Entre os Muros da Escola

Uma investigação de como se sentem os principais envolvidos na educação: professor e aluno

Aluno, professor, família: tensões diárias, protestos, trabalho, tristeza, raiva, alegria. No começo do ano, estourou na mídia Entre os Muros da Escola (Martins Fontes, 2009), livro do professor francês François Begaudau, sobre tudo o que vê e sente na rotina de seu trabalho. A obra gerou um filme homônimo que foi ganhador da Palma de Ouro, prêmio do Festival de Cannes. Em três meses de trabalho em uma escola da Zona Norte de São Paulo, observei um pouco do que é narrado por Begaudau em seu livro.

Entre os Muros não é mais um livro sobre educação. O autor não mostra melancolicamente a realidade escolar, não há um salvador da pátria pronto para defender a todos e terminar como herói de uma história (quem se lembra do longa Meu mestre, minha vida, com Morgan Freeman?). Deparamo-nos com narrativa em primeira pessoa, quase em formato de relatório, temperado com singela ironia nas entrelinhas, mas sem glorificar ou diminuir o papel de ninguém naquele contexto, nem o seu próprio.

A leitura fez ressoar as horas em que professor brasileiro típico (aquele conhecido pelo jargão professor sofredor, utilizado pela própria classe) passa acordado antes de cair como pedra na cama. A vontade de não ir ao trabalho, a descrença no aluno, o preconceito de classe, de origem, o racismo, a falta de estímulo geral, a falta de razão. A falta. O que não falta no texto é a vontade dos professores em sumir da escola. O desejo é compartilhado pelos alunos.

A distância geográfica não impede que a rotina do professorado de ambos os países seja semelhante. Nas linhas abaixo, comparo as situações narradas no livro com as que experimentei, e tento destacar os principais conflitos e tensões que emergem do cotidiano escolar. Das três professoras que acompanhei, duas declaradamente querem sair, pular os muros da escola e fugir das quatro paredes das salas de aula.

Professores: competição entre si

Encontramos uma classe calma, em que todos os alunos estavam sentados. Uma menina veio de encontro à professora para buscar sua bolsa e pastas. Tudo no lugar, a docente explica que a classe terá duas aulas para responder um simulado de português. Recomendou que lessem todos os textos e questões com calma, repetidas vezes, e que, se fosse necessário, ela daria mais uma aula para a resolução.

Tudo explicado, provas distribuídas, começa. Dessa vez, não vi ninguém colando ou tentando colar: todos estavam atentos à leitura.

Enquanto isso, ela própria conversava comigo: queixava-se da rotina docente, do mal pagamento, das “picuinhas e falsidade” entre os professores. Destacou, principalmente, que “professor é uma classe desunida, que não se junta para resolver os problemas da escola. Antes disso, parece que preferem competir e dissimular seus problemas em sala. Por exemplo, umas professoras aqui”,não citou nomes, “que nunca faltam, porque devem ter problemas com o marido e ser infelizes em casa, por isso sempre vem e nunca dão falta abonada”.

O sinal tocou, todas as provas foram entregues. Partimos.

A fala da professora remete a um ponto importante: a desunião da classe docente. A tensão diária, antes de ocorrer entre professor e aluno, acontece entre professor e professor, professor e instituição. O sociólogo francês François Dubet, em entrevista cedida à Revista da USP, conta que o apoio recebido pelo professor é mínimo, ainda mais quando se trata de uma professora iniciante. A premissa aqui é a competição: quem é o melhor? Quem é melhor visto pela direção da escola? Quem é bem falado e querido pelos alunos? Mesmo sem apoio dentro do ambiente de trabalho, a professora já carrega um fardo, o da obrigação de demonstrar excelência no que faz.

A escola também sofre a mesma imposição. Lemos em Entre os Muros um diretor satisfeito por ter conseguido que o colégio tivesse uma colocação melhor nas avaliações de qualidade de ensino.

A desunião docente não aparece de forma explícita, não sendo definitivamente o objetivo principal dos relatos (antes a tensão professor-aluno). Ficamos atentos, contudo, aos detalhes que vão desde a vontade do narrador em não encontrar os colegas na porta da escola, até a solidão compartilhada dentro da sala dos professores. É a dureza solitária da rotina como sólida formadora do profissional.

Ninguém é naturalmente disposto a ser aluno

Chegamos, eu e a professora, à classe considerada “a pior das quintas séries”. Os primeiros 20 minutos da aula são usados para fazer a chamada, chamar a atenção de alguns alunos e pedir que eles façam silêncio. Alguns alunos estão totalmente alheios aos gritos da docente e continuam bricando. Nessa sala, a tensão docente/discentes é constante. Um testa o outro, suas possibilidades e limites. O sociólogo Dubet diz:

“Os alunos não estão ‘naturalmente’ dispostos a fazer o papel de aluno. Dito de outra forma, a situação escolar é definida pelos alunos como uma situação, não de hostilidade, mas de resistência ao professor. Isto significa que eles não escutam e nem trabalham espontaneamente, eles se aborrecem ou fazem outra coisa”.

“Fica um sentimento engraçado de irmandade, à espera que o cansaço e o enfado daqueles docentes não venham antes, não acabem com o que ainda há de bom.”

Os alunos já estão acostumados com a minha presença e me chamam de prô. Um deles me conta: “Nossa prô, a senhora já tá aprendendo a sofrer né, com um bando de gente mal educada” ao que respondo: “Por quê? Você é mal educado?” “Eu não, prô. Mas se pudesse não estaria nessa sala”.

Um dos alunos batuca com a régua na mesa, a professora pede que pare, mas ele sempre volta ao mesmo. Outro aluno brinca de tirar a folha de leitura do outro, e ignora repetidamente os pedidos (aos gritos) para que parasse. Nesse contexto, a docente simplesmente fala “Calem a boca!” e começa a ler o texto. Como os alunos não param, ela sai da classe rapidamente e faz menção de chamar a inspetora, que todos temem. A classe fica quieta. Ela volta a ler.

Voltando à Paris, às relações do professor com dois alunos que a todo momento reforçam a situação de resistência dentro da sala de aula: Khoumba e Soulemayne. Eles vão do “não querer falar” à hostilidade (resultante, no livro, em expulsão) passando também pela simpatia e pela aprovação. Nesse vai e vem de sentimentos e idéias, cabe a reflexão do significado da escola para aqueles que a frequentam. Essa reflexão aguarda respostas. Não é Begaudau quem vai dá-las.

Escola = falta de sentido?

Em um dos dias mais difíceis do meu acompanhamento, a classe estava realmente inquieta e, em particular, dois alunos bagunçaram bastante. Eu, que não carrego o peso da “boa conduta dos alunos” nas costas, confesso que fiquei nervosa e tive até vontade de brigar com eles. A professora distribuiu livros carteira por carteira, e os alunos puderam escolhê-los com tranquilidade. Alguns liam juntos, outros sentavam-se na mesma cadeira e comentavam o texto. Todos pareciam gostar do momento, menos aqueles dois alunos.

Um deles, já famoso por sempre “criar caso” é, pelo que vi, um menino educado e que, porém, não vê sentido nas aulas e fica bastante irrequieto: não senta por muito tempo, finge não escutar as ordens e sempre reclama baixo ao atendê-las. O fato é que esse e outro colega estavam atrapalhando todos na classe com piadas e conversas, ou simplesmente tentavam chamar atenção sentando em cima das mesas e fazendo dancinhas. Nenhum dos dois mostrou interesse pelos livros. Um deles até tentou, mas não chegou a ler mais do que uma página.

A professora gritava e ameaçava tirá-los da classe, ao mesmo tempo que me dizia estar já com dores abdominais e dor de cabeça por causa da rotina estressante. Por fim, os alunos sentaram-se. Interessante notar que um deles, mesmo parado, sacudia as pernas em frenesi, numa inconsciente, talvez, demonstração de tédio e falta de vontade de estar ali. Os 45 minutos acabaram-se logo. A classe, que estava conversando bastante, levantou-se rapidamente ao tocar o sinal.

Lá, um professor francês, colega de Begaudau chega à escola com os cabelos em pé. Nervoso e agitado, anda rápido para dentro da sala dos professores. Ele promete a si e a todos que chega! Não ficaria mais ali. Levanta-se, transtornado, a prometer algo que, aqui, é tão comum. São muitos os professores que encontrei que querem (e muito) parar de dar aulas. Em Paris, os professores chegam à sala docente desolados, nervosos. Um com o cabelo em pé, outro, olheiras no queixo, outro, o nó na garganta. Outro, quieto, cansou de reclamar. Em São Paulo,o mesmo: professor não tem vez, disseram-me.

O tédio e a falta de vontade, nas duas realidades, tornam-se sinônimos da falta de sentido quando nem professor, nem aluno, trazem consigo experiências que traduzam a escola como lugar de benefícios, crescimento, e não de dor, privações, regresso.

Entre os muros, a mudança

Lê-se no livro um anseio de mudança, de fuga não sabendo bem para onde, de frustração na rotina. A alegria, contudo, também é narrada, fato ilustrativo do equilíbrio tênue que mantém, ainda, o colégio francês encaixado em eixos mais ou menos estáveis.

Pra quê aprender francês?, perguntam lá; pra que aprender português?, perguntam aqui. O cabo de guerra da escola está sempre esticado, e a luta está mais em mostrar quem tem a força ali, do que construir conhecimento (jargão tão utilizado no meio acadêmico). Nas redações pedidas pelo professor, o aluno negro filho de imigrantes escreve que não é visto como um igual naquele lugar onde sua condição lhe é jogada na cara, crua como um tapa. O professor diz “deixem que eles fiquem nesse bairro sujo para sempre”. A corda está sempre esticada.

— Frida, você não se incomoda de me fazer esperar?

Ela não respondeu, deu um beijo em sua colega dizendo-lhe até daqui a pouco, depois ensaiou um passo em direção às escadas que minha intervenção congelou.

— Ei! Não gosto que gozem da minha cara.

— O que é agora?

— Quando eu lhe digo pra subir, você chispa, sem que eu tenha que aguentar os beijinhos na colega.

— Ela me olhava com ar de desafio inundado de grande indiferença e desprezo. Eu não tinha dormido bem, havia dito “chispa”.

— Essas fedelhas metidas a besta não me dizem absolutamente nada.

— Sem reagir, pasma com o que ouvira, seguiu caminho com um imperceptível levantar de ombros.

(Entre os muros da escola, p.119)

Aqui, um aluno também negro, também filho de imigrantes nordestinos, reclama de sua vida, por apanhar, por não ser compreendido. Quem lhe escuta? Você? A escola? Docentes riem nas salas dos professores francesa e brasileira.

Begaudau olhou para tudo e para todos argutamente, mas sua narrativa mostrou mais de si mesmo. A angústia, a felicidade e desgraças desse francês não foram milagrosamente acertadas no fim como em um filme de Hollywood. Como eu, ele não tem respostas, não mostra e não pretende responder nada, não no livro. Não se sabe se, um dia, pensará em dar cabo às situações que narrou.

Depois da leitura, quem estudou na escola pública brasileira talvez confunda se o que pensou são histórias suas ou de Begaudau. São tantas as semelhanças, são tão poucas as diferenças. A França não é tão longe assim, afinal, não para a escola. Fica um sentimento engraçado de irmandade, de uma dúvida sempre suspensa no ar, à espera de uma resposta, à espera que o cansaço e o enfado daqueles docentes não venham antes, não acabem com o que ainda há de bom. O jogo de futebol, algo tão marcante na cultura brasileira, fecha a narrativa. De forma tão íntima…

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