Retrato de Machado de Assis Quando Jovem

I

Depois de quase quatro décadas, A juventude de Machado de Assis (1839-1870): ensaio de biografia intelectual (La jeunesse de Machado de Assis – essai de biographie intellectuelle), do professor Jean-Michel Massa (1930), finalmente, ganhou uma segunda edição revista, em publicação da Editora Unesp (Universidade Estadual Paulista), de São Paulo. Que tenha sido necessário esperar tanto tempo por isso é apenas um reflexo do descaso com que as tarefas que realmente contam para a cultura brasileira são ainda tratadas num jovem país que parece condenado a nunca ter o devido respeito por seu passado.

Um descaso – para dizer o mínimo – que talvez explique por que o professor Massa não se atirou à ingente missão de escrever o que seria a segunda parte deste livro – os anos de maturidade do maior escritor brasileiro (1871-1908) que, provavelmente, resultariam em vários volumes, tal a superabundância de materiais referentes à atividade de Machado de Assis (1839-1908).

Tivesse sido este um país mais maduro nas últimas décadas, certamente, por meio de suas instituições mais veneráveis, teria encontrando uma maneira de oferecer ao professor Massa as condições e a infra-estrutura necessária para que se atirasse à aventura de desbravar em arquivos públicos e particulares coleções, não raro incompletas e fragmentadas, que possam ainda guardar rastros de um trabalho intelectual que durou mais de meio século. Como nada disso se deu, corre-se ainda o risco de que muitos desses papéis esquecidos tenham sofrido a irreparável ação corrosiva do tempo, ficando irremediavelmente perdidos.

Publicada em 1971 pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, e desde então considerada um clássico dos estudos machadianos, esta obra é resultado de uma tese de doutorado que o professor Massa apresentou em 1969 à Faculdade de Letras da Universidade Rennes, de Haute Bretagne, e incluía uma segunda parte (tese complementar), que é o ensaio Machado de Assis tradutor, publicado em 2008 pela Editora Crisálida, de Belo Horizonte, acrescido de um apêndice em que o pesquisador transcreveu e anotou duas traduções inéditas de Machado de Assis: “Os burgueses de Paris” e “Tributos da mocidade”. Juntamente com uma terceira peça traduzida, “Forca por forca”, esses textos formam o corpo do livro Três peças francesas traduzidas por Machado de Assis, lançado também em meados de 2009 também pela Crisálida.

II

Massa estudou profundamente, em viagens seguidas ao Brasil, jornais e revistas que publicaram colaborações da época dos anos verdes do escritor brasileiro, além de exumar autores secundários – hoje, praticamente, esquecidos — para recompor a paisagem literária do Rio de Janeiro e de São Paulo, quando o autor não tinha ainda adquirido grande notoriedade nos meios cultos.

Na primeira parte da obra, o biógrafo procura reconstituir – não sem muitas dificuldades – as árvores genealógicas do escritor, o que lhe exigiu, inclusive, viagens aos Açores para levantar a procedência do lado materno de Machado de Assis. E concluir que toda a família materna do escritor – procedente da ilha de São Miguel – era de tez tão clara quanto a dos Assis escura. “Eram pessoas simples, pobres, talvez bastante pobres mesmo, como se era pobre então nessa terra de emigração. Eram, sem dúvida, iletrados, como a maioria das pessoas do conhecimento deles”, diz.

Já o lado paterno descendia de escravos nascidos no Morro do Livramento. O pai de Machado de Assis, Francisco José, sabia ler e escrever e interessava-se por adquirir mais conhecimentos, como prova o fato de ter assinado o Almanaque Laemmert, em 1846-47, diz Massa. A respeito da mãe do escritor, Maria Leopoldina, o professor contesta Gondim da Fonseca (1899-1977), que teria exagerado bastante a sua cultura e influência sobre o filho, lembrando que quase todos os açorianos que emigraram para o Brasil eram analfabetos. Se serve para alguma coisa, este articulista pode acrescentar que, pelo lado materno, é descendente de açorianos da ilha de São Miguel que emigraram para o porto de Santos já no começo da segunda metade do século XIX – e todos eram analfabetos. Seus descendentes diretos seguiriam analfabetos ou semialfabetizados.

Ao reconstituir a infância de Machado de Assis, Massa contesta ainda Lúcia Miguel Pereira (1901-1959) e outros biógrafos que repetiram a sua afirmação segundo a qual o escritor teria sido gago e epiléptico. “Nada disso aparece por meio de nossos cotejos e pesquisas”, garante. Segundo o biógrafo, Machado de Assis, que ficou órfão aos 10 anos, viveu até então numa chácara do Morro do Livramento em meio a agregados de uma família de proprietários, como era comum na sociedade patriarcal. “Não sofreu fome, e foi querido durante os primeiros anos por uma madrinha idosa”, diz Massa, para quem o escritor recebeu da sociedade patriarcal “mais benefícios do que motivos de amargura”.

III

Massa destaca a importância de Francisco Gonçalves Braga (1836-1860), nascido em Braga, Norte de Portugal, e chegado ao Rio de Janeiro em 1854. Foi quem dirigiu os primeiros passos da carreira literária de Machado de Assis, levando-o a publicar seus poemas na revista Marmota, de Francisco de Paula Brito (1809-1861), igualmente afrodescendente. Segundo Massa, além de Braga, outros poetas influenciaram Machado de Assis – geralmente, poetas medíocres que a história literária pouco preservou cujos textos, hoje, são difíceis de localizar porque certas revistas já não podem ser encontradas, em razão da precariedade dos acervos de nossas principais bibliotecas.

A entrada definitiva de Machado de Assis na literatura brasileira como prosador Massa localiza em 1858, com a publicação de obras que viriam a anunciar o contista, o jornalista e o crítico que ele viria a ser. Aos 18 anos e meio, publicou na Marmota o seu primeiro conto, “Três tesouros perdidos”. Meses depois, participou de uma polêmica literária pela imprensa e, antes de completar 19 anos, sempre na revista de Paula Brito, deu à luz um texto sobre questões essenciais da literatura brasileira.

Por essa época, Massa ressalta a influência que teve sobre Machado de Assis a sua fugaz amizade com Charles Ribeyrolles (1812-1860), jornalista e político francês exilado por Napoleão III, chegado ao Brasil em 1858, que registrou suas impressões do país no livro Brésil pittoresque, publicado à época em fascículos. Sem contar a leitura do publicista francês Eugène Pelletan (1813-1884) e de Victor Hugo (1802-1885).

Como procurou escrever o que definiu como uma “biografia intelectual, espiritual e histórica”, Massa utilizou-se de referências precisas e preciosas que levantou em suas vastas pesquisas, como amizades próximas, a atividade política e os amores do jovem Machado de Assis, como o possível envolvimento ou apenas a admiração por uma atriz de teatro, a italiana Anneta Casaloni e, principalmente, seu casamento com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais (1835-1904), irmã de seu amigo e poeta portuense Faustino Xavier de Novais (1820-1869).

De ressaltar é ainda que Massa estabelece com precisão a entrada de Machado de Assis para o Diário do Rio de Janeiro, no início de 1860, que marca o início de sua atuação profissional como jornalista. Até então, sua colaboração nos jornais e revistas fora gratuita. Nesse jornal, a atuação do Machado jornalista seria radical, jacobina, guiado mais pelo idealismo, imagem bem diferente da que ficou do escritor quando maduro.

Até que contrariou os interesses do diretor do jornal, Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895), e seu grupo político. Não se sabe exatamente o que se passou, mas a verdade é que, a partir do começo de 1862, o jornalista se mostra decepcionado com a política. E passa a optar por temas mais literários. É verdade que o Brasil pode ter perdido um grande político, mas, com certeza, a literatura brasileira saiu ganhando.

O ano de 1864 marca a estréia formal de Machado de Assis como escritor com a publicação pelo editor B.L.Garnier de Crisálidas, coletânea de poemas, já que suas obras precedentemente impressas por Paula Brito e pelo Diário do Rio de Janeiro devem ter sido editadas graciosamente, sem contrato de direitos autorais. À falta de documentação precisa, Massa procurou estabelecer os passos do escritor por suas crônicas no Diário: no início de 1867, ele prefere desvincular-se do jornal para optar por um cargo de funcionário do Estado, que, por mais modesto que fosse, provavelmente, seria mais seguro do que a de redator de jornal. No funcionalismo, porém, ainda encontraria tempo para continuar a colaborar com seus contos no Jornal das Famílias, o que fazia desde 1863. Nessa publicação, aliás, há ainda nove contos, assinados com pseudônimos diversos, que têm sido atribuídos a Machado de Assis, mas cujo estabelecimento de autoria, segundo o pesquisador, não é pacífico.

O livro de Massa vai até 1870, época em que Machado de Assis já estava casado com Carolina desde 12 de novembro de 1869 e morando na rua dos Andradas, 119, perto do Morro do Livramento. Se tivesse recebido por parte da intelectualidade e das instituições brasileiras – fosse o Brasil um país mais maduro -, com certeza, Massa teria reconstituído a etapa final – e mais importante da atividade literária de Machado de Assis.

Na conclusão, o biógrafo adverte que os brasileiros da segunda metade do século XX deveriam lutar com rapidez contra os cupins, preservando jornais e revistas que ainda restam nos arquivos públicos e privados, embora tenha sido explícito ao garantir que já perdera a esperança de encontrar vários textos de Machado de Assis, notadamente aqueles publicados em revistas de vida efêmera nas quais costuma se exprimir a vida literária. Como já estamos ao final da primeira década do século XXI, há motivos de sobra para se suspeitar de que a advertência do professor não serviu para muita coisa. Infelizmente.

IV

Massa, ao lado de Raymundo de Magalhães Júnior (1907-1981) e José Galante de Sousa (1913-1986), forma a tríade dos principais pesquisadores dos textos de Machado de Assis. Professor emérito de primeira classe de Línguas e Culturas Estrangeiras e Regionais da Universidade Rennes 2, organizou Dispersos de Machado de Assis (1965) e Bibliographie descriptive, analytique et critique de Machado de Assis – 1957-1958 (1965), além de ter escrito numerosos artigos e ensaios sobre a obra machadiana, com destaque para “La bibliothèque de Machado de Assis” em que identifica 718 dos livros pertencentes à biblioteca do escritor carioca.

É também autor de estudos sobre Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), José de Alencar (1829-1877) e outros autores do século XIX brasileiro, além de ter traduzido (edição bilíngüe) A reunião, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Em 1986, recebeu a Medalha Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.

Com sua mulher Françoise Massa, organizou o Dictionnaire Encyclopédique et Bilingue Portugais-Français des particularités de la langue portugaise, do qual já saíram três volumes (vol. I: Guiné-Bissau; vol.II: São Tomé e Príncipe; e vol. III: Cabo Verde), que constituem dicionários da língua portuguesa escrita na África, já que, para Massa, o português nesses países é de escritores, jornalistas, alunos e funcionários públicos. Para o estudioso, aliás, não se pode falar em português falado na África, até porque a imensa maioria dos habitantes das nações que fazem parte da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) não falam o português. São lusógrafos e não lusofalantes, como observa Massa, criador do conceito de lusografia.

Françoise e Jean-Michel Massa são também responsáveis pela direção científica da coleção Patrimônio Lusógrafo Africano (Patrimoine Lusographe Africain), da Universidade Rennes, que publicou relatos e testemunhos de viagens, volumes difíceis de se encontrar ou esgotados, bem como alguns textos inéditos, que foram localizados durante as pesquisas realizadas para a produção do Dictionnaire Encyclopédique et Bilingue Portugais-Français des particularités de la langue portugaise.

A coleção foi aberta com a publicação em 2004 de um manuscrito sobre Cabo Verde (texto inédito), “Relation journalière, relato de duas escalas em São Vicente e Santiago e do início da uma viagem ao Brasil em 1699”, acrescido de outros textos sobre Cabo Verde: o de Challes (1690), Froger (1695), Duguay-Trouin (1711) e Frézie (1717). É de lembrar que René Duguay-Trouin (1673-1736) foi o comandante da segunda invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1711.

A segunda obra da coleção é a tese de medicina do primeiro médico-caboverdiano, Júlio José Dias (1805-1873), Essai sur la lithotritie, apresentada à Sorbonne em 1830. O terceiro volume da série é o primeiro guia turístico e comercial de Cabo Verde e primeiro guia sobre a África (1851). É uma edição em três línguas feita a partir da versão original redigida em inglês por John Rendall (1795-1854), cônsul inglês, com informações sobre a vida cotidiana, as potencialidades dos lugares, a navegação, os preços, questões sanitárias do arquipélago, que eram destinadas especialmente aos negociantes. Os dois livros também saíram à luz em 2004.

Autor

  • Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (1999), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (1997); Bocage – o Perfil Perdido (2003), e Tomás Antônio Gonzaga (2012), entre outros.

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