Os “contos argelinos” focam o poder no Brasil, seu patrimonialismo, seu uso das forças armadas em defesa de interesses de classe
I
O candidato a brazilianist, que queira seguir os passos do mais famoso deles, o inglês Kenneth Maxwell, e conhecer o Brasil de hoje, deveria começar por ler a obra completa de Lima Barreto (1881-1922), mas não fará má estreia se optar por Lima Barreto e a política: os “contos argelinos” e outros textos recuperados (Rio de Janeiro, Editora PUC-Edições Loyola, 2010), com organização, introdução e notas do professor Mauro Rosso. A introdução e as notas de rodapé que acompanham os textos são leitura fundamental para quem quiser se situar e contextualizar a época vivida por esse romancista e contista único na história da literatura brasileira.
Esta edição muito bem cognominada de “histórica” por seu organizador abriga um conjunto de 13 textos intitulados pelo próprio autor de “contos argelinos” e 33 contos escritos em sua maioria à mesma época e igualmente com clara identidade de enfoque de teor político. O organizador reuniu ainda dois textos praticamente inéditos e duas peças teatrais, que teriam sido as únicas tentativas de Lima Barreto no domínio de arte cênica, quando ainda vivia o verdor de seus 24 anos.
É de notar que, se o romancista Lima Barreto tem merecido ao longo da história edições bem cuidadas, seus contos foram publicados repletos de erros e omissões, que agora começam a ser superados pela pesquisa encetada por Rosso. Tantos equívocos talvez se tenham dado pelo fato de Lima Barreto ter publicado em vida apenas um livro de contos. Os demais textos – que fazem parte de um conjunto de 105 contos – ficaram “esquecidos” em revistas de circulação efêmera que hoje, com sorte, só podem ser encontradas nos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. É de lembrar que alguns contos foram publicados como “apêndices” de romances, como Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1949).
II
Esclarecedor é o estudo “Simulacros e alegorias barretianas” em que Rosso analisa os “contos argelinos” publicados na revista Careta, do Rio de Janeiro, entre 1915 e 1922, além de outro, “Hussein Bem-Áli Al Bálec e Miquéias Habacuc”, publicado no Correio da Noite, em julho de 1914 e incorporado à Parte I das três edições da coletânea de contos Histórias e sonhos (1920).
Estes textos refletem o desencanto de boa parte da sociedade brasileira com a República nascida da caserna em 1889, a partir de um tosco golpe militar liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892). Mesmo assim, o 15 de novembro de 1889 representou uma alteração substancial na política e nas relações entre o poder militar e as forças dominantes. Acreditava-se que o oficial militar seria o “cidadão fardado” que, por ter um conhecimento adquirido nos bancos da academia, estaria mais bem preparado para conduzir os destinos da Nação.
Essa é uma idéia que permeou também o golpe militar de 1964 e que ainda, hoje, ronda a cabeça de alguns ideólogos de direita. Mas, a rigor, o balanço da participação militar de forma ostensiva na República tem sido mais desfavorável do que favorável para o País. Sem contar os desmandos representados pela violação dos direitos humanos não só com perseguições aos contestadores de um poder ilegítimo, pois alcançado pela força bruta, como aqueles em que as forças armadas foram utilizadas para sufocar rebeliões populares, como a Guerra dos Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia, a Guerra do Contestado (1912-1916), em Santa Catarina, e as Revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1904), no Rio de Janeiro, e a de Eldorado do Carajás (1996), no Pará, entre outras.
Segundo levantamento feito pelo jornal O Estado de S.Paulo (19/12/2010), o Estado brasileiro matou 556 civis em 32 conflitos esquecidos do século 20. Ainda recentemente, o Exército foi levado a atuar contra brasileiros – narcotraficantes e pacatos moradores, indistintamente – do conjunto de favelas chamado de Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, quando a norma civilizadamente aceitável é que a força armada só existe para a defesa do País, ou seja, para agir contra ameaças externas. E não contra brasileiros, ainda que narcotraficantes. Para agir contra esses, há a Polícia Federal, que deveria ser mais bem equipada, e as polícias estaduais. Aliás, o Exército só deveria agir nas fronteiras para impedir a entrada de drogas e armas clandestinas. O pior de tudo é que isso se deu num governo liderado por um ex-metalúrgico, que pretensamente representaria a classe operária.
III
Os “contos argelinos”, à base da sátira, procuram exatamente mostrar as maquinações oligárquicas, ou seja, o sistema de poder no Brasil e suas manifestações de patrimonialismo, que valem até hoje, para utilizar a força armada em defesa de seus interesses de classe, tal como nas repúblicas islâmicas. Assim, Lima Barreto mostra São Paulo (“Al-Bandeirah”), Pernambuco (“Al-Súgar”, ou seja, açúcar) e a Bahia (“Hbaya”) como domínios de sultões, xeiques e personagens “orientalizados” deliberadamente inspirados e relacionados a figuras políticas, estabelecendo claras referências com acontecimentos da época, como observa o professor Mauro Rosso.
Dessa maneira, Lima Barreto recria o Brasil como “o País de Al-Patak”, governado pelo “usurpador Abu-Al-Dhudut”, ou seja, Hermes da Fonseca (1855-1923), e por Basileus Epitaphio, isto é, Epitácio Pessoa (1865-1942). Sem esquecer figuras menos representativas, como o ministro da Guerra Bem-Zuff Kalogheras, ou seja, Pandiá Calógeras (1870-1934), ou Cide Cinsin Bem-Nhato, ou seja, Cincinato Braga (1864-1953), líder da bancada paulista na Câmara dos Deputados que, em 1913, deu início à campanha oficial à sucessão de Hermes da Fonseca, restabelecendo a velha política do “café com leite”. Em resumo: em todos os “contos argelinos”, Lima Barreto usa e abusa do recurso à clef, que, hoje, em razão da distância, nem sempre seria fácil de desvendar, não fosse o notável trabalho de pesquisa do organizador.
Para Rosso, Lima Barreto inspirou-se claramente no movimento dos “jovens turcos”, nome dado a uma coalizão de diferentes grupos que tinham em comum o desejo de reformar o governo e a administração do Império Otomano. O movimento teve início na Turquia em 1889, primeiro entre estudantes militares, espalhando-se gradualmente para outros setores da população que se opunham à monarquia do sultão Abdülhamid II.
Com a fundação oficial em 1906 do Comitê para a União e o Progresso, partido político que atraiu a maioria dos “jovens turcos”, o movimento conseguiu construir uma tradição de contestação, que marcou a vida artística, intelectual e política do final do período otomano. Os Três Paxás, pertencentes ao movimento “jovens turcos”, governaram o império desde o golpe de 1913 até o fim da Primeira Guerra Mundial. Essas vicissitudes foram amplamente noticiadas pelos jornais do Rio de Janeiro da época e, com certeza, acompanhadas de perto por Lima Barreto.
Seja como for, esses “contos argelinos”, metafóricos, críticos, insólitos, indutivos, dedutivos e explosivos de alegoria e simulacros, como observa Rosso, guardam muitos subterfúgios e dissimulação, refletindo a visão de quem vivia à margem da classe dominante e, portanto, via as coisas de fora, à distância, sempre com um juízo crítico, percorrendo como um pícaro os salões da alta sociedade na condição de dublê de funcionário público e jornalista, até porque àquela época poucos podiam viver profissionalmente do jornalismo. Ainda hoje o jornalista é, muitas vezes, um simulacro de Lazarillo de Tormes, um “vírus” que percorre um organismo sem dele pertencer, pois, por sua atividade profissional, pode conversar pessoalmente com figurões da República ou com o alto empresariado, sem que faça parte do poder.
IV
O Brasil de Lima Barreto era governado por sultanatos, tal como hoje ainda ocorre no chamado “Brasil profundo”, em que clãs dominam a máquina pública e os meios de comunicação, sempre em defesa de interesses subalternos que se definem pelo conceito weberiano de patrimonialismo. À época, São Paulo e Minas Gerais, que dominavam a cena política, não fugiam à regra. Lima Barreto, inclusive, não se cansava de denunciar os empréstimos que os produtores paulistas levantavam no Banco do Brasil sempre a pretexto de “salvar” a lavoura do café, a grande riqueza do País.
Que “riqueza” seria essa que levava seus detentores a arrancar dinheiro e mais dinheiro das burras da Nação sempre a juros maternais, a prazos a perder de vista, em empréstimos que nem sempre seriam pagos? – era o que mais indignava o mulato Lima Barreto. E não era só o escritor quem se indignava: as oligarquias dos demais Estados também, pois não viam a hora de igualmente meter a mão na bolsa da Viúva (ou seja, da República). É aqui que está a gênese do golpe de 1930, que alguns historiadores incautos ainda chamam de Revolução de 30, que de revolução nada teve, pois não passou de uma rearrumação de oligarquias no poder.
V
Se há algum reparo a fazer a Lima Barreto e a política: os “contos argelinos”e outros textos recuperados, é para observar que, ao contrário do que o organizador diz em nota de rodapé à página 138, o escritor português Eça de Queirós (1845-1900) nunca esteve no Brasil, ainda que tenha escrito em uma de suas famosas “Farpas” na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, a respeito dos “eternos toscos achinelados da rua do Ouvidor”.
Como garante de Lisboa por correio eletrônico o mais categorizado dos biógrafos de Eça de Queirós, Alfredo Campos Matos, autor do recente Eça de Queiroz: fotobiografia: vida e obra (São Paulo, Leya, 2010), o romancista luso deve ter feito esta observação com base no que lhe teriam dito seus amigos brasileiros, como Eduardo Prado (1860-1901), Graça Aranha (1868-1931), Olavo Bilac (1865-1918), José Veríssimo (1857-1916), Joaquim Nabuco (1849-1910), Domício da Gama (1862-1925) e o barão do Rio Branco (184501912).
“Eça nunca esteve no Brasil, muito embora sejam inúmeras as suas ligações com esse país, desde a tenra infância até as suas relações tão estreitas de amizade sentimental e intelectual com Eduardo Prado”, lembra, ressaltando que, por pouco, o escritor português esteve para começar a carreira consular pela Bahia, por direito da mais alta classificação, mas foi preterido. “Depois, Prado quis que Eça fosse ministro de Portugal no Rio de Janeiro, mas isso esboroou-se, pois já não estava em idade para uma tal deslocação”, acrescenta Campos Matos.
VI
Mauro Rosso é professor e pesquisador de Literatura Brasileira, ensaísta, autor de Uma proposta para a prática pedagógica (2002); São Paulo, a cidade literária (2004); e Cinco minutos e A Viuvinha, de José de Alencar, edição comentada (2005). Colaborou na coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista crônicas, organizada por Gustavo Franco (Brasília, Senado Federal, 2007).
Publicou, pela parceria Editora PUC-Edições Loyola, em 2008, Contos da Machado de Assis: relicários e raisonnés e, em 2009, Contos de Arthur de Azevedo: os “efêmeros” e inéditos e Escritos de Euclides da Cunha: política, ecopolítica, etnopolítica. Atualmente, está empenhado na publicação pelo Senado Federal do primeiro dos três volumes da antologia Machado de Assis e a política: crônicas, que reunirá no total 384 textos.