Outras Cidades Invisíveis | Vigorosa

A sensação de que nenhuma direção faz muito sentido é irremediável

“A sombra dos pássaros passa como se nada [pelas esquinas]”| imagem: Chic Bee

Em 2023, o escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) completaria 100 anos. Como homenagem, Úrsula convidou autores a criar desde o seu Cidades Invisíveis, ampliando seu mapa filosófico e fantástico.

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Vigorosa é uma cidade em que a pessoa viajante sabe que chegou quando começa a se sentir perdida, a não saber se vai no caminho certo. Seus acessos são facilmente localizáveis, os trajetos até eles são muitos e todos muito bem sinalizados, mas basta atravessar um desses acessos para que se sinta uma perturbação em relação aos caminhos. As vias seguem sinalizadas, iluminadas, a numeração dos prédios é chamativa – em todos os bairros da cidade, inclusive, as pessoas moradoras dão atenção especial à numeração de suas residências, enfeitando os números com materiais e em estilos dos mais variados e personalizados –, mas o passo da pessoa, viajante ou moradora, necessariamente vacila quando ela chega numa esquina ou em qualquer outro ponto em que o caminho que ela vem seguindo se abre em caminhos. Por mais certa que esteja de que deve pegar a primeira à esquerda, por exemplo, a sensação de que nenhuma direção faz muito sentido é irremediável assim que ela chega no encontro entre as vias. O próprio corpo hesita, independentemente da firmeza da pessoa e do seu passo. Um aperto na garganta, um frio na barriga, um arrepio na nuca, taquicardia, de alguma forma o corpo se sinaliza e se suspende, lendo cada um dos caminhos possíveis como as alternativas equivalentemente insatisfatórias de um dilema. As pessoas moradoras não sabem explicar a razão disso, muitas delas nunca chegaram a sair da cidade e sempre associaram essa má impressão aos cruzamentos de modo geral, e não apenas aos de Vigorosa; as que chegaram a sair dizem que se deram conta da especificidade justamente ao experimentar uma sensação até então inédita de segurança constante, não intermitente, nos percursos traçados nas outras cidades – sobretudo naqueles percursos que as conduziram de volta para Vigorosa. Investiguei os ângulos que as vias formam nas esquinas, a qualidade do ar nesses pontos específicos, uma eventual inclinação dos prédios e o desenho das sombras que eles projetam nas calçadas, mas encontrei nada de incomum. O que assusta o corpo das pessoas parece não depender da linguagem; as pessoas bebês também se sobressaltam de diferentes maneiras nos cruzamentos, acordam incomodadas quando vêm dormindo no colo ou no carrinho. Cachorros, gatos e outros bichos, no entanto, não parecem se abalar quando passam pelas esquinas. Como os cachorros e os gatos, a sombra dos pássaros passa como se nada por elas. O céu, solar ou nublado, não interfere. Como seus acessos, as saídas de Vigorosa são facilmente localizáveis, apesar das perturbações inevitáveis no caminho.

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