Que será da Arte?

Mapeando as mudanças pelas quais passou a música, texto indica as que podem vir para as outras artes

A banda System of a Down sugeria neste cd de 2002: roube este álbum!

O cenário musical passa por mudanças. O mp3 modificou, como se sabe, todas as relações que por gerações se perduravam. O futuro, o modelo que vai se estabelecer, permanece tão nebuloso quanto há alguns anos. Capitu mapeia nesta reportagem algumas das discussões ainda sem término: pirataria como causa, “valor de mercado” x “valor artístico”, o fim dos ídolos e a desconstrução do mainstream, fim dos álbuns, segregação máxima de público e a incapacidade para se saber quem ouve o quê e quando. E a sensação de que o que acontece hoje com a música é só o prólogo do que ocorrerá com a arte em geral. A união de Scribd, Kindle e Google Books pode causar revolução semelhante na literatura.

Desde que o Metallica se revoltou contra o Napster porque o programa permitia que as suas músicas fossem baixadas de graça, percorremos um longo, longo caminho. “A maior gafe da história da música“, segundo a Rolling Stone brasileira, aconteceu há 9 anos atrás. Essa banda e outros artistas combateram a ‘ameaça’ dos downloads. Em 2008, a Sony retirou o dispositivo anti-cópia dos seus MP3. E houve o caso emblemático: a distribuição do álbum In Rainbows, do Radiohead, pelo preço que se quisesse pagar. Os fãs poderiam baixar todas as músicas gratuitamente. Além de outras iniciativas no sentido de não onerar o público de forma alguma: o Tramavirtual, por exemplo, permite o streaming e o download — e quem paga é o anunciante que põe sua publicidade na página do artista.

A música gratuita desmantelou o império das gravadoras. No Brasil, o sintoma desse fim de mundo foi o sucesso de Mallu Magalhães. Segundo diz Armando Antenore na Bravo!, ela representa a revolução, “alguém que, em meses, usando a internet como trampolim, conquistou uma legião de admiradores e alcançou a mídia tradicional sem o auxílio de nenhuma gravadora”. Os efeitos disso ainda estão por ser mensurados. Seria o nascer de toda um novo padrão de relacionamento entre fã e artista. Quem diz é o produtor musical Carlos Miranda, também na Bravo!: “como o público pega a música de graça, ele só vai te dar dinheiro se quiser. É o conceito de amigo, que o MySpace usa muito bem. O músico precisa ser amigo do fã”. E diz mais:

“O artista tem de tomar conta do próprio nariz. O barateamento das tecnologias possibilitou que muitas pessoas passassem a produzir música. O artista tem de saber botar sua música na internet e saber brigar pelo palco. A equação é internet mais rua. Rua, que eu digo, é o cara assistir a shows, conhecer os lugares nos quais gostaria de tocar, conhecer os outros músicos da sua cena. O artista tem de ser público também. Não é mais o artista lá e o fã aqui. Você tem de pensar que tem uma loja. Por que as pessoas vão comprar na sua e não na outra? O artista está num mercado disputando a atenção das pessoas, uma atenção que é completamente dispersa. E os meios tradicionais ainda são importantes.”

Se assim for, o novo contexto também tem suas amarras. O artista que pretender o sucesso deve agir socialmente, ser um ente social — vale lembrar que o conceito de sociabilização é muito presente na sociedade de uma forma geral. O alcance em informação, entretenimento e audiência das mídias sociais (blogs, twitter, redes sociais) é expressivo. Mesmo empresas privilegiam na escolha do empregado a capacidade de interação, em lugar do saber formal e das habilidades técnicas do cargo. A pergunta que cabe fazer é: que tipo de música, e, mais amplamente, de arte que essa afirmação da sociabilidade permite ou estimula a criar?

Valor artístico versus valor comercial?

Entretanto, a entrega gratuita de suas músicas não é aceita de forma unânime. Destaca-se a oposição de Robert Smith, vocalista do The Cure, e de Kim Gordon, do Sonic Youth. Para Smith, o Radiohead teve um plano idiota. Do seu ponto de vista, “a ideia de que o preço é determinado pelo consumidor não pode funcionar”. Em vários posts do blog oficial, tratou do assunto. À primeira vista, quem lê tem a tendência de entender a afirmação sob a divisão “valor de mercado” e “valor de arte”. Dois conceitos que me parecem ser ideologicamente determinados: o primeiro, um artimanha diabólica e capitalista; o segundo, a heróica luta de artistas por expressão. O mercado naturalmente especula e explora; a arte não. A exposição de Smith quer mostrar que essa dicotomia não é verdadeira. O que ele nega é a tendência de estabelecer como paradigma a arte obrigatoriamente gratuita.

“Qualquer artista famoso”, diz, “com uma grande e devotada base de fãs (com frequência alcançada com ajuda de um ou dois saudáveis e poderosos ‘patrões’) pode fazer isso, dar a sua arte”. Em outro texto, continua: “Um mundo em que um artista é obrigado a dar suas músicas de graça é totalmente injusto. Imagine que você é um músico muito prolífico, que escreve 25 canções por ano. Para conseguir o pagamento médio anual britânico, £25 mil, valorando as canções por um penny cada, você teria de chamar a atenção de duas milhões de pessoas”. Robert Smith atenta para a questão de como o músico se sustenta nesse novo sistema. Neste ponto, ele se encontra com Kim Gordon.

A baixista e também vocalista do Sonic Youth diz que a atitude do Radiohead foi um “bom golpe de marketing”, mas que os membros da banda não se importaram com “seus irmãos e irmãs músicos, que não vendem tantos discos quanto eles”. Considere o tema pelo ângulo de uma outra arte. O escritor brasileiro Paulo Coelho adotou há mais de um ano o codinome de Pirate Coelho — e em um blog aponta para onde seus livros possam ser baixados. Esse é o melhor modelo, como proclama ser desde o primeiro momento? Coelho vendeu mais de um milhão de livros ao redor do mundo. Tanto ele quanto o Radiohead possuem a base de fãs consistente e ampla. O blogueiro Alessandro Martins pergunta: “O que acha [do gesto de Coelho]? Golpe de marketing? Caridade? Visão de mercado?”.

A argumentação de Smith continua com ele negando que a mudança de modelos, desse das gravadoras e do atual que está formação, constitua de fato uma transformação. “Por que eu deveria acreditar que receber pequenas quantias por permitir que as minhas canções sejam usadas para publicidade é uma alternativa aceitável (‘nova’, ‘moderna’) para o recebimento direto de pagamento pela venda das canções, baseada no seu mérito artístico?”.

É em Adorno, teórico da Escola de Frankfurt, que vamos encontrar um contraponto para as ideias de Smith. De acordo com Marcos Nobre, o teórico sinalizava que “até o século 18, a proteção dos patronos sujeitava os artistas a uma forma direta de controle, aos interesses específicos de seus protetores. No mercado, ao contrário, os interesses “passam por tantas mediações que o artista escapa a exigências determinadas”. O novo modelo de download e publicidade permite que o artista seja livre? No século passado, “o anonimato do poder do poder de mercado representa o momento em que surgem as condições para a arte seguir regras próprias”. E no nosso tempo?

A Pirataria como Causa e o Público Indefinido

Além das discussões entre os produtores e distribuidores de música, a facilidade do alcance de música causou duas mudanças sociais e culturais significativas. Em junho, o Estado de S.Paulo noticiou “Pirataria cresce como causa”. Tratava principalmente do fato de que dois candidatos do Partido Pirata foram eleitos para o Parlamento Europeu, recebendo 7,4% dos votos. A matéria informa: “para Pedro Mizukami, especialista em direito autoral da FGV, o comportamento das pessoas mudou com o tráfego livre de informações e cultura da web. ‘E quando ameaçam tirar isso, as pessoas se politizam. Isso deve se expandir para outros temas como direito à informação, educação, telecomunicações”.

Mas essa pirataria que se defende é uma pirataria com um quê de Robin Hood. A pirataria sem lucro para quem a propagada, que se preocupa principalmente em espalhar a cultura. A quantidade de benefícios que isso trouxe é imensurável. Para citar alguns poucos exemplos, blogs como Loronix e Um que Tenha deixam a nosso alcance clássicos da MPB e mesmo dão destaque a novos músicos que estariam escondidos detrás dos recentes sucessos ou nas caixas de alguma loja de discos. O site Domínio Público permite que, gratuitamente, temos às nossas mãos centenas de livros que marcaram a história da humanidade. Outro exemplo, clássicos do cinema hollywoodiano e europeu estão ali perto, no You Tube, a um clique. Pode-se negar que isso é um avanço?

Outro fator social de destaque é a pulverização do público. O Estadão entrevistou o autor de Como os Beatles Destruíram o Rock n’Roll, o historiador Elijah Wald, e ele comenta sobre o cenário atual da música o seguinte: “Neste momento, suponho que sabemos menos sobre o estado da música popular do que em qualquer outro momento na história. A música escapuliu das grandes corporações. As vendas de discos não significam mais nada. Uma pessoa compra um CD e aí? Cem outras? Ou serão mil pessoas, online? Ninguém sabe quem está comprando o que. O rádio perdeu influência, é ouvido principalmente no carro, nos Estados Unidos. As pessoas ouvem as suas playlists, não a lista da estação de rádio. Antes, era impossível evitar um repertório popular.O mainstream acabou”.

Mainstream, segundo explica José Flávio Junior significa a “corrente hegemônica cultural”. Em uma matéria, em que analisa o percurso da carreira de Madonna, ele cita também o fim do mainstream e por conseguinte o fim dos ídolos: “com a falência das gravadoras e o surgimento da internet, o papel do músico como antena de uma época e emblema de uma geração pode estar com os dias contados. Elvis, Beatles, Stones, Bowie e Madonna eram líderes das paradas de sucessos, apareciam na televisão, monopolizavam os cadernos culturais dos jornais. Era, assim, impossível escapar da exposição a suas músicas e suas ideias, a não ser que desse para tirar férias em outro planeta. As gravadoras já não tem poder de fabricar sucessos, e a importância da televisão e do rádio diminuiu com a internet, onde o ouvinte tem acesso à produção musical de todos os tempos”.

Ainda: “Vivemos o fim da era da massificação. Madonna talvez seja o último fruto desse tempo. Para o bem e para o mal, a era Madonna pode estar chegando ao fim”.

O Próximo Passo

Parece que, dentre as artes, a literatura é a que está passando por modificações similares às que passou a música. Pense apenas em dois nomes: Scribd, uma espécie de YouTube para textos, livros, etc; e Kindle, o equipamento da Amazon para leitura de ebooks — uma placa sem luz própria (ou seja, como um livro) que pode armazenar centenas de volumes. Agora imagine que o Scribd adapte seus arquivos para o Kindle (ou qualquer outro sistema o faça) e que o leitor eletrônico se torne tão popular quanto o MP3 Player ou o iPod. Isso te lembra alguma coisa? Mas é claro que, agora, as grandes corporações não cometerão os erros dessa primeira era de contato. Podemos esperar um cenário tão frutífero quanto, mas diferente.

Nesse cenário, o Google Books também tem uma participação importante. Esse sistema de buscas do Google permite a visualização de livros inteiros ou de trechos destes, e também o download gratuito. Esses três casos dependem do tipo de livro. A iniciativa do Google de fato cria uma imensa biblioteca mundial. E, para alguns países, contraria os direitos autorais de muitos escritores. Foi noticiado que a União Europeia, em maio, criou uma comissão de estudo dos impactos que o Google Books traz. Segundo um estudo feito na Alemanha: “as ações do Google são irreconciliáveis com os princípios das leis europeias de direitos autorais, de acordo com as quais o consentimento do autor precisa ser obtido antes que seus trabalhos sejam reproduzidos ou oferecidos sem restrições na Internet”.

O Google, por sua vez, disse: “Temos uma oportunidade bem-vinda de explicar à Comissão Europeia como os autores, editores e o Google concordaram em prosseguir nos EUA”.

E, por fim, facilitando a autopublicação, está a impressão por demanda. Um texto de Yuri Vieira no Digestivo Cultural resume o conceito: “Em vez de mil livros impressos e apenas dez vendidos, temos um livro para cada despertar de uma vontade. A impressão de livros sob demanda finalmente chegou ao Brasil e, por enquanto, atende pelo nome de Clube de Autores. O importante é saber que o autor não precisa gastar nada, basta subir seu livro em PDF ao site, configurar uma capa e divulgar a página de venda do seu livro. Cada vez que alguém comprar o livro on-line, este será impresso e enviado ao comprador pelo Correio”. Um drible nas dificuldades em encontrar uma editora. A mesma fragmentação do mercado que, disse Adorno, permitiu à arte ser mais livre.

Seria essa uma reportagem muito otimista? Creio que não. Mas teremos de esperar até que ela se torne obsoleta (em cinco, dois, um ano — ou meses) para saber. Até lá.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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