Sherlock Holmes, o personagem, engoliu Arthur Conan Doyle, seu criador. Enquanto o filme de Guy Ritchie (Sherlock Holmes) está nos cinemas, saiba sobre o livro em que Doyle se viu obrigado a ressuscitar sua criatura
É glória de poucos escritores criarem personagens tão grandes, quando não maiores, do que eles mesmos. O feito alista-se entre os quesitos para aquilatar o talento de um escritor. Se foi capaz de criar um personagem grande, ele dificilmente será um artista medíocre. Shakespeare, Cervantes, Milton, Dickens, Victor Hugo, Balzac, Jane Austen – todos eles, e seu personagens, falam por si. Dostoiévski arrola-se entre aqueles que souberam dar vida a criaturas tão complexas, tão fascinantes quanto ele próprio. Raskholnikóv e o Príncipe Mishkin, para citar somente dois, são nomes para sempre lembrados.
O caso de Arthur Conan Doyle (1859-1930) já é proverbial: sua criatura, Sherlock Holmes, engoliu o criador. Há quem ignore o nome de Doyle; contudo nem sequer os que não o leram desconhecem Sherlock Holmes.
O Retorno de Sherlock Holmes (1904) apresenta-nos as aventuras do detetive logo após a sua “resssurreição” feita por Doyle, que chegou a matar seu herói; as ofertas financeiras cada vez mais tentadoras, assim como a pressão da massa de leitores (consta que uma lady, assim que leu a história onde Holmes “morre”, escreveu-lhe: “Seu carniceiro”) foram responsáveis pelo retorno. Também se diz que Doyle ressentia-se do seu personagem, que o impedira de ocupar “um lugar mais alto nas Letras”.
No conto que abre a coletânea, “A Casa Vazia”, o leal Watson narra para nós como as notícias de um assassinato misterioso atraíram-no ao local do crime e o fizeram recordar-se do amigo morto cuja ausência mais uma vez fazia-se sentir… É um conto simples, de trama rasa, em que a prioridade é ressuscitar Sherlock Holmes, e tira seus melhores momentos disso, recuperando o herói para nós ( à época, a edição com essa aventura deve ter sido uma das mais gratas emoções dos leitores), sem faltar nada, nem mesmo seu humor ácido. Na aventura seguinte, “O Construtor de Norwood”, o apelo deixa de estar na emoção da volta de Holmes, e transfere-se para a trama: o mistério do crime e os passos do detetive rumo à solução. O conto também se destaca por uma das melhores frases ditas por Sherlock Holmes : “Ele não tinha o supremo dom do artista, que é saber parar. Quis aperfeiçoar o que já era perfeito ” diz, referindo-se ao criminoso.
Também “A Escola do Priorado” obtém sua força pela complexidade do crime – como o menino foi raptado? Holmes esforça-se enquanto o fiel Dr. Watson nos conta todos os passos de seu amigo rumo à solução; a última cena é de um forte impacto teatral.
“Peter Black” — como de costume a narração é de Watson — inicia-se com um breve preliminar em que o médico situa o detetive na época exata – 1895 — em que se dão os extraordinários acontecimentos do conto; nesse preâmbulo Watson alude a diversos casos que Holmes solucionou — mas que Conan Doyle jamais escreveu. Temos, nessa como em outras histórias, apenas as alusões. Pena. “Peter Black”, como um todo coeso, vem recheada de pistas desde o começo, numa técnica de que Agatha Christie mais tarde fará uso frequente.
Outras aventuras que devem ser mencionadas são “Os Seis Napoleões” — presente em várias antologias — “A Granja da Abadia” e “A Segunda Mancha”. Está aqui também o festejado “Os Dançarinos” que, embora não dos meus favoritos, era um dos que o próprio Doyle considerava dos melhores. Hoje sua particularidade bizarra soa comum. Mas não assim quando surgiu; não nos esqueçamos que Doyle, via Sherlock Holmes, foi o pioneiro em muito do que se tornou costumeiro na literatura policial.