Revolucionários Domados

Algumas sutilezas e a possibilidade de crítica de uma história é suprimida

Cena de O Gabinete do Dr. Caligari

No livro De Caligari a Hitler — Uma História Psicológica do Cinema Alemão, Siegfried Kracauer demonstra como uma alteração, a inclusão de dois elementos na história, retirou da película O Gabinete do Dr. Caligari o caráter de crítica social, tornando-o mais parecido com um conto de Edgar Allan Poe, mais parecido com uma fantasia, distante das intenções originais de seus roteiristas. Algumas diferenças sutis entre obra-mãe e adaptação também deixam consideravelmente mais inofensivos dois filmes hollywoodianos: V de Vingança, dirigido por James McTeigue, e Clube da Luta, por David Fincher. Ambos com conteúdos que se pretende ou que é revolucionário (depende de quem comente), ambos com — como Caligari — tem uma crítica social que é amainada. O Gabinete do Dr. Caligarié um filme de 1919, dirigido por Robert Wiene, com roteiro de Hans Janowitz e de Carl Mayer. É um clássico do expressionismo alemão; Kracauer diz em seu livro:

“(…) com suas chaminés oblíquas em tetos confusos, suas janelas em forma de arco ou pipa e seus arabescos em forma de árvore, que eram ameaças em vez de árvores, parecia com aquelas visões de cidades desconhecidas que o pintor Lyonel Feininger evocou através de suas composições angulosas, cristalinas. Além disso, o sistema ornamental expandiu-se através do espaço, anulando seu aspecto convencional por meio de sombras pintadas em desarmonia com os efeitos de luz, e delineações em zigue-zague para apagar todas as regras de perspectiva”.

É uma representação de mundo não racional, mas emocional. É nesse lugar que vai se passar uma história de mistério, assassinato e vilão demoníaco que daria origem aos filmes de terror modernos. Caligari pode ser assistido na íntegra aqui. O filme se inicia com um prólogo, onde um homem começa a contar uma história. Fala da chegada do circo à cidade; com ele, um saltimbanco, Caligari, que apresenta, como atração, o sonâmbulo Cesare. Cesare esteve dormindo sem interrupção em um caixão por anos, diz Caligari, e ele pode predizer o futuro. Um rapaz da platéia pergunta sobre o seu próprio; lhe responde Cesare: “você vai morrer nesta noite”. De fato, morre. Logo, desconfiam daquele que prevê as mortes, o perseguem, ele não resiste e também morre. Partem para caçar quem o controlava, Caligari. Na busca por ele, o homem — o mesmo que conta a história — vai a um manicômio. Pergunta se há algum interno com esse nome Caligari, lhe dizem que só o diretor do hospício saberia. Quando ele vai ao diretor questionar sobre o assunto, descobre, apavorado, que ele próprio é o dr. Caligari.

Na ausência do doutor, o protagonista e alguns médicos vasculham o escritório de Caligari e descobrem um diário e um livro antigo. No livro, uma história do século XII sobre certo Caligari, que controlava sonâmbulos e os fazia matar em seu nome. No diário, o doutor, um estudioso do sonambulismo, se perguntando se isso era possível, se dando o dever de testar a hípotese. “Devo me tornar Caligari”, ele se diz. Descoberta a trama, os médicos ajudam a prender o psicológo enlouquecido e a história volta ao cenário inicial, para seu epílogo. Aí vem a reviravolta: descobrimos que o lugar em que ela foi contada é o hospício, que nosso protagonista é um dos internos, assim como os personagens da sua trama. Cesare está lá, na sua própria divagação; e Caligari é o diretor do hospital, que acaba por entender a psicose do homem e sugere que sabe a cura: “Ele pensa que sou Caligari…”.

A alteração feita a contragosto dos roteiristas foi a inclusão do prológo e epílogo. Sem esses dois elementos, a história de fato ocorreu; com eles, foi o devaneio de um louco. Segundo Kracauer: “Janowitz e Mayer sabiam por que se insurgiram contra a estória-moldura: ela perverteu, se não reverteu, suas intenções intrínsecas. Enquanto a história original expunha a loucura inerente à autoridade, o Caligari de Wiene glorificava a autoridade e condenava seu antagonista à loucura. Um filme revolucionário foi assim transforma em conformista — seguindo o padrão muito usado de declarar insanos alguns indivíduos normais, causadores de problemas porém, e de mandá-los para um manicômio”. O filme tinha uma solução, um happy ending, a sensação final era de alívio.

Clube da Luta

Cena de Clube da Luta

Clube da Luta é de 1999. O final do filme tem uma quase irrisória diferença em relação ao final do livro de Chuck Pallanuk, que modifica a sua mensagem. A história é essa: um executivo tem problemas de insônia e certa decepção/depressão causada pela vida que tem. Ele passa a ir a reuniões de grupos de alcóolicos e doentes terminais por sugestão do médico; sente-se calmo, compreendido sem dizer nada, genuinamente ouvido pelos outros. Mas ao conhecer alguém que faz o mesmo que ele — participa de reuniões pelo prazer ou sensação que dão — a anestesia não funciona mais, ele volta a não dormir. Esse alguém é Marla Singer, uma suicida e viciada em drogas. Pouco depois, ele conhece Tyler Durden, homem de filosofia extremista que cria com ele um modo de desestressar, de se livrar do peso da modernidade. Esse modo é o combate físico até a desistência, é o clube da luta.

As ideias de Tyler Durden são o material de maior interesse. São uma crítica ao status quo, ao consumismo, a uma vida padronizada e sem intensidade de experiências. Quando é dito no filme que o personagem não é o que veste, não é o que compra, está se procurando uma personalidade individual além do estilo; quando se arruína o próprio corpo em batalhas, se está procurando uma personalidade além da aparência e uma vida além da autopreservação. A tese central é: se arrisque, ou a vida não vale a pena. A segunda parte das ideias de Tyler (divido em duas partes porque esta segunda não é um desenvolvimento lógico, necessário, da primeira) é mais extremista: propõe abandonarmos totalmente a tecnologia, vivermos no estado natural, de luta pela vida, do qual partirmos. Essa segunda parte tem similitudes com a corrente de pensamento chamada de anarcoprimitivismo, com verbete na Wikipedia.

Continuando. Pouco a pouco, o clube da luta ganha cada vez mais fama, e outros, seguindo as mesmas regras e ligados a Tyler Durden, são criados por todo EUA. Durden então cria o Projeto Caos, um movimento pensado de modificação da sociedade. Enquanto o projeto se desenvolve e atrai afiliados, acontece um relacionamento entre Tyler e Marla; fazem sexo e ela é, em seguida, ignorada totalmente por Tyler. Perto do fim, o projeto máximo do Caos é posto em prática: a destruição das informações bancárias de todo país, zerando o crédito e a economia, restabelecendo um estado primitivo. A relação de Tyler com o protagonista se torna esmaecida, Tyler nunca é visto por ninguém e como uma sombra está em todo lugar. Na perseguição final dele, para impedir que consiga seu intento, descobrimos o segredo: Tyler Durden e o protagonista são a mesma pessoa. Ele é como uma personalidade recalcada do protagonista. Enquanto ele dormia, Tyler agia. As mudanças de comportamento em relação à Marla se deviam a isso. E, da mesma forma, somos levados a pensar que todas as suas atividades, sua crítica à sociedade, seu projeto de anarquia primitiva, tudo isso era devido à loucura, tudo devido a uma psicose, nada precisa ser levado a sério por ninguém. Marla e Tyler (o protagonista) se dão as mãos; aí a solução, o happy ending romântico, a sensação de alívio.

No livro, a sequência final se dá, presumivelmente, em um hospício, onde vários membros dos clubes da luta e do Projeto Caos falam com Tyler Durden internado, contando sobre os avanços do projeto, preparando uma fuga. O filme sugere que está tudo terminado, que, mal ou bem, as coisas retornarão ao seu normal. O livro indica que o movimento cresce sem um líder, ideia corroendo o senso comum; e indica que esse antigo líder não nega o que criou. Talvez mesmo o compreenda. Na adaptação, ele passa de um doente ludibriado? Não. Tudo leva a crer que a anomalia na sociedade se devia à sua doença. Acabada a doença, é claro, a anomalia deixa de existir, a crítica deixa de existir e ele se torna normal e capaz de amar. O happy ending romântico: singelamente, eles se dão as mãos. Outras semelhanças com Caligari podem levar a reflexões que não estarão nesse texto. Por exemplo: tanto Caligari quanto Tyler dominam sonâmbulos, e/ou utilizam-se de outros para seus fins, como ferramentas. No entanto, o primeiro devia servir de crítica à autoridade que enlouquece e abusa de seu poder; e o segundo deva ser a imagem da absoluta liberdade. As comparações levam a pensar: a imposição de controle quanto a defesa de liberdade podem usar dos mesmos instrumentos? E se usam, qual é de fato a diferença entre eles?

V de Vingança

Cena de V de Vingança

V de Vingança foi lançado em 2006, e é uma adaptação da graphic novel de Alan Moore. Conta a história de um herói mascarado, V, que coordena a derrocada do regime fechado a que toda sociedade foi submetida. Assassina alguns personagens importantes do governo e demonstra seus pontos vulneráveis. Invade uma rede de televisão e fala para a sociedade sobre liberdade, o que perderam. Anuncia uma revolução. Enquanto isso, convive com uma garota que salvou da polícia repressiva, Ivy. Ele a submete a torturas psicológicas intuindo um aprendizado sobre liberdade acima de qualquer tentativa de autoridade. No filme, essa revolta social final acontece, o happy ending, a solução, o alívio. O herói que vence o mal.

Não é assim na HQ. A adaptação simplifica politicamente a obra e a emburrece. No filme, há um estopim melodramático para a revolta. Uma garotinha, pixando a parede, é atacada pela polícia do regime. O ataque enfurece a população, que como que enfim vê as amarras que lhe foram colocadas e reage. No original, o que V faz é destruir a capacidade do governo monitorar cada gesto, cada palavra, cada intenção dos cidadãos. Sem câmeras e sem gravações, ele, como diz, lhes “devolve a privacidade”. É a cobiça que corrói o regime; os roubos se sucedem, as lojas quebradas, vazias. A polícia não é capaz de conter todos os focos de caos, cede à violência e à contratação de milícias, o que por sua vez alimenta mais conflito. A sensação de impunidade aí sim leva à criação de um outro conjunto de leis, de defesa dos seus, em oposição à opressão. A diferença é abismal: não tratamos da sociedade naturalmente boa cuja bondade foi restringida; falamos de uma sociedade naturalmente má e naturalmente boa, capaz do roubo e da compaixão, foi levada à alienação pelo medo. Outra diferença: no filme, há a vitória. O regime é vencido, as pessoas estão libertas e só a paz e a felicidade nos espera. Na HQ, a destruição do status quo é um passo necessário para a conquista da liberdade, mas ela não garante essa liberdade. O discurso de V no final diz:

“Desde a aurora da humanidade, um punhado de opressores aceitou a responsabilidade sobre nossas vidas. Responsabilidade que nós devíamos ter. Eles tomaram nosso poder. Passivamente, nós entregamos. Vimos onde seus caminhos levaram, através de campos e guerras, rumo a matadouros. (…) Hoje, vocês irão escolher entre uma vida própria ou o retorno aos grilhões”. Todo o plano de V só leva até uma escolha, e essa escolha é daquele povo-personagem, e, é claro, é também nossa, povo-leitor.”

Se se dissesse, como diz o filme, que a liberdade geral, para todos, poderia ser conseguida pelo esforço individual de um só, a história se traíria a si mesma: seria novamente o grupo dependente de um líder redentor, seria novamente a mesma humanidade-rebanho, só que sob um regime que se pretende mais libertário. (Se quiser continuar a discussão que esse texto não abrange, pode perceber que, diferente de Caligari e Tyler, V não tem ninguém sob suas ordens e não ordena nada à sua discípula. As escolhas são sempre dela: na HQ, é ela quem repetidamente diz que quer retribuir a V; é ela que pede pra ir pra casa e é solta; é ela que tenta um assassinato e dá razões para sua prisão. Diferente do filme, ela nunca é vítima — na adaptação, ela é atacada por nada no começo; na HQ, por prostituição. Outro texto que explora essas diferenças é o de Claudinei Vieira.) Portanto, as mudanças tornaram o filme inócuo, um filme que não nos cobra ação. Como Kracauer diz de Caligari: “Em sua forma modificada, não mais era um produto que, do melhor modo, expressava sentimentos característicos da intelectualidade, mas um filme supostamente adequado a se harmonizar com o que os menos cultos sentiam e de que gostavam”.

Dois casos, cada qual sua proporção, mas as semelhanças são evidentes.

No entanto…

No entanto, o modo com que esses filmes foram feitos e as mudanças que foram impostas acabam sendo sintomáticas da sociedade para a qual o filme foi produzido. A preeminência do indivíduo, do homem que cresce sozinho, do individualismo americano — tudo isso está em Clube da Luta. Tyler é um empreendedor criativo e bem sucedido, e, no final, passará a um relacionamento estável. Curada a doença, resta a afirmação do self-made man, a lenda americana preferida, existente, por exemplo, em À Procura da Felicidade. V de Vingança se adapta também a esse ideal: na cena, não existente no original, em que todos vestes as máscaras de V, a mensagem é: todos somos V, todos temos esse poder de interferência. A sociedade criada ali é uma sociedade de homens empreendedores e é uma democracia — não uma anarquia como queria a HQ. Os dois filmes refletem o seu contexto social. Com O Gabinete do Dr. Caligari, acontece o mesmo:

“Apesar de ter se tornado um filme conformista, preservou e ressaltou sua estória revolucionária — como a fantasia de um louco. A derrota de Caligari agora fazia parte das experiências psicológicas. Neste sentido, o filme de Wiene sugeria que os alemães foram levados a reconsiderar sua crença na autoridade. Esse comportamento atingiu o grosso dos trabalhadores sociodemocratas, levando-os a refrear sua ação revolucionária; e ao mesmo tempo uma revolução psicológica parece ter se delineado nas profundezas da alma coletiva”.

E encerra:

“O filme reflete este duplo aspecto da vida alemã, ao acoplar uma realidade na qual Caligari triunfa a uma alucinação em que essa mesma autoridade é derrubada. Não poderia haver melhor configuração de símbolos para esta reação, contra os dispositivos autoritários, que aparentemente ocorreu sob a cobertura de um comportamento que negava a revolta”.

Alguém poderia afirmar que é a mesma situação dos EUA sob Bush, no caso de V de Vingança; e que era a mesma dualidade dos EUA sob Clinton, no caso de Clube da Luta. Será que se aplica?

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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