Um Conquistador Nu

Paulo Markun resgata a história de um explorador espanhol que sobreviveu a três naufrágios, andou a pé, nu, 18 mil quilômetros, e escreveu livro que é referência na literatura de viagens

Náufrago, explorador, alcoviteiro, curandeiro, escravo, governador, escritor: algumas das facetas de Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, explorador espanhol do século XVI, personagem real de várias (des)venturas que poderia muito bem ter saído de um livro de Gabriel García Márquez. Os fatos que compõem sua vida tem em geral um cárater pitoresco. O sobrenome descende de uma batalha de cristãos contra mouros na Idade Média. Errante, foi náufrago por três vezes, se tornou uma espécie de messias no México e sul dos Estados Unidos ao curar um nativo, angariando um séquito de índios. Na América do Sul, foi governador de Santa Catarina — o que indica as suas ligações com a história do Brasil, apesar da escassez de registros históricos. Em Assunção, depôs o primeiro governador eleito das Américas, Domingos Irala. O livro Cabeza de Vaca (Companhia das Letras, 2009), do jornalista Paulo Markun, reúne essas e outras histórias do intrépido espanhol.

Markun é presidente da Fundação Padre Anchieta e foi apresentador do programa Roda Viva, da Cultura, por dez anos. Trabalhou nos principais jornais e emissoras de televisão brasileiros. Criou as revistas Imprensa e Radar, a edição paulista do jornal O Pasquim e a newsletter Deadline, sobre negócios da comunicação. Em 1986, foi eleito o melhor apresentador de televisão, pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em 2008, recebeu o prêmio Comunique-se na categoria executivo de comunicação. Para escrever o relato das aventuras de Cabeza de Vaca, foram oito anos de pesquisa. O espanhol registrou suas histórias no livro Naufrágios e Comentários (publicado no Brasil pela L&PM); Markun coletou documentos e textos inéditos em viagens internacionais.

O jornalista se apaixonou pelo personagem Cabeza de Vaca enquanto pesquisava sobre a história de Santa Catarina para produzir uma biografia a respeito de Anita Garibaldi: “percebi que não havia uma narrativa com a linguagem de hoje, as referências que permitiriam conhecer melhor o que aconteceu”. A pesquisa deu início, em 2002, ao projeto de um documentário para o canal Discovery América Latina. O documentário acabou não sendo produzido, mas o jornalista continuou sua pesquisa. Na Espanha, encontrou papéis e documentos originais, guardados, empilhados sem organização e sem a transcrição que permitisse acesso pelo computador. Segundo ele, “até 2003, os arquivos não haviam ainda sido digitalizados, porque na Espanha o Cabeza de Vaca não está no panteão dos heróis, ele não descobriu nada, não conquistou coisa nenhuma, não ‘deu certo na vida’”. Ainda: “a Espanha conhece razoavelmente a história dele, assim como na América do Norte, principalmente no Texas e México; mas nós não conhecemos nada”.

De acordo com o jornalista, “se vocês acompanharem o relato dele em território brasileiro, ele é uma fonte de informação muito interessante, por exemplo sobre as tribos indígenas, o comportamento dos índios, a fauna, a flora, as Cataratas do Iguaçu, as Sete Quedas, enfim, uma grande quantidade de informações que são pertinentes à nossa história e que nós não conhecemos porque não temos acesso, ainda que o livro dele tenha sido publicado”. Além dessas histórias e do seu valor histórico, Markun fala sobre o processo de produção do livro — incluindo uma controvérsia com o parecerista — e também das relações entre escritor e leitor: “escrever um livro é sempre um trabalho solitário e de insegurança, na medida em que você quer saber se a história convenceu ou se entusiasmou ou sensibilizou o leitor”. As informações são de uma palestra concedida pelo jornalista no Sesc Santos.

Para mais histórias desse que foi um “perdedor de sorte”, segundo Markun, “porque perdeu muitas vezes mas sempre se safou pela sorte e um pouco pela resistência”, há o site em que o leitor poderá conferir informações sobre a época, documentos e casos de outros personagens que não aparecem no livro. “É uma forma do leitor que não tiver condições de comprar o livro conhecer melhor a história e, para os pesquisadores, há todo o material que foi utilizado. O livro acabou de ser lançado, então muita gente, espero, ainda vai se entusiasmar por ele”.

Colonizador, Aventureiro, Usurpador

“Cabeza de Vaca nasceu numa família de fidalgos, algo como a classe média. Seu avô paterno, Pedro de Vera, homem renomado, teve papel importante na conquista das Ilhas Canárias. Na Espanha havia algo como uma ‘parceria público-privada’ entre a coroa e os conquistadores. Nenhum sujeito entrava num barco e ia conquistar algo sem autorização real”, e essa era concedida apenas à troca de dinheiro da Espanha, principalmente no governo de Carlos V, “que torrou milhões e milhões de riquezas do Peru, parte do México, a prata da mina de Potosí na Bolívia”.

“O Cabeza investiu cinco anos do suposto salário dele tanto para ir à América do Norte como tesoureiro — usando também dinheiro da mulher — quanto para a segunda viagem, para ser o candidato a governador. E era curioso porque ele veio para o Brasil na seguinte situação: se um certo Juan de Airosa estivesse vivo, que era uma espécie um herdeiro indicado do governador anterior, ele ficaria só com a ilha de Santa Catarina; se estivesse morto, ficaria com o governo do Rio da Prata. Então ele de alguma forma se convence que esse Airosa estava morto, vai para Assunção e então depõe, ou pelo menos substitui, o primeiro governador eleito da história do continente americano, o Domingos Irala”.

Onde o mouro comeu a vaca e deixou a cabeça

“O título foi um pouco inspirado nos livros da época, do século XVI, como por exemplo o Dom Quixote, e também no sentido de tentar apresentar um pouco para o potencial leitor esse ‘cara’, que é incompreensível”. A origem do sobrenome remonta ao século XIII: “em 1212, um pastor de ovelhas indicaria ao rei de Castela a maneira de conquistar um ponto chave numa batalha contra os mouros desde que ele pudesse voltar ao lugar onde estes tinham comido uma vaca e deixado sua cabeça. Então os soldados acompanham esse cara e, realmente, conseguem ganhar a batalha. O rei, então, permitiu que a partir daquele momento os participantes dessa história adotassem o sobrenome Cabeza de Vaca”. Essa versão, de 1570, foi a adotada pelo autor.

No Brasil

Em terras tupiniquins, após 1541, teve contato com dois pontos cosmopolitas. Primeiro, Cananeia, onde havia uma colônia que recebia embarcações de várias bandeiras. Depois, em Santa Catarina, pouso de uma colônia de náufragos e de índios, que também atendia navios e nela co-existiam pacificamente índios, portugueses, degredados, náufragos, espanhóis, “mas hoje não sabemos direito qual era tamanho dessa colônia”, diz Markun. Neste lugar, Cabeza “teve contato com um índio aculturado chamado Miguel do Brasil, que falava castelhano e guarani; ele foi uma ponte entre o espanhol e os índios”.

Cabeza batiza o território catarinense de Província de Vera, em homenagem ao avô. Foi governador de Santa Catarina pela Espanha, mas não sobrou nada de registro oficial, além de suas memórias. “Há uma ilha em Floripa chamada Ratones, e dizem que foi o Cabeza de Vaca que nomeou. Ele descreve a baía de Ramos, o estreito da ilha com o continente, mas não há registro histórico disso”. Há uma discussão sobre se um barco naufragado no litoral catarinense seria da frota dele ou não. Um espanhol governando no Brasil? No século XVI, Santa Catarina era portuguesa para os portugueses, e espanhola para os espanhóis, dada a impossiblidade técnica, à época, de determinar o meridiano de Tordesilhas. O espanhol governou por oito meses e deixou em torno de cem homens por aqui.

O náufrago que ninguém comeu

Cabeza passou por naufrágios, privações, atuou como curandeiro, liderou legiões de índios. Em certo episódio, naufragou entre Estados Unidos e México. Terminou em um lugar apelidado por eles de Ilha do Mal Fado. Cabeza conta, nas Memórias, que ali um grupo de náufragos passou por uma fome tão grande que acabaram por comer uns aos outros — sobrou só um, porque não havia ninguém para comê-lo. Cabeza e seus companheiros “viviam nus, pois foram perdendo as roupas, e passaram uma fome extrema, comiam cactos”. Após algum tempo de viagem, o conquistador entrou em contato com índios e curou um deles de alguma doença. “Rezaram um Pai Nosso, um Ave Maria, fizeram o sinal da cruz e um índio ficou bom. A partir desse momento ele passou a ser seguido por uma legião de índios e ia de tribo em tribo para saqueá-las”. Dessa forma, ele e outros três sobreviventes caminharam 18 mil quilômetros pelo que hoje são os estados do Texas, Novo México e Arizona, como índios, nus. “Quando escontrou novamente os espanhóis, ele estava numa situação tão incrível que ninguém o reconheceu, barbado e nu”.

O parecerista e o editor

“O parecerista destruiu, acabou com o livro e eu tive dificuldade de aguentar a paulada, mas depois de ler algumas vezes passei a dar razão a ele. A base da crítica do parecerista é que a história se perdia no meio do caminho. Ao tentar passar para o leitor a quantidade de fatos e personagens imensos, eu produzi um negócio que não era nem livro de aventura nem um tratado histórico. Então eu tive que desconstruir tudo aquilo que eu tinha feito para deixar o sumo no livro e perseguir a história do Cabeza de Vaca a partir da perspectiva dele sem tentar tomar partido. Ele não é herói nem vilão, é um personagem cheio de nuances”.

As reações ao livro agradam: “Eu já tive reações diversas ao livro, como: ‘Ah, esse cara é um bandido’ e outro ‘Poxa, esse cara era bom mesmo’, então eu acho que eu consegui esse intento de fazer com que a história não seja minha, mas de quem lê. Eu agradeci ao parecerista no fim do livro. É sempre difícil você encarar a crítica ao teu trabalho, ainda mais quando ainda não foi publicado. O trabalho do escritor ganha quando há um bom editor. Isso funciona mais para não-ficção do que para ficção. Acho que essa contenda sobre a história é sempre um bom recurso, embora seja necessário humildade para receber”.

Internet, Recepção do Livro, Crepúsculo e Dan Brown

A internet oferece espaço para a discussão e para perceber a recepção do livro: “Uma crítica que eu achei sensacional foi: ‘eu gostei do livro Cabeza de Vaca, parece o filme Avatar’. Eu disse: ‘estamos bem na foto’. É disso que o nosso trabalho vive, da satisfação ou insatisfação do leitor, da possibilidade de crítica”. Todo autor gosta disso [do contato com seus leitores]. Escrever um livro é sempre um trabalho solitário e de insegurança, na medida em que você quer saber se a história convenceu ou se a tua literatura entusiasmou ou sensibilizou o leitor”.

Em qual setor da livraria poderíamos colocar Cabeza de Vaca? “Na frente, ao lado de Crepúsculo e Dan Brown!”, ri. “É biografia, indiscutivelmente, mas ele é também a coisa de acompanhar a trajetória da personagem com o ritmo e ordem cronológica de filme. Não é à toa que eu estou fazendo agora um roteiro cinematográfico baseado no livro. É absolutamente fascinante a vida de Cabeza, e não dava pra contar isso com muito rigor em determinados trechos”.

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