Contra o Cão com Pedigree, o Pombo

Nelson Rodrigues ensinou que a seleção é espelho e palco do que enfrentamos como indivíduos e como coletividade. Assim sendo, o que a Copa do Qatar nos provoca?

O Brasil na corda-bamba entre o lulu da Pomerânia e o vira-lata caramelo | imagem: Pluct-Plact Zoom!

Entre os símbolos que o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues conseguiu perenizar na cultura brasileira está o complexo de vira-latas. A expressão deu ao seu autor essa dúbia glória literária: vulgarizou-se tanto que circula sem referência a ele, quiçá até sem conhecimento de quem seja ele; tornou-se vocabulário comum. Esse feito foi possível, proponho, porque Nelson tocou algo de universal: circunscreveu bem um sentimento e/ou uma situação que vivemos nós mesmos e que vemos viverem os outros: um crer-se sempre menor, essa inferiorização autoimposta.

Hoje em dia, esse conceito rodrigueano pode ser interpretado em chaves bem diferentes das do seu criador. Um coach pode usá-lo para falar de “valorização pessoal”. Alguém pode retomá-lo para fazer a crítica de uma postura colonizada, isto é, de submissão às perspectivas dos antigos e novos centros do poder. Outro, ainda, pode compará-lo à síndrome do impostor – a sensação de que somos, em um lugar, em uma profissão, uma farsa: todos ali são melhores que nós, não pertencemos àquilo. O rebaixado, o colonizado, o impostor são atuais figuras do vira-lata.

Nesta época de Copa, porém, vale a pena retomar o contexto original dessa ideia. Dito de outra forma, entender como Nelson tocou o universal – e, nesse caso, seria melhor dizer como Nelson matou o universal no peito, chutou o universal de trivela, cabeceou o universal no cantinho, sem chance para o goleiro. Pois foi pensando o futebol e narrando a seleção brasileira que o escritor identificou essa questão ética. E, tendo isso em mente, não poderemos deixar de perguntar: que outras questões éticas correm o gramado agora mesmo? Mas não nos adiantemos.

Surgimento do vira-lata

Passeando por À Sombra das Chuteiras Imortais, livro que reúne as crônicas de Nelson a respeito de futebol (se você está se perguntando – sim, o nome do encarte da Úrsula sobre a Copa tirou a sua inspiração daí), podemos rastrear as origens do complexo de vira-latas. A primeira vez que o escritor se refere a algo semelhante está em “A Realeza de Pelé”, coincidentemente o primeiro texto em que Pelé é chamado de rei (mais uma glória para Nelson). Lá, o autor escreve:

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Em 1954, na Copa da Suíça, o Brasil perdeu para a Hungria nas quartas-de-final por 4×2. A Suécia seria a sede de 1958 – e o palco do primeiro título mundial da seleção brasileira. Nelson escreve sobre “a alma dos vira-latas”, portanto, da perspectiva da sua superação. Vemos que se trata de um tipo ruim de humildade (sou eu que assim o defino; fica a dúvida de se há, na visão de Nelson, um tipo bom de humildade) e que a vitória exige o seu avesso, demanda uma imponência.

Nelson fez essa primeira crônica em março de 1958. Em maio, o conceito nasceria propriamente, em “Complexo de Vira-Latas”. Neste texto, o cronista começa discutindo as expectativas sobre a seleção diante da iminente Copa. Problematiza o pessimismo de então (“não seria essa atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?” – será assim hoje também?), comenta o trauma do Maracanaço, valoriza as chances do time e indica o que seria o obstáculo maior: sua – nossa – autoimagem, enquanto brasileiros, submetida à trava que enfocamos.

Nesse ponto, vem a bola esticada do conceito, Nelson dá um tapa nela e define: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. Ocorreu, em relação ao texto anterior, um movimento importante: o que podia ser pensado só no campo do esporte, é agora visto como aspecto do caráter nacional. A própria identidade brasileira é tematizada.

Quando o termo “vira-latas” retorna em À Sombra das Chuteiras, em julho, ele já é um símbolo derrotado. A seleção brasileira foi campeã do mundo. “É Chato Ser Brasileiro!”, diz Nelson logo no título. A goleada de 5×2 sobre a Suécia teria sido “um triunfo vital de todos nós e de cada um de nós”, ela reconfigurou a própria ideia de ser brasileiro: “Já ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional”, assegura o cronista, “O povo já não se julga um vira-latas. Sim, amigos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas”. Não mais humildes, com “um irresistível élan vital”,

[e] a quem devemos tanto? Ao meu personagem da semana. Ninguém aqui admitia que fôssemos os “maiores” em futebol. Rilhando os dentes de humildade, o brasileiro já não se considerava o melhor nem de cuspe à distância. E o escrete vem e dá um banho de bola, um show de futebol, um baile imortal na Suécia. Como se isso não bastasse, ainda se permite o luxo de vencer de goleada a última peleja. Foi uma lavagem total.

A última expressão é importante: uma lavagem. A vitória purga. Movimenta afetos: a vergonha, cansada, é substituída; o orgulho entra em campo, cheio de fôlego. Abre nossos olhos: onde não víamos senão defeitos, passamos a poder enxergar qualidades. A vitória revitaliza.

214 milhões (e contando) em ação

Mas como isso é possível – quer dizer, como um mero jogo de futebol pode ser capaz disso tudo? Uma passagem de “O Quadrúpede de 28 Patas”, outra crônica de Nelson, pode responder a essa dúvida: “O escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal, ele traduz uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades”. O futebol, assim, seria um espelho. Vendo os jogos, assistiríamos a nós mesmos. A seleção brasileira não joga. A seleção brasileira jogamos.

Veja, isso é diferente de dizer que a torcida é, de certo modo, um jogador, pois pode influenciar a performance dos jogadores. Também não se refere simplesmete às emoções, que podem sim ser intensas, despertadas pelas partidas. Expectativa, ansiedade, apreensão, alegria, frustração, catarse – tudo isto está em movimento, mas aqui se fala de algo mais específico. Nelson fala de projeção, termo da psicologia (como “complexo”) que designa as situações nas quais o indivíduo atribui características suas, impulsos, sentimentos, a outras pessoas ou mesmo coisas. Portanto, o dramaturgo faz do futebol um palco, onde atua o elenco da nossa personalidade.

É sob esse ponto de vista que ele faz hipérboles do tipo: “Em 50, houve mais que o revés de onze sujeitos, houve o fracasso do homem brasileiro”. Individualmente e coletivamente, investimos o que somos e o que podemos ser, e isso, diria eu, não só pela atração que o lúdico e a disputa exercem, mas porque o jogo de bola constitui narrativas – e as narrativas nos constituem. Seja por meio da arte, seja pelas histórias que ouvimos dos outros, seja pelo diálogo interno e perene que mantemos conosco mesmos, aprendemos e construímos, e o oposto disso também.

Se estamos de acordo, então é hora de retornar àquela interrogação que esboçamos no começo. Lembra? Falávamos de ética e de experiência universal. Agora alcançamos uma formulação mais sutil do problema. Podemos perguntar: o que estamos investindo nesta Copa? O que seleção de Tite nos representa – não, não é isso, o que representamos nela? A princípio, eu mesmo teria a tendência de retrucar: “Nada. Em geral não ligo para futebol”. Ou ainda: “Me importa bem mais o Corinthians”. Mas, de novo, não nos adiantemos. Vale a pena trabalhar mais essa bola.

Alma de lulus da Pomerânia

A primeira coisa a lembrar é que nós somos a consequência da reviravolta que Nelson registrou. E, claro, não só dela. No cuspe à distância não sei se nos garantimos, mas é evidente que temos cinco Copas do Mundo e vários dos melhores jogadores de todos os tempos. Nossa posição não é a mesma da audiência de Nelson – ela, ainda não campeã, sofria a derrota em casa, Maracanã cheio, contra os uruguaios. Tinha esperança e trauma, suspeita de potencial e complexo de vira-lata. Já nós pisamos na terra de uma história consolidada. Não tanto olhamos algo de indefinido – onde sobra só apostar – como aguardamos que o passado devolva a nossa glória.

Seria preciso então falar de um complexo do cão com pedigree, em que não se trata de sempre e de partida se achar inferior aos outros, mas de se considerar superior, porém injustiçado, crer que uma certa posição é sua condição natural. Não se trata de duvidar do próprio potencial nem de uma falta de referências, mas de ter a convicção de que há uma potência em si e que ela foi desperdiçada, negada, roubada. Antes, dizia Nelson, humildade. Agora, presunção. Menos “não posso ser bom em nada mesmo”. Mais “como é que isso pode ter acontecido comigo?”.

E talvez esse seja o novo aspecto do caráter nacional. Há evidências disso. Os anais dos memes registram nesse sentido a garota que berra “eu mereci!”. A cena de Bacurau em que dois sulistas ouvem que não são brancos trata também de algo afim. O negacionismo eleitoral bolsonarista pode ser outro exemplo, na medida em que se alimenta da convicção de que é impossível terem perdido. Já à esquerda, o saudosismo inócuo de um Democracia em Vertigem sugere como entre nós também viceja esse complexo. A vitória de Lula, sob essa perspectiva, é ambígua: trouxe de volta um ideal, mas – se toda uma construção não for realizada – apenas para que após quatro anos o percamos e nos entreguemos à espera de que se realize, como manda o destino, outra vez.

Sendo assim, a seleção brasileira colocamos em campo o nosso ressentimento e a nossa vaidade. Se ganharmos a Copa, pode ser que não haja lavagem, mas que pelo contrário fiquemos ainda mais encardidos: “Foi porque merecemos!”, nós diremos? “Confirmado” o nosso lugar “devido”, então: será, senão a vitória do wishful thinking, a sua normalização. Pensando desse jeito, quase sinto vontade de perder a Copa. Para acabar com isso, melhor ver o outro lado da moeda.

No voleio de Richarlison

A segunda coisa a lembrar é que nós temos apanhado bastante. Faz já 20 anos do penta. Fomos eliminados nas quartas em 2006 e 2010, pela França e pela Holanda. Em 2014, tomamos 7×1 da Alemanha na semi – foi, este também, mais que o revés de 11 jogadores e mais um “fracasso do homem brasileiro”? E nem um prêmio de consolação tivemos – a Holanda nos tirou, com 3×0, o terceiro lugar. Já em 2018, voltamos a cair nas quartas, para Bélgica. É difícil se iludir a respeito de uma predestinada qualidade da seleção brasileira. A excelência pode não estar simplesmente demorando a voltar. Somos isso, agora? Uma sementinha de autoconhecimento brota.

(Há um texto interessante sobre essa desilusão e o que ela pode ensinar, redigido sob a goleada alemã, por David Butter.) E essa semente pode crescer até gerar outra indagação: teríamos sido, sempre, isso? Ou seja, não uma certeza, mas uma construção, com os riscos e baques implicados aí? Reparem bem: a seleção que virou a chavinha do complexo de vira-lata – e que contava com Pelé e Garrincha – pisou no gramado sob um “pessimismo obtuso”, como disse Nelson. A vitória apaga a estrada de dificuldades e desconfiança que levam até ela. O desafio ético diante de nós é ter isso presente na consciência; é sobrepujar o complexo de cão com pedigree.

Em 1958, o autor de À Sombra das Chuteiras Imortais falou das mulheres que passaram a andar como se fossem Joana d’Arcs reencarnadas. Imagine a transformação de ponta a ponta pelo país se conseguíssemos nos olhar pelo que somos, pelo que o presente possibilita, pelo que a história fez de nós, pelo que o porvir, que não deve nada a ninguém, inspira e, com efeito, exige.

Tudo isso, defendo, está contido no gol com que Richarlison fechou o 2×0 sobre a Sérvia no jogo de estreia da seleção na Copa. Se dependesse do moral da torcida já estaríamos desclassificados do torneio no primeiro tempo da partida. O brasileiro já se desesperava como o poeta Fernando Pessoa em “Tabacaria”: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”. Porém, terminado o segundo, tinha prontamente e de novo “todos os sonhos do mundo”. Bastaram uma pressão sobre o adversário, a demonstração de gana, um gol feinho, um gol magnífico.

A beleza apaga a estrada de triagens e tensões que levam até ela. Com tudo pronto, seja em um quadro, seja num livro, seja num gol, é fácil se iludir e crer que tudo é como devia ser. Mas tudo tem um movimento. Sigamos o movimento. Vinicius Jr. vem pela lateral do campo até a entrada da grande área. Bem posicionado – é preciso estar bem posicionado – Richarlison é a escolha de passe óbvia. Vinicius Jr. cruza. Diante da bola, o Pombo – o pessoal chama ele de Pombo – pode fazer muitas coisas, sabemos, várias delas ineficazes. Guarde na mente esse teor de insegurança. Ele bate nela, ela sobe; agora só cabe um golpe de capoeira. Que aposta! Mas ele sabe que tem isso treinadoé decisivo ter treinado. Há um momentozinho de preparação, um vai e volta dos joelhos, um cálculo às cegas, e Richarlison faz o voleio. E de repente existe o Brasil.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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