que diz respeito a o que um filósofo estuda, ou ao onde se pode encontrar filosofia), e um eixo identitário (que diz respeito a quem pode ser filósofo). Em todos eles, porém, há um fator que é constitutivo, que faz com que cada um deles seja inseparável um do outro e que está na origem de todos eles, de modo que não podemos questioná-los adequadamente sem nos referirmos a ele: o efeito do colonialismo na compreensão institucional da filosofia no Brasil, e, assim, na maneira com que a filosofia é compreendida em nossa sociedade.

 

Em relação ao eixo metodológico: sabemos como, para aqueles formados em alguns dos departamentos de filosofia de mais visibilidade no Brasil, se impõe uma formação que inclina à compreensão de si próprio apenas como um “historiador da filosofia” e não como um filósofo. Por outro lado, essa mesma formação também insiste em nos lembrar que fazer história da filosofia é, também, fazer filosofia, frisando a indispensabilidade da história da filosofia para que se possa filosofar de um modo “rigoroso” e “sério”.  Essa formação, por sua vez, é alvo de muitas críticas, tanto internas quanto externas, que, por muitas vezes, são formuladas no sentido de sugerir que o historiador da filosofia não seria um “verdadeiro filósofo”.  Ser filósofo é, afinal, de acordo com essa perspectiva, fazer algo mais do que só interpretar os clássicos. É, em alguma medida, formular pensamentos próprios sobre as questões que são discutidas pelos filósofos, ter uma posição própria sobre esses temas, em vez de ser capaz de explicar a posição de outros. E, de fato, seria essa distinção entre o historiador ou professor de filosofia e o “verdadeiro” filósofo, entre outras coisas, que justificaria formular a questão nos termos em que ela foi formulada, pois, ao perguntarmos se “existem filósofos no Brasil”, estamos perguntando, de fato, se “existem filósofos de verdade no Brasil”.

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Em relação a esse eixo, creio que só caminhamos em falso enquanto tentamos definir o que é a verdadeira filosofia e se a filosofia seria ou não praticada pelos historiadores da filosofia ou pelos “verdadeiros” filósofos que se contraporiam a ela. Em primeiro lugar, não apenas porque, como alguns já indicaram nesse debate1, é completamente ilusório supor que as grandes figuras brasileiras que se dedicaram, em larga medida, à história da filosofia, como Marilena Chauí, Rubens Rodrigues Torres Filho, José Gianotti ou Bento Prado Jr., para citar apenas alguns, não desenvolveram reflexões próprias e se valeram, ainda que de modo muitas vezes implícito, da história da filosofia para pensar à sua própria maneira questões relevantes ao seu tempo e contexto. Mas também porque quem quiser insistir que fazer história da filosofia, enquanto história da filosofia, não é, em nenhum sentido relevante, fazer filosofia, está condenado a lutar uma batalha que não pode vencer. Os defensores da “leitura estrutural” estarão sempre corretos em dizer que, para fazer história da filosofia segundo esses princípios, é necessário adotar uma postura fundamentalmente filosófica, de abertura ao outro, de reconstrução racional de posições, de refinamento dos conceitos de que nos utilizamos (mesmo que para aprimorar a nossa interpretação de autores específicos), entre outras coisas. Em outras palavras, fazer história da filosofia é, sim, uma maneira de fazer filosofia.

“É ilusório supor que grandes figuras que se dedicaram à história da filosofia, como Marilena Chauí (foto), Rubens Rodrigues Torres Filho, José Gianotti ou Bento Prado Jr., não desenvolveram reflexões próprias” | imagem: Universidade de Brasília

Em segundo lugar, porque, por outro lado, equivoca-se quem, assim, acha, portanto, que não há nenhuma deficiência no modo com que compreendemos, fazemos e somos formados para fazer filosofia academicamente no Brasil (pelo menos em alguns de seus departamentos mais conhecidos), como se pudéssemos simplesmente dizer: “Quem faz história da filosofia faz filosofia. Portanto, há filosofia no Brasil, exatamente do mesmo modo que há filosofia em outros lugares”. Isso porque, de novo: que a história da filosofia seja uma maneira de fazer filosofia implica, apenas, que ela é uma maneira de fazer filosofia. Uma maneira que, poderíamos dizer, nos ensina a adotar uma atitude filosófica para a leitura e interpretação de textos filosóficos, mas, não necessariamente, para adotar uma atitude filosófica em relação às próprias questões discutidas por esses textos. Fazer filosofia no primeiro sentido, portanto, não é o mesmo que fazer filosofia no segundo sentido; e quem adota uma atitude filosófica na interpretação de textos que discutem determinadas questões não necessariamente adota uma atitude filosófica em relação às próprias questões discutidas pelo texto. Por isso, é perfeitamente possível que, em relação à filosofia universitária, tenhamos, sim, uma presença abundante de filósofos, ao mesmo tempo em que há um déficit de uma certa atitude filosófica.

Aqui, é importante notar: isso não quer dizer, de modo algum, que as atitudes filosóficas citadas sejam mutuamente excludentes. É perfeitamente possível articulá-las e fazer com que elas se fortaleçam mutuamente. Mas também é perfeitamente possível ensinar uma sem ensinar a outra – ou mesmo ensinar uma desencorajando que se adote a outra. Que elas não sejam essencialmente opostas não quer dizer que não sejamos formados para tratá-las como se elas fossem – e aí reside o problema. Quem reduz a questão a se é possível conciliar as duas atitudes ou não abstrai, justamente, de que o que está em jogo não é se é possível ou não, mas se somos, de fato, encorajados ou desencorajados a operar essa conciliação. E quem reduz a relevância da questão sobre se “existem filósofos no Brasil” à questão sobre se fazer história da filosofia pode ser considerado fazer filosofia apenas se vale de um ardil, que permite desviar a atenção do fato de que o que está realmente em jogo não é a existência ou não de algo que possa ser, em alguma medida, considerado “filosofia”, mas sim de uma certa atitude filosófica que, embora não seja a única possível, representa uma dimensão importante da pluralidade dos fazeres filosóficos, e cuja sensação de sua falta ou insuficiência no Brasil não deixa de ser um sintoma das deficiências de nossa própria formação. Não, repito, porque formar em história da filosofia não seja formar em filosofia. Mas porque a filosofia admite, fundamentalmente, modos plurais de se fazê-la, e uma formação que se restrinja apenas a um dos seus modos possíveis e, mais do que isso, desencoraje o desenvolvimento de outras atitudes filosóficas que não aquela que ela ensina, impõe uma restrição ao fazer filosófico que se faz sentir, não apenas no nível dos que são formados por ele, mas da própria sociedade em que tal formação é realizada.

Vou ainda mais longe: é precisamente porque somos, de fato, formados para acreditar que essas duas atitudes são fundamentalmente opostas, que a crença nessa oposição se consolida em nossa própria sociedade e faz, assim, com que se ache que só é possível achar verdadeiros filósofos onde não se tem historiadores da filosofia. E, assim, acaba-se por se idealizar figuras que insistem em ressaltar como não são parte desse mainstream acadêmico e como não se poderia esperar nada de “autenticamente filosófico” dessa fonte. A consequência disso, parece desnecessário dizer, é o empobrecimento geral do debate filosófico em nossa sociedade, em que procuramos definir, de modo maniqueísta, qual é a verdadeira maneira de se fazer filosofia, em vez entendermos que a filosofia é uma atividade fundamentalmente plural, e que só pode ser empobrecida se a limitamos quer à atitude filosófica da interpretação rigorosa dos filósofos da história da filosofia, quer se a limitamos apenas à atitude filosófica de formulação de posições próprias sobre questões filosóficas que faz pouco caso da leitura rigorosa da história da filosofia. Um empobrecimento que, é importante dizer, tem origem, de fato, nas marcas colonialistas da história de nossas instituições de ensino superior, que nos fizeram acreditar que a única maneira de sermos rigorosamente filosóficos seria nos dedicando à explicação de autores e pensamentos que não os nossos, como se a filosofia mesma (aquela que seria feita, como nos ensinam de uma maneira um tanto paradoxal nossos professores, pelos verdadeiros filósofos que, por serem filósofos, são maus historiadores da filosofia) só pudesse ser feita por aqueles que têm filiação direta com uma tradição e uma cultura que não a nossa.

A compreensão institucional da filosofia reproduz o apagamento sistemático que a visão eurocêntrica da filosofia faz do papel do outro, quer interior, quer exterior, em sua própria história e em sua própria filosofia

É por isso, também, que insisto (e, aqui, passamos para o segundo eixo, o canônico): responder adequadamente à questão sobre se existem filósofos ou não no Brasil tem de passar necessariamente pelo questionamento sobre por que, afinal, povos indígenas, africanos e, em geral, não-europeus, não poderiam ter filosofia. Assumir isso é assumir que a filosofia é uma herança exclusiva de uma cultura que não a nossa – a europeia, ou, pior ainda, a “ocidental” – e, de novo, supor que apenas um modo de fazer filosofia é legitimamente filosófico. Essa suposição, por sua vez, retroalimenta a limitação institucional de nossa compreensão da filosofia – afinal, se consideramos que os protagonistas dessa história que estudamos tão zelosamente não fazem e não podem fazer parte da história da nossa própria cultura, como poderíamos passar a compreender a nós mesmos e à nossa própria cultura como protagonistas dessa mesma história e como tendo, dessa forma, possibilidade de dar continuidade a ela? Poder-se-ia supor que isso se daria por meio da nossa filiação à própria cultura europeia e “ocidental”, mas é necessário reconhecer que essa filiação é sempre uma filiação subalterna, e não soberana – e, como subalternos, podemos apenas preservar para a posteridade aquilo que os “verdadeiros europeus” legaram para nós, mas nunca sermos, nós mesmos, protagonistas dessa mesma história.

Aliás, é preciso ser mais claro em relação a esse ponto: a suposição de que a filosofia é uma herança exclusiva da cultura europeia não apenas retroalimenta a limitação institucional de nossa compreensão da filosofia: ela é fundamentalmente estabelecida por essa mesma compreensão institucional. Isso porque é pressuposto dessa compreensão institucional não apenas o seu enfoque metodológico na história da filosofia, mas a sua concepção da história da filosofia como uma história exclusivamente greco-europeia. O pressuposto metodológico e o pressuposto canônico se condicionam mutuamente: a filosofia é de origem greco-europeia; logo, nós, brasileiros, devemos nos contentar em preservar e reproduzir, da maneira o mais fiel possível, uma história que não é nossa, em vez de a construirmos conjuntamente a partir de nossos próprios referenciais. É por isso também que só podemos responder adequadamente à questão sobre se “existem filósofos no Brasil” ao questionarmos não apenas a limitação metodológica da formação em filosofia no Brasil, mas também sua limitação curricular. Aqui, de novo, o que importa não é dizer que o que estudamos não é filosofia, mas sim que muitas outras tradições de pensamento também o são. Não há apenas a filosofia de origem greco-europeia, mas também as de origem africana, asiática, ameríndia, amefricana e brasileira. Mais do que isso, e diferentemente do que a visão eurocêntrica da filosofia gostaria de sugerir: faz parte da constituição dessas tradições, inclusive da europeia, a interação e troca com outras tradições e culturas, de modo que defender a existência de uma filosofia brasileira de origem não-europeia não quer dizer, de modo algum, defender que devamos abandonar o estudo das tradições europeias. Antes, devemos apenas reconhecer a existência de referências presentes em nossa própria cultura a partir dos quais podemos fazer a recepção dessa tradição, não apenas como coadjuvantes de uma história de pensamento que não é a nossa, mas como uma maneira de pensar a nossa própria história e a parte que nós temos, a partir dela, na filosofia e na história da filosofia.

Por fim, a herança colonialista de nossas instituições de ensino superior e de sua limitação curricular também é inseparável da exclusão sistemática não apenas daqueles cujas origens culturais não estariam na Europa e na tradição filosófica europeia, como, justamente, negros e indígenas, como é o que faz com que nos pareça tão natural nos perguntarmos se “existem filósofos no Brasil”, e não “se existem filósofas”. Isso porque a concepção eurocêntrica da filosofia não exclui apenas de sua história o outro “intercultural” da Europa e do sujeito europeu (a África, a Ásia, a América Latina etc.), mas também o seu outro intracultural, concebido, justamente, como a mulher. Em outras palavras: que a compreensão institucional da filosofia tenha um caráter eurocêntrico faz com que se pense o sujeito verdadeiramente capaz de filosofar pelo ideal não apenas do sujeito europeu, mas do sujeito europeu homem, branco, cis e heterossexual, ou seja, do sujeito que mantém distante de si mesmo não apenas o outro exterior da cultura europeia, mas aquele que é concebido como o outro interior a ela própria. E é nesse sentido também que a compreensão institucional da filosofia reproduz o apagamento sistemático que a visão eurocêntrica da filosofia faz do papel do outro, quer interior, quer exterior, em sua própria história e em sua própria filosofia, ou seja, não apenas de outras culturas que não identifica com a sua própria, mas também das mulheres e de todos os outros sujeitos que não se encaixem no padrão do sujeito europeu livre de toda alteridade interior e exterior.

Isso é fundamental para que uma pergunta como a sobre se “existem filósofos no Brasil” possa fazer, de algum modo, sentido para aquele que pergunta; afinal, se estudássemos e reconhecêssemos, no meio acadêmico filosófico, figuras como Sueli Carneiro, Lélia Gonçalves e Gilda de Mello e Souza2, não teríamos dúvidas de que existem filósofas no Brasil, em um sentido que supera todas as frágeis oposições que vemos anteriormente. Afinal, o que faz Sueli Carneiro em sua tese de doutorado, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, senão conjugar o estudo da história da filosofia com uma reflexão original sobre uma questão fundamental para pensar a história do sujeito negro no Brasil e, mais do que isso, para que se possa pensá-lo na posição de sujeito, de modo que apaga todas as oposições superficiais entre atitudes filosóficas que vimos anteriormente? Se não somos capazes de reconhecer alguém como Sueli Carneiro imediatamente como filósofa, isso não se deveria ao fato de que esperamos, paradoxalmente, que a figura do filósofo brasileiro se assemelhe ao ideal do filósofo europeu, valendo-se, de maneira correspondente, de referenciais europeus, para pensar um contexto que ao menos se assemelhe ao  europeu (como se esse fosse, paradoxalmente, como o único contexto que pode ter algum interesse universal)?3 Mais do que isso: se, por fim, superássemos essa imagem do filósofo homem, branco, hétero, cis e europeu, tão enraizada em nós, não perceberíamos, talvez, não apenas como já temos, evidentemente, filósofas, mas também filósofos que estão além dessa identidade do sujeito europeu, particularmente na forma de pensadores como Davi Kopenawa, Daniel Munduruku e Ailton Krenak?

É indispensável repensarmos a formação em filosofia no Brasil e o papel que nós mesmos temos nela

Assim, apenas agora, após termos interrogado a própria questão, podemos respondê-la adequadamente: Afinal, existem filósofos no Brasil? Diante de tudo dito, devemos dizer que não apenas existem filósofos, como também e não menos filósofas (e filósofes); que não apenas existem, como sempre existiram, já que a filosofia não é uma herança exclusivamente europeia e houve filosofia no Brasil desde sempre, não apenas no período colonial4, e, nesse período, não apenas de origem europeia, mas mesmo antes da colonização5, de modo que encontramos filósofas, filósofes e filósofos brasileiros de origem indígena, africana e amefricana. Devemos insistir ainda que existem filósofos, não apenas porque historiadores da filosofia, enquanto historiadores da filosofia, também são filósofos, mas porque mesmo aqueles que podem parecer ter sido “apenas” historiadores da filosofia construíram, implícita e explicitamente, um contexto de debates próprios e vinculados a uma reflexão originalmente e especificamente brasileira, que não pode ser negligenciada ou desmerecida.

Por outro lado, precisamos reconhecer também que, se é tão difícil para nós perceber tudo isso, isso é inseparável do fato de que o modo com que se forma para a filosofia no Brasil ainda traz as marcas das origens colonialistas de sua metodologia (com enfoque exclusivo na história da filosofia), de seu currículo (que compreende a filosofia como uma herança exclusivamente greco-europeia), e de sua compreensão de seu público-alvo (voltada para aqueles que mais se aproximam, embora nunca possam corresponder inteiramente – daí sua constante sensação de insuficiência – do modelo ideal do sujeito homem, cis, hétero, branco e – aqui o limite intransponível – europeu).

É por isso que gostaria de concluir, insistindo que importa menos responder à própria pergunta, e mais trabalhar para que a pergunta deixe de fazer sentido, ou seja, para que deixe de parecer tão natural para nós nos perguntarmos se, afinal, existem filósofos no Brasil ou se existe uma filosofia brasileira. Para isso, porém, é indispensável repensarmos a formação em filosofia no Brasil e repensarmos o papel que nós mesmos temos nela. O que só pode ser feito se, por fim, levarmos a sério o questionamento sobre como chegamos à compreensão de filosofia que temos hoje em nossas instituições superiores de ensino6, em vez de tomarmos, de maneira um tanto paradoxal e inconsistente, essa compreensão como uma espécie de a priori ahistórico, e não como uma concepção que foi construída historicamente e é marcada pela sua origem em um contexto colonialista, racista e eurocêntrico7. Não para que, assim, cheguemos, por fim, a uma outra compreensão de filosofia que forneça uma definição única do que ela é; mas, pelo contrário, para que possamos, justamente, compreender a pluralidade histórica dos modos de se fazer e de se compreender a filosofia, libertando nossa visão da filosofia e de sua história, assim, das amarras do colonialismo, do eurocentrismo, do racismo e do machismo, de modo que, por fim, não nos pareça menos absurdo nos perguntarmos sobre se “existem filósofos (e filósofas, e filósofes) no Brasil” do que pareceria nos perguntarmos: “existem filósofos na Europa?”

Autor

  • É professor substituto de história da filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Também é o atual diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural.

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4 comentários sobre “Existem Filósofos no Brasil?

  1. Agora o que falta é o passo seguinte, institucionalizar o processo para que se possa eleger o mérito em um filosofar que não esteja vinculado a qualquer regra de pensamento que esteja submetida a avaliação de qualidade, critério e ponto de fuga mediado pela subjetividade orgânica e social daquele que valida ou não a plenitude da uma filosofia que nasce de forma espontânea, ou seja, aceitar a formulação de qualquer um, independente do grau argumentativo e sistêmico, contanto que este mesmo reivindique para si o lugar de fala como um igual. O igual, quando aceito, o será em sua singularidade completa, e sendo assim, sua linguagem não deverá ser barrada, ao contrário, deverá ser convidada a ter voz. A pergunta. Alguém sem diploma ou vinculo outro que a intenção filosófica, seja ela qual for, é aceito em sua diversidade total dentro do circulo dos pensadores progressistas, ou passa pelo crivo que o exclui em sua não adequação a um modelo anteriormente estabelecido de expressão e pensamento? Onde está a voz dos invisíveis quando são apenas considerados dentro da bolha em sua teoria, mas não em sua prática, com quem os progressistas estão conversando para além de seus pares e semelhantes nessa roda dos esclarecidos em formação. Onde está o chão que deveria ser elevado ao patamar de igual, aquele que é povo e nunca pisou em uma universidade, até onde essa nova luz realmente alcança, e até onde ela apenas faz uma nova sombra?
    Bem, vamos seguindo ^^

  2. A Filosofia é grega, um instrumento típico da nossa cultura ocidental. Falo isso sem intenção de desfavorecer outras criações culturais como dos povos originários, indianos ou africanos, porque parece-me que nestes últimos casos temos algo como sabedorias, arcabouços culturais de conhecimento, ou mesmo narrativas, enquanto que a Filosofia, como dito, é um modo de investigação antes de qualquer coisa. Enquanto narrativas, portanto, elas se equivalem. Mas é preciso ter em mente que o termo Filosofia e filósofo são termos técnicos, logo, específicos, o que serve para que não se barateie a conversa sobre o tema.

    Para ser filósofo, basta um diploma de bacharel em Filosofia, o que não significa que teremos uma produção inédita de Filosofia.

    Quanto a história da Filosofia, a mim parece que é por onde se entra no tema para entender porque temos todo esse leque de Filosofias há mais de dois mil anos.

    Saudações filosóficas!

    Maximiliano Paim.
    Professor de Filosofia (licenciatura).
    Gramado-RS.

  3. Lucas, achei o texto muito bom; me fez pensar muitas coisas. Fiquei com uma dúvida aqui… Você menciona “figuras que insistem em ressaltar como não são parte desse mainstream acadêmico e como não se poderia esperar nada de ‘autenticamente filosófico’ dessa fonte”. Quem são essas “figuras”? De quem você está falando? Abraços!

  4. muito bom, ! segue meu comentário: é impressionante que a filosofia, amante do conhecimento, não tenha olhado com atenção para sua vizinha antropologia e sociologia. Nesse sentido chamo atenção que talvez um ponto a se repensar sobre o texto seja a limitação de conceitos como “nossa cultura” ou outros regionalismos, identitarismos e tentativa de negar cânones. é claro que cada povo, na sua experiência concreta vive de acordo com sua filosofia, o que se expressa por meio de seus filósofos, sejam acadêmicos, xamãs ou mesmo poetas, artistas e até mesmo nos seus loucos. os conceitos são culturalmente e historicamente determinados e o espírito temporal do mundo os atravessa. desta forma me parece falso existir uma filosofia local, ou uma filosofia cultural, plural como o autor aponta, pois isso seria pressupor que existem conhecimentos relativos e descambaríamos para um pós-modernismo sem verdade, sem condição material da existência, sem história material do mundo. a atitude filosófica é local e regional, o modo de fazer , a perspectiva, mas o resultado – o conhecimento filosófico em si mesmo – é universal. Krenak não faz filosofia indígena brasileira… krenak é indígena, mas faz filosofia universal, fala das verdades do mundo de hoje. De uma perspectiva singular? sim, mas seu pensamento é voltado para os problemas centrais do conhecimento e da vida na terra como um todo. não acredito que exista filosofia brasileira, mas sim filosofia feita por brasileiros indígenas negros mulheres etc… mas a filosofia é sempre a busca de um conhecimento universal sobre as coisas e o conhecimento delas, seja em qualquer perspectiva ou cultura que ela seja formulada. o objeto da filosofia – bem viver e conhecimento de como conhecer o mundo – não muda. do mesmo modo pode-se dizer, como o autor aponta, que não existe um só cânone europeu para se refletir e aprender filosofia, mas é certo que os conceitos tem história e mesmo entre indígenas por exemplo são conhecimentos elaborados durante gerações, formando sempre cânones que se entremeiam no espaço tempo histórico geográfico da existência humana sobre a terra. não existe filosofia sem a história da filosofia, ou seja, sem o conhecimento de como se formaram, foram transmitidos, se cruzaram e foram repensados os conceitos nos lugares e na história. A sociedade europeia-ocidental colonizou o globo todo e hoje vivemos sob a égide dos seus conceitos e do seu modo capitalista materialista e cientificista de olhar o mundo. Quando Krenak faz filosofia ele olha diretamente para esse cânone para crítica-lo, para contorcê-lo ….

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