Sobre pingos e bolinhas

A menina inventou um meio de deixar a letra i mais charmosa


Esta crônica foi selecionada pela Úrsula a partir da dissertação de mestrado “Narrar a experiência da escola: um ensaio poético filosófico à luz da teoria da experiência e da narração de Walter Benjamin”. Veja a seleção.


imagem: Stuart Rankin

Jardim de infância. Um sobradinho improvisava a instalação daquela escola pública de educação infantil. Na pequena sala, algumas mesas, cadeiras e crianças. Duas mulheres cuidavam de tudo e de todos naquele espaço, as professoras.

Atividade do dia: completar a sequência de is com os pontinhos que faltavam. Afinal, quão importante é para uma criança com seus quatro ou cinco anos de idade descobrir que a letra i, além de ser assim tão fininha, leva um pontinho no alto. Seria para ajudar a diferenciá-la ainda mais da letra e, que no desenho da caligrafia cursiva ficam muito parecidas?

Uma menina olhava para aquela folha repleta de is, com marca roxa e cheirando a álcool, típica de uma cópia mimeografada. Ah! O mimeógrafo das professoras dos anos 90 sobre a mesa da sala de aula… Amarelo, com sua manivela preta, parecia mágica: ver saindo cópias roxinhas e úmidas do outro lado da máquina.

Aquela menina resolveu que bolinhas eram mais charmosas, mais visíveis, e era também mais divertido de fazer. Afinal, uma chatice preencher apenas pinguinhos por toda a folha sulfite, pois não dava trabalho nenhum.

– Não é bolinha! É pinguinho! – Observou a professora. Ela era alta, muito alta para aquela menina de quatro anos.

Tornou assim a menina para sua mesa, apagar as bolinhas e pingar o lápis sobre todos os is novamente.

O mais engraçado desta história é que aquela menina cresceu e quando teve seu primeiro namorado deparou-se com uma divertida surpresa: no primeiro cartão romântico que dele recebeu, notou que em todos os seus is – naquela mistura de letra cursiva, imprensa e bastão – pousavam bolinhas, gordinhas e engraçadinhas bolinhas… E ela sorriu, pois nunca se esqueceu da observação austera daquela alta professora.

E o mais bonito desta história é que aquela menina cresceu um pouco mais e, apesar de não entender bem por que, também escolheu ser professora.

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