Singelezas

A arte é uma forma de conhecimento que nos permite refletir sobre a experiência humana

“[…] acho que aquele, na minha vida, foi o ponto e ponto e ponto”
– Guimarães Rosa

Assim Riobaldo, o narrador de Grande Sertão: Veredas, define o momento em que assume a liderança do bando ao qual pertencia. Pontos seguidos formando reticências. Mas, o que seriam essas reticências? Esta pode parecer uma pergunta despretensiosa, mas carrega em seu bojo uma série de questões sobre o estatuto da arte. Flutuando por reflexões sobre a sua função, ou sobre quais as suas possibilidades comunicativas, essa pergunta pode levar a pensar em como pequenos elementos, assumindo diferentes sentidos, podem ser significativos na obra de arte.

Essa é uma das potências comunicativas das reticências proferidas por Riobaldo. Por meio da alusão a uma figura gramatical, aquele curto momento assume outra dimensão se estendendo e tornando-se nodal na constituição temporal do romance. Esse é, por certo, um dos procedimentos mais característicos de toda obra de arte: a estilização de um elemento que, sem abandonar sua origem, é transportado a outros domínios, ganhando novos contornos e novas significações. A arte tem esse olhar múltiplo, como que o olhar de quem observa um prisma, em que um objeto pode ser a um só tempo infimamente pequeno e universalmente colossal, como também já se observou em Aleph, de Jorge Luis Borges.

Desse modo, como um recurso estilístico, as reticências indicam a indeterminação na vida do narrador e a indeterminação do romance. Mas, sobretudo, indicam a indeterminação da trajetória humana. São pontos que aludem ao caráter enigmático da passagem humana sobre o mundo, a ausência de sentido de alguém que contempla os desenhos sinuosos do caminho sem poder determinar seu início e seu fim.

Se é que é possível falar de um modo tão flutuante sobre as possíveis funções da arte, o breve olhar sobre a estratégia de Guimarães Rosa talvez permita dizer que ela pode levar à reflexão da nossa condição de forma estetizada. Obviamente, um objeto artístico não representa a solução para todos os problemas, nem oferece todas as respostas. Todavia, é uma forma de conhecimento, tão importante quanto o conhecimento científico ou o conhecimento religioso, mas que, por via de sua expressão estética, oportuniza a experienciação do mundo de uma forma diferenciada. Na interação entre o sujeito e o mundo, a arte permite a significação e ressignificação de ambos, de forma que até o menor elemento pode tornar-se central nesse trabalho estético. Uma semente que se desabrocha em uma galáxia de sentidos possíveis.

Natureza Morta com Caveira, de Philippe de Champaigne

Um percurso sobre a história da arte revela a infinita frequência desse trabalho. Utilizando-se ainda da metáfora da semente que desabrocha, a flor é um dos exemplos mais representativos da estetização promovida pela arte, assumindo significações diversas no decorrer dos tempos. A rosa barroca, seja na poesia, na pintura ou na arquitetura, simbolizava a efemeridade humana e a vertigem diante do abismo da morte. É isso o que se nota na natureza morta de Philippe de Champaigne, em que uma rosa, uma caveira e uma ampulheta, postas lado a lado, acenam a contagem regressiva de uma vida breve rumo à morte.

Já a rosa romântica simbolizava, muitas vezes, o amor e a feminilidade. No século XX, Carlos Drummond de Andrade nos apresentou uma rosa social:

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Rosa Meditativa, de Salvador Dali

Há também a rosa existencial de Salvador Dali, como se vê no quadro Rosa Meditativa. Uma rosa sem raízes que flutua por uma paisagem poente que se esvai ao infinito.

Por fim, pode-se citar o contato entre o ser humano e a natureza mediado pela chuva de pétalas de flor de cerejeira tão frequente nos haikais japoneses.

A experiência proporcionada pelas flores da arte é uma experiência profundamente humana. A flor barroca oferece o contato do homem com a morte sem, entretanto, sucumbir a este; a flor de Drummond expõe uma sociedade alienada, afirmando, todavia, a possibilidade de beleza em meio “ao asfalto de aço”. A arte seria como o escudo de Perseu, que permite a quem lê olhar nos olhos da Medusa sem se petrificar. Ela proporciona a reflexão crítica sobre a sociedade, sobre nossos sentimentos, sobre nossa passagem pelo mundo, tudo isso sem a pretensão de respostas definitivas. Quem lê arte, muitas vezes, lê o mundo, lê o outro, lê a si mesmo.

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