Tempo em Gotas

O impulso incômodo em direção à vida. O cotidiano que se repete, se repete, e, por uma mudança sutil, se quebra

Ana Beatriz Noronha é estudante de jornalismo e empresta uma frase de Álvaro de Campos para se descrever: “Arredores irregulares da minha emoção sincera, sou eu aqui em mim, sou eu…”. Certa inadequação, certo impulso incômodo em direção à vida — que também existe no personagem de Pessoa — é aparente no conto “Tempo em Gotas”, que Ana envia à Capitu. Por isso, talvez não por acaso, sua personagem lembre a de um conto de Clarice Lispector, jogada a uma atitude definitiva por uma voz interna e sutil. É o cotidiano que se repete, se repete, se repete e, um dia, por uma mudança imperceptível, se quebra.

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Tempo em Gotas

Estava mais frio do que de costume para essa época do ano. Também pudera, o calor dos últimos dias era inquestionável; nem os pensamentos conseguiam andar de um lado a outro da cabeça com o sol a pino daquele suspeito verão.

Pediu tantas vezes pra chover. Mas dava pra ver nos olhos refletindo o cinza do dia, que mesmo aquela chuva ainda não era o que se esperava. E o que se esperava? Esperava.

Esquentava a água, procurava o pó de café na prateleira entre os restos de biscoitos e o pacote de açucar mascavo já quase no fim. A água já começava a pular, corria com o pó para o bule, e como de costume, derrubava parte no chão – já não sabia se era incontrolável ou se fazia parte do rito do café, mas o velho labrador sempre apreciava os restos caidos (compartilhava talvez com ela os vícios da cafeína).

Passava o café; acendia o cigarro; apagava o cigarro; levantava da cadeira; sentava; acendia outro cigarro; queimava a ponta do dedo que já tinha suas marcas; olhava os livros na estante; voltava ao bule, mais café…

Ro-ti-na. Por mais que odiasse essa palavra, havia o prazer no asco pelas repetições cotidianas, inconfessáveis sim, mas existentes.

A chuva já havia parado, dando lugar a um céu preguiçoso, entre algumas nuvens e certas lacunas de sol.

Pegou um livro; a fita de cetim que usava em volta do pescoço do velho cão; o maço de cigarros amassado entre a poltrona e as revistas espalhadas pelo chão – parara de fumar, mas a sensação do corpo-objeto entre os dedos facilitando os gestos das mãos a mantinha segura – o telefone tocou.

O cão latia formando uma sinfonia perturbadora. Olhou para o telefone que em sintonia com os latidos começava a entrar em uma frequencia estranha; olhou para o livro nas mãos – um exemplar envelhecido de Madame Bovary – e para a janela entreaberta que dava para um simpático bosque, ainda que denso e cheio de sombras em alguns pontos; algumas gotas d’água caiam lentamente no telhado, formando prismas, ou lentes que psicodelicamente mostravam o outro lado; o telefone ainda tocava, e tocava, e tocava… pareciam ter passado ali dentro alguns bons anos…olhou para o cão, olharam-se, eu suspeito; pegou as chaves e bateu a porta.

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