“Onomatopoeia – Part 1”, individual de Charles Avery

A fantasia não mais serve como escape, mas como análise do que nos tornamos. A tentativa de interpretar os mitos que não conseguimos sonhar

A temática do náufrago, daquele personagem que um dia acorda numa ilha deserta e que, gradativamente, percebe que um mundo desconhecido (e até então inconcebível) é possível, com habitantes misteriosos, monstros ameaçadores, regras e valores tão distintos daqueles que orientam o nosso mundo ocidental, nos parece hoje uma espécie de lugar comum. Robinson Crusoé, Gulliver e outros personagens mitológicos, como a figura maior de Ulisses, em suas aventuras e desventuras, são hoje revisitados pelos reality-shows que condecoram homens e mulheres capazes de sobreviver ao ambiente hostil, em que a natureza é a principal ameaça.

Charles Avery, artista escocês de 37 anos, faz diferente e nos mostra em Onomatopoeia – Part 1, uma abordagem particular sobre o assunto. Em 2004, Avery, que vive e trabalha em Londres, decidiu consagrar-se a um único projeto: The Islanders. Buscando referências em algumas correntes filosóficas, Avery idealiza uma verdadeira sociedade inscrita em uma ilha.

Além disso, em sua primeira mostra individual na França, no Le Plateau, em Paris, Avery evidencia que a produção literária, hoje, pode ter seu sentido ampliado pela conexão com linguagens da arte contemporânea.

A visita à exposição assemelha-se à descoberta de uma ilha misteriosa. Um texto afixado na entrada conta os primeiros momentos do protagonista Only McFew quando este chega de barco ao porto de Onomatopoeia. “A ilha se encontra no centro de um arquipélago em espiral composto por um número infinito de outras ilhas. (…) Trata-se de uma ilha de dimensão mediana, situada no centro do mundo”, explica. De fato, “O caráter ‘aberto’ do trabalho de Avery permite conexões infinitas, de toda ordem”, através do olhar de Only McFew. A história da ilha se parece com a nossa: colonização pelos mais fortes, eliminação das minorias, assimilação, sociedade estratificada, submissão dos estrangeiros, pobreza, criação de valores pela mercantilização, especulação, vícios.

Nomes poéticos espalham-se por um imenso mapa que representa o mundo de Avery. Nele, encontramos o Oceano Analítico e o Mar da clareza. Esse mundo pode comportar elementos de profunda estranheza. Ao lado de personagens que vivem situações ordinárias do quotidiano – como passear pelo porto ou tomar uma cerveja numa mesa de bar –, animais bizarros e híbridos de humanos e aves passam despercebidos, ou melhor, integrados a uma realidade que se mostra alheia à nossa.

Desenhos em grande formato, impressionam pela qualidade técnica e inscrevem-se na linhagem clássica, lembrando o trabalho do renascentista Paolo Ucello. Entretanto, também evocam a linguagem contemporânea da ilustração e dos quadrinhos. Um dos mais impressionantes retrata o porto de Onomatopoeia. Num suporte de cartão de 2,40m x 5,10m, percebemos uma multidão abundante e variada, assim que cães famintos e macacos, uma barraca com o formato de uma grande panela onde um homem vende “mariscos e ovos cozidos”, além edifícios abandonados. Também percebemos um enorme navio, “Utility”, que aporta. Nele, turistas disputam o melhor lugar para avistar a cidade de Onomatopoeia. O desenho é extremamente rico em detalhes, o traço é brilhante, satírico.

O mundo concebido por Avery obedece a leis de ordem lógica e filosófica que interrogam nosso próprio sistema de pensamento. A objetividade é vista é vista como uma fraqueza de espírito, como não filosófica. Estranhamente, trata-se, aqui, de um mundo que é expressão de um mundo de ideias, como a realidade primeira e tangível de um conjunto de conceitos e princípios. Para ilustrar tal situação, Avery expõe uma dezena de bustos de bronze que possuem chapeus geométricos feitos de papelão, com formas e cores diversas. Cada busto corresponde a um Dook, personagem que, por sua vez, encarna um credo esperífico. Assim, temos representadas as duas categorias principais dos habitantes da ilha: os Empiristas e os Racionalistas. No interior dessas categorias, encontram-se diversos subgrupos e facções que formam correntes filosóficas, da lógica até o misticismo. As várias posições adotadas pelos habitantes da ilha são tema de um debate infinito que acontece permenentemente nos bares e nas ruas de Onomatopoeia. Como exemplo disso, o fenômeno da Dialética é uma das principais atrações turísticas da ilha.

Elementos pertencentes ao realismo fantástico ou à ficção científica, mas também o sentimento de solidão integram essa poética. “Minha fraqueza de caráter me revolta, pois devo confessar que fui tomado por uma solidão desagradável, mais rapidamente e mais profundamente que poderia imaginar”, confessa Only McFew. Livros de Jorge Luís Borges, Umberto Eco, Ernest Hemingway, Swift e Thomas More encontram-se logo na entrada da mostra, à disposição do público. O caráter ‘aberto’ do trabalho de Avery permite, de fato, conexões infinitas, de toda ordem. The Islanders e a sociedade de Onomatopoeia também evocam o pensamento de Deleuze, em um de seus últimos textos, sobre a ilha deserta.

Deleuze argumenta que a essência da ilha deserta é imaginária e não real. Ela é mitológica e não geográfica. Entretanto, alerta Deleuze, a literatura é uma tentativa de interpretar os mitos que não compreendemos mais, porque não sabemos mais sonhar com eles nem produzi-los. E o que acontece com as narrativas sobre ilhas, desertas ou não, é a recomposição de nossa sociedade, que é aplicada à ilha. Avery mostra que sua ilha é palco de miséria e de decadência, num mundo de exploradores e explorados. Sua ilha, que é acima de tudo uma representação de determinado sistema filosófico, torna evidente que a fantasia, hoje, não nos serve como escape, mas como análise daquilo que nos tornamos.

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