Narciso é “o poeta dos ventos e das maresias”. Ele fixa Santos (SP), busca a sua paisagem, registra os seus sons e a sua poesia, por mais íntima e pessoal que seja
Foi só aos 81 anos que o poeta Narciso de Andrade autografou o seu primeiro livro e único, Poesia Sempre, obra que acaba de completar dez anos. O evento ocorreu numa quinta-feira, 30 de novembro de 2006, na Universidade Santa Cecília. Já um tanto combalido pela doença, Narciso recebeu os amigos e admiradores que há muito aguardavam a reunião de sua obra poética, considerada uma das mais importantes já produzidas em Santos e que ao longo dos últimos cinquenta anos fora sempre publicada em jornais e revistas.
É cada vez mais difícil deparar poetas como Narciso. Entender o que um poeta escreve hoje em dia ficou complexo demais. O crítico C.P. Snow disse certa vez que lemos para sentir um tipo de prazer que o homem teve ao aprender a falar: ou seja, ouvir histórias. Quando a literatura se afasta demais desse impulso primal, é sinal de que a arte está em declínio, salienta Snow.
A poesia de Narciso de Andrade reverte essa sensação de declínio da arte. Ao lê-lo, nos encantamos com a simplicidade, embora os seus versos tenham uma riqueza poética nem sempre fácil de captar, como observa o escritor e jornalista Adelto Gonçalves, no ensaio que acompanha Poesia Sempre, obra publicada por iniciativa da jornalista Ivani Maria Cardoso e da Editora Unisanta.
A partir dos anos 1940, Narciso de Andrade integrou quase todos os grupos intelectuais e de arte que fizeram da cultura de Santos uma das mais importantes do país pelo menos até a década de 1960, quando a ditadura militar conseguiu desmobilizar a cidade. Um desses grupos reunia Miroel Silveira, Cassiano Nunes, Francisco de Marchi, Nei Guimarães, Nair Lacerda, Leonardo Arroyo, Cid Silveira e o amigo de toda a vida, o também poeta Roldão Mendes Rosa, de quem em 1992 Narciso organizou o livro Poemas do Não e da Noite.
Em Santos, os intelectuais, poetas, escritores e jornalistas que fizeram história na cidade se reuniam no Café Paulista, local que Narciso frequentou até o fim dos anos 1990. Em Café da vida presa, ele recorda: “Sobre as mesas/ café, refrescos, sanduíches./ Cigarros para as conversas,/ fósforos para os cigarros./ […] Talvez um pouco de sonho/ e até luar houvesse/ naquela tarde/ naquele café.”. O poeta também foi amigo da lendária Pagu, a Patrícia Galvão. “Eu ouvi falar tanta coisa de Pagu/ que até pensei que ela não existia/ era uma invenção de visionário/ revolucionários que tomam chá com limão/ tanta coisa ouvi/ que imaginei uma mulher impossível/ jamais nascida increada/ a Pagu das lendas e dos martírios/ sonhei com Pagu até encontrá-la/ reciclada em Patrícia Galvão/ fomos amigos/ era tudo verdade”.
Ao longo da vida, Narciso de Andrade muitas vezes foi instado a deixar Santos, a província, para que assim obtivesse o prestígio para que pudesse ser equiparado aos grandes poetas nacionais. No entanto, ele foi sempre fiel à sua visão de cultura, de universalidade: “O verdadeiro sentido da cultura não é saber falar uma ou outra língua ou ter certa noção de que se aquele quadro é bonito ou não. Cultura é uma coisa muito mais profunda, enraizada no próprio local, na composição social. Tudo isso é o que gera a cultura”.
Para o escritor, jornalista e crítico literário Adelto Gonçalves, Narciso é “o poeta dos ventos e das maresias”. Ele fixa Santos, busca a sua paisagem, registra os seus sons e a sua poesia, por mais íntima e pessoal que seja, sempre busca a cidade para confortá-la ou ser confortado por ela. Cais: “Silenciosamente pesados/ firmam-se nas horas os navios,/ fortuitos donos do porto,/ transitórios proprietários/ de metros de alvenaria/ que fazem maior a tristeza/ da imensa nostalgia portuária”. Improviso na praia: “Gaivotas partindo/ os vitrais do vento/ Réstias de luz/ ferindo de leve/ a epiderme do firmamento”.
Narciso de Andrade é o último poeta de Santos e os dez anos da publicação de seus poemas marcam um momento cultural importante de que todos os santistas devem se orgulhar e mais ainda, louvá-lo. Pode-se declamar Narciso e cantá-lo na tradição da grande poesia. Como em Canto de amor à cidade de Santos: “Nas horas altas da noite/ espaço das madrugadas/ campo de estrelas e vento/ eu te procuro, cidade./ Nessa hora é que de tuas pedras flui/ o líquido silêncio do passado. […]”.
O poeta Narciso de Andrade morreu um ano depois do lançamento de Poesia Sempre, em 29 de dezembro de 2007, às 18h40, na Casa de Saúde de Santos, onde estava internado desde o dia 24. Foi enterrado no Cemitério do Paquetá.