Descolonizar/contracolonizar a história da arte: possibilidades a partir de Nêgo Bispo

Morto em 2023, Nêgo Bispo tensionou a linguagem colonialista, criou conceitos, exigiu uma política nova, propôs um modo de vida

Capa de A terra dá, a terra quer, de Nêgo Bispo

O passado colonial dos países que sofreram sob o jugo da colonização e a permanência das estruturas que eram características da época, sob uma remodelação que faz com que as esferas de poder e a população explorada sigam as mesmas ao longo dos últimos 500 anos da história da humanidade têm sido pauta dos mais recentes debates e proposições, seja na academia ou na sociedade. Muitos modelos têm sido propostos para explicar e analisar nossa contemporaneidade, modelos que trazem termos como pós-colonial, descolonizar, decolonial, modernidade/colonialidade etc. Em comum, todos eles partilham de uma tradição de debate derivada da universidade e por consequência de uma estrutura de conhecimento eurocêntrica. Em oposição a todas elas, Antônio Bispo dos Santos (1959-2023) nos oferece, mais do que um conceito, um modo de vida, a contracolonização.

Detentor dos conhecimentos de mestres e mestras quilombolas, com os quais teve sua formação a partir da oralidade e dos saberes ancestrais, Nêgo Bispo, como é também conhecido, faz parte da primeira geração de sua família a ter uma educação formal. A partir desta, passa a divulgar, por meio dos livros, o modo de vida quilombola, pautado pelo compartilhamento. Sua mais recente publicação, intitulada A terra dá, a terra quer, será assunto desta breve análise.

Veja também:
>> “Enrique Dussel e os Povos Originários“, por Ludwig Henriquez Ravest
>> “E. P. Thompson: Um Historiador Militante“, por Anna Gicelle

Publicado em 2023, em uma parceria entre a editora Ubu e a revista Piseagrama, neste livro Antônio Bispo dos Santos nos propõe uma alternativa à forma de habitar o mundo, baseado nos conhecimentos tradicionais compartilhados pelos povos quilombolas. Dividido em seis capítulos, o livro traz um panorama sobre o pensamento do autor, a partir de um diálogo entre o modo de vida quilombola em oposição ao viver das sociedades urbanas, suas práticas, seus espaços e suas convicções.

Semear palavras

Logo no início do texto o autor nos afirma que colonizar é o mesmo que adestrar. Para nos explicar esta ideia, parte de sua experiência com o adestramento de bois – o uso da experiência de vida será uma tônica do livro e de toda a construção do pensamento do autor. Para ele, 

Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome.

O processo de adestrar, colonizar, trata-se de uma tentativa de apagamento de uma memória, a fim de que uma outra memória, artificial e ligada aos interesses coloniais, possa ser composta e infligida àquele a ser colonizado.

Para lutar contra esse apagamento o autor irá nos oferecer, ao longo do livro, muitas formas de luta e resistência. Uma delas consiste em se apropriar e remodelar a língua do colonizador, de usá-la para além das possibilidades originais, falar com a língua do colonizador, mas de forma que ele já não a compreenda mais. Inverter as potências das palavras usadas, ressignificar, enfraquecer as palavras do colonizador e fortalecer as do colonizado. Para cada termo colonizado, o autor vai propor uma termo oposto, alinhado à sua cosmologia, à sua experiência, ao seu modo de vida:

Se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento. […] Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência, para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização

É no conceito de contracolonialismo que reside a visão do autor, ou que em uma palavra resume o que o livro nos apresenta. A definição apresentada pelo autor para o termo se mostra simples, porém poderosa: 

O contracolonialismo é simples: é você querer me colonizar e eu não aceitar que você me colonize, é eu me defender. O contracolonialismo é um modo de vida diferente do colonialismo. […] O contracolonialismo praticado pelos africanos vem desde a África. É um modo de vida que ninguém tinha nomeado. Podemos falar do modo de vida indígena, do modo de vida quilombola, do modo de vida banto, do modo de vida iorubá. Seria simples dizer assim. Mas se dissermos assim, não enfraqueceremos o colonialismo. Trouxemos a palavra contracolonialismo para enfraquecer o colonialismo. Já que o referencial de um extremo é o outro, tomamos o próprio colonialismo. Criamos um antídoto: estamos tirando o veneno do colonialismo para transformá-lo em antídoto contra ele próprio.

O colonialismo se apresenta aqui como um modo de viver daqueles que o autor irá indicar serem ligados a uma cosmologia monoteísta cristã eurocêntrica. No mundo desta cosmologia caberia tão e somente um, apenas um deus, apenas uma certeza, apenas uma verdade, um único jeito de ser. As comunidades quilombolas, indígenas, que partilham de cosmologias politeístas veem o mundo e suas relações de outra forma, uma forma que preza pelo compartilhamento. Da ideia do compartilhamento, o autor irá elaborar novos termos; destes, destaca a confluência como palavra que “melhor germinou” dentre as que propôs em seu caminho de ressignificar e “enfeitiçar” a língua do colonizador. 

[…] confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. […] A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia. Essa é a medida.

Cidades e contracolonialismo

“As cidades são estruturas colonialistas” enquanto que “a terra é o anseio original”. Assim o autor irá contrapor o viver urbano ao modo de vida quilombola. As sociedades urbanas, monoteístas e eurocêntricas, ao longo do seu desenvolvimento, se afastaram da natureza. Baseada na ideia de desenvolvimento, as sociedades cresceram apoiando-se no humanismo. Para o autor, “humanismo” e “desenvolvimento” são palavras companheiras, ambas diretamente relacionadas a um viver urbano, um viver que trata os seres humanos não como criaturas da natureza, mas antes como criadores, que anseiam superar a natureza. 

O homem, em sua ânsia de entender e catalogar, dominar o conhecimento e, por consequência, a natureza, se desconectou desta, o que resultou em uma cosmofobia, caracterizada pela incapacidade de se sentir como um ente animal. Diametralmente oposto aos humanistas se localizam os diversais – os cosmológicos ou orgânicos:

Se os humanos querem sempre transformar os orgânicos em sintéticos, os orgânicos querem apenas viver como orgânicos, se tornando cada vez mais orgânicos. Para os diversais, não se trata de desenvolver, mas de envolver. Enquanto nos envolvemos organicamente, eles vão se desenvolver humanisticamente.

Os diversais vivem não em sociedades – que se fazem com iguais, onde busca-se homogeneizar a tudo –, mas em comunidades que se fazem com os diversos. A globalização proposta pelos humanistas visa apenas unificar, transformar tudo em um, quando falam de individuo, falam em unicidade. Para os diversais, falar em indivíduo, é falar em unidade, o “um” que é parte do todo, do universo. Enquanto que, para os humanistas, este “um” é o universo, para os diversais só existe “um” porque há mais de um. O autor é enfático ao estabelecer essa diferenciação, em que os humanistas, advindos dessa tradição colonial, são aqueles que transformam a natureza em dinheiro, e afirma: 

Eu não sou humano, sou quilombola. [grifo nosso] Sou lavrador, pescador, sou um ente do cosmos. Os humanos são os eurocristãos monoteístas. Eles têm medo do cosmos. A cosmofobia é a grande doença da humanidade.

As cidades urbanas, segundo o autor, estão nos quilombos. Como exemplo, nos aponta que Belo Horizonte está no Quilombo Souza, no Quilombo Manzo ou no Quilombo de Luízes. Não são os quilombos que estão em Belo Horizonte. E em todos eles estão presentes importantes expressões contracolonialistas. Modos de ver, de sentir e de fazer que durante muito tempo foram precarizadas pelas ações do Estado. 

As políticas do Estado são por definição colonialistas. Toda política é um instrumento colonialista, uma vez que a política trabalha com a gestão da vida de outros, diferente da autogestão. Aqueles que fazem política se veem como um grupo privilegiado e iluminado, que por esta razão tem o direito de ser protagonista da vida alheia. Os animais, insetos, plantas não partilham desse movimento. Assim como eles, os quilombolas buscam um modelo de autogestão, assembleias e discussão, todo momento é coletivo e passível de se tornar um espaço de tomada de decisão. Apenas os humanos sentem a necessidade de criar uma estrutura em que um vive para gerir a vida de muitos, verticalmente, para defender o direito dos outros:

A democracia é uma coisa eminentemente humana. Entre as outras vidas, cada um se defende de forma segmentada para defender o território de forma integrada.

Desta forma, para o autor, não há grande diferença entre gestões de esquerda e de direita. O Estado é um ambiente colonialista: 

Não existe governo bom para Estado ruim. […] Qualquer governo que governar este Estado será um governo colonialista, porque o Estado é colonialista. […] Qualquer governo de um Estado colonialista será um governo colonialista. É preciso contracolonizar a estrutura organizativa.

Estranho à lógica do Estado, os quilombos foram criados a partir de práticas que vêm desde África. Práticas estas que encontraram no território brasileiro aquelas dos povos originários, que partilharam de seus conhecimentos da terra. A partir dessa confluência de saberes formaram-se os quilombos, inventados pelos povos afroconfluentes, em diálogo com os povos indígenas. O próximo estágio será a aproximação dos quilombos às favelas, que, ao ocorrer, poderá trazer enormes mudanças ao nosso tempo.

Mas o autor nos lembra que confluência é compartilhamento, e compartilhamento é diferente de troca. Por troca se entende um objeto por outro, igual ou semelhante, enquanto no compartilhamento temos uma ação por outra ação, um gesto por outro gesto, um afeto por outro afeto. E afetos apenas se compartilham, não existe troca nesse lugar. A troca de afeto cria reciprocidade, e a reciprocidade do compartilhamento é algo que rende, que multiplica.

Em uma fala de 2021, Antônio Bispo dos Santos já explora a ideia de que apenas cosmologias politeístas possibilitam uma compreensão de mundo e de um modo de viver mais equilibrado com a natureza uma vez que todos se veem como diversos, em um espaço livre de hierarquias ou dominação, em que o compartilhamento promove a confluência:

A confluência é o encontro de seres, de vidas, que se compartilham. Isso só acontece em cosmologias politeístas, porque as pessoas se compreendem como parentes, como amigos, como seres próximos.

Criar solto

“O grande problema da sociedade eurocristã é a mercantilização do saber. Quilombolas não vendem o saber, eles compartilham. Compartilhar entre pessoas é um processo de confluência em que todos acrescentam algo ao saber.” Assim é com a arte. A arte não deveria se tornar uma mercadoria, pois deve ser compartilhada. 

No breve trecho em que o autor fala diretamente sobre arte, podemos inferir que sua crítica está direcionada a uma espécie de elitização da produção artística. Para ele é difícil de compreender a ideia de que existem pessoas aptas a produzir arte, enquanto outras não possuiriam tal aptidão e se disponibilizariam a trocar dinheiro pela oportunidade de apreciar a realização artística. A arte está presente em todos os seres da natureza, desta forma todos podem participar e compartilhar do fazer artístico, tal qual acontece nas expressões artísticas tradicionais. O autor opõe justamente essas duas formas de expressão artística:

Quando a arte vira mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada. O teatro é fazer as coisas de brincadeira, enquanto a brincadeira na nossa comunidade é a brincadeira de fazer as coisas de fato. Quando a gente brinca de fazer o Reisado, a gente faz o Reisado. Quando a gente brinca de fazer a roça, a gente cresce aprendendo a fazer a roça, a gente brinca de fazer a roça até fazer a roça de verdade […] a arte é a conversa das almas, a arte alimenta a vida, ela não deve ser mercadoria.

De forma semelhante à grande parte da produção artística dos povos indígenas – que é um reflexo do seu fazer diário, ou seja, dessa pouca separação entre cotidiano e arte –, para o autor, o fazer diário coletivo pode ser visto como expressão artística. E o brincar cotidiano, que também prepara para a vida, também pode ser arte. Mas principalmente, a arte é uma confluência entre indivíduos, compartilhada, e portanto não pode ser mercantilizada:

A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada. A cultura é o contrário. Nós não temos cultura, nós temos modos – modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida.

Descolonizar/contracolonizar a história da arte

Muito em voga neste momento, o debate em torno da descolonização ou da decolonialidade também é comentado pelo autor, que estabelece uma separação entre esses conceitos e a contracolonialidade. Enquanto os primeiros funcionam dentro da lógica do debate acadêmico ou mesmo na sociedade urbana, a contracolonialidade se coloca como um modo de vida quilombola. O debate decolonial seria uma resposta ao colonialismo, aos seus limites. Enquanto que o contracolonial é o modo de vida dos povos afroconfluentes, oposto ao humanismo, logo oposto tanto ao colonialismo, quanto ao decolonialismo, uma vez que os dois estão sob a mesma lógica eurocristã monoteísta:

O grande debate hoje é o debate decolonial, que só consigo compreender como a depressão do colonialismo, como a sua deterioração. Compreendo o sufixo “de” como isso: depressão, deterioração, decomposição. Cabe às pessoas decoloniais, em qualquer lugar do mundo, educar sua geração neta para que não ataque a minha geração neta. Elas só são necessárias se fizerem isso, porque é isso o que é necessário fazer. E a nós, contracolonialistas, cabe inspirar a nossa geração neta para que ela se defenda da geração neta dos decoloniais e dos colonialistas.

Muito embora o autor não apresente o contracolonialismo como uma solução para as questões enfrentadas pela nossa sociedade, é sim possível se inpirar nele e em algumas de suas proposições como forma de reimaginar outras formas do nosso fazer. Aqui, mobilizamos esse conceito para pensar o campo da história da arte. Uma vez que o debate em torno da descolonização da história da arte busca novos caminhos, podemos encontrá-los nas ideias já apresentadas de Nêgo Bispo.

A começar pela ideia da ressignificação das palavras. Palavras têm força e determinam discursos, assim como podem ser utilizadas para desvalorizar ou desautorizar produções artísticas periféricas ao que hoje se enxerga como o eixo central da arte. Apropriar-se dos termos e ressignificá-los, tanto aqueles consagrados dentro da literatura especializada, como outros, utilizados em nosso cotidiano, pode nos ajudar a falar sobre uma produção artística que não necessariamente trabalha dentro das mesmas lógicas já estabelecidas dentro do cânone artístico. Buscar novas palavras na linguagem coloquial, na descrição do próprio artista ou mesmo na gíria pode ser de grande valia para criarmos uma linguagem mais inclusiva dentro da academia.

Encarar a arte como o produto de um compartilhamento entre muitos, uma confluência de saberes que pode vir a resultar no objeto artístico derivado do trabalho de um artista, em vez de seguir encarando o artista como um gênio quase que incompreendido, o qual é capaz de extrair de dentro de si arte, permite ver a produção artística para além do ser tecnicamente capaz. Uma vez que internalizarmos que todo e qualquer ser é capaz de produzir arte, um grande universo se abre para entendermos expressões artísticas antes classificadas como menores. Esse movimento também permite nos desprendermos das classificações e periodizações da história da arte tradicional, uma vez que um estilo não necessariamente está inserido em um determinado local, tempo ou espaço.

Por fim, podemos nos apropriar do conceito de contracolonizar no âmbito de não mais aceitar formas e definições antes impostas por uma história da arte que pode ser chamada também de colonial, que pouco ou nada levou em consideração experiências e produções fora da lógica eurocêntrica, que se definiu a partir de uma ideia de evolução que não mais se sustenta e que continua como um projeto de poder que busca manter-se em uma posição de distinção em detrimento de um enorme número de produções outras, realizadas pelos mais diversos produtores, que muito tem a expandir o que é arte.

Para finalizar, Antônio Bispo dos Santos nos lembra que

Quando nós falamos tagarelando
e escrevemos mal ortografado,
quando nós cantamos desafinando
e dançamos descompassado,
quando nós pintamos borrando
e desenhamos enviesado,
não é porque estamos errando
é porque não fomos colonizados

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