Irascível, perfeccionista e, ao mesmo tempo, divertido — daqueles que gostam de contar os casos e acasos da própria história — o ator e diretor de cinema Anselmo Duarte faleceu neste novembro após terceiro acidente vascular cerebral, aos 89 anos. Foi o único diretor brasileiro a receber a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, com o O Pagador de Promessas (1962), derrotando nomes como Michelangelo Antonioni (L’eclisse), Luis Buñuel (El Angel Exterminador), Robert Bresson (Procès de Jeanne d’Arc) e Otto Preminger (Advise and Consent). Sua produção apenas há poucos anos foi devidamente reconhecida. O por quê está na oposição que o Cinema Novo empreendeu contra ele, em quem não via a ideologia do movimento.
A carreira de Duarte se iniciou no anos 1940, como galã n° 1 das companhias cinematográficas Atlântida e Vera Cruz. Ninguém com mais de 50 anos ou que seja admirador do cinema brasileiro deixa de reconhecê-lo, seja como ator, com os cabelos bem penteados e um belo sorriso (à la Cary Grant eu diria — ator inglês famoso em suas representações ao lado de musas como Audrey Hepburn e Ingrid Bergman) contracenando com Tônia Carrero em Tico-Tico no Fubá (1952), de Adolfo Celi, ou posteriormente, com o papel do policial em O Caso dos Irmãos Naves (1967), de Luis Sérgio Person; seja como diretor de Vereda da Salvação (1964) e, é claro, O Pagador de Promessas (1962), baseado na peça homônima de Dias Gomes.
O Pagador foi o mais ilustre filme que dirigiu. Além do prêmio citado, a película recebeu crítica assinada pelo renomado Jean Douchet, no Cahiers du Cinéma, em que dizia que poderíamos esperar, a partir de O Pagador, o nascimento de uma nova indústria cinematográfica no Brasil. O crítico de cinema B.J. Duarte também elogiou o longa:
o que venceu em Cannes não foi uma fita apenas, mas uma obra universal e, se foi brasileira por sua origem geográfica, pelo tema e por sua forma, o seu espírito humano, a linguagem mais compreendida entre todos os caminhos do mundo, é que contribuiu decisivamente para a conquista, incontestavelmente legítima, dessa Palma de Ouro consagradora. (Revista Anhembi, n° 140, 1962 in: Estudos de Cinema, Editora Annablume, 1998)
Porém, não faltaram críticas favoráveis e desfavoráveis e desentendimentos com nomes do Cinema Novo. Mesmo considerando a qualidade da direção de Duarte — simples, direta e boa — de um profissional que conhece o seu ofício, Glauber Rocha nos diz que o cinema aprendido com diretores de chanchadas como Watson Macedo e José Carlos Burle, que apresentavam um correto exercício gramatical, transparece em sua forma forma verdadeira em Absolutamente Certo! (1957), sendo O Pagador filme de pouca liberdade criadora. Em seu Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, diz:
É bom que a crítica mantenha constante expectativa em torno de Anselmo Duarte: somente um terceiro filme poderá revelar seu verdadeiro caráter. Mesmo com o prêmio, ainda prefiro, por razões da verdade, o diretor simples, espontâneo e pessoal de Absolutamente Certo!, seu verdadeiro filme de autor. É do filão de Absolutamente Certo! que se deve esperar o melhor do cineasta premiado em Cannes: um prêmio justo ao esforço, promocional para o Brasil. (Cosac Naify, 2003, p.165)
Vê-se que a maior glória de Duarte tornou-se um karma, um peso e uma responsabilidade de manter, em seus projetos posteriores, a mesma qualidade do filme vencedor, além de lhe causar o não reconhecimento dos diretores cinema-novistas, que se recusavam a ter em Duarte um precursor. O Pagador de Promessas foi vencedor na França no mesmo ano do início do movimento. Nem mesmo com Vereda da Salvação, de 1964, em que Duarte procurou imprimir quase todos os conceitos adotados pela Estética da Fome, o diretor livrou-se do limbo. Alex Viany, por exemplo, considerou que Duarte teria se tornado acadêmico.
A crítica de cinema em geral não foi menos incisiva com o diretor: suas últimas direções (como Ninguém Segura Essas Mulheres, de 1976 e Já Não se Faz Amor Como Antigamente, do mesmo ano) foram fortemente criticadas, julgadas como medíocres e de caráter descartável. Duarte contestava esses argumentos, citando o profissionalismo com que dirigia e o acabamento técnico — superior aos filmes da Boca do Lixo, por exemplo — que lhes dava. De nada adiantou.
Em entrevista cedida ao crítico Luiz Carlos Merten no livro Anselmo Duarte — O Homem da Palma de Ouro (Imprensa Oficial, 2004), o diretor afirma que tais indisposições foram causadas por inveja provocada pelo prêmio. Verdade ou não, Duarte não esqueceu, até o fim de sua vida, os inimigos de ontem, ganhando fama de amargurado. As homenagens recebidas nos últimos anos (no 31° Festival de Gramado, na Mostra de Cinema de São Paulo, além de outras homenagens e troféus por sua trajetória) fizeram as, por ele chamadas, traições esvaecerem um pouco de sua mente, fazendo o diretor rir do próprio mau humor. Passadas as desavenças ocorridas, restará a obra que, mesmo com os altos e baixos inerentes à carreira de quase todos os profissionais, ficou marcada e será reconhecida.