“A fuga costuma ser vista como uma alienação ou um processo de negação, mas ela também pode ser uma recusa daquilo que está posto como caminho único”, diz a autora
Ao pensar em Julia Dantas, penso nos deslocamentos da minha geração, os millennials (nós que nascemos entre 1980 e 1994). Porque, convenhamos, a gente não está em linha reta há pelo menos uns 15 anos e, nos romances da Julia, essa é justamente a tônica. Em suas narrativas, pessoas estão fora de seu lugar comum, vidas fora do rumo.
Quando li Ruína y Leveza em 2018, fiquei abismado: percebi que Sara, a menina do romance, enfrentava os mesmos problemas que eu. Uma pessoa meio perdida por aí, meio sem saber como lidar com as expectativas que os seus pais e o mundo, em geral, tinham em relação a ela. E isso era algo que não se passa(va?) só com ela. Escrevi “Uma Anti-Resenha para Julia Dantas“, aqui na Úrsula, falando sobre isso: eu e muitos de meus amigos também estávamos assim, fora dos eixos.
De lá para cá, fiquei esperando ansiosamente os próximos passos da autora gaúcha, pois concluí que o livro dela era o retrato perfeito de minha época, e minha escrita não poderia mais acontecer sem considerar a ótica Julia Dantas.
Ela continuou: publicou um e-book curto (Sabrina é um Nome Bonito) e escreve colunas para o jornal GZH. Textos bons, tratando de problemas antigos com uma visão e perspectiva de nossa época. Mas, perto de Ruína y Leveza, são textos tímidos.
A mudança, no entanto, veio agora, em 2022, com o novo livro, Ela se Chama Rodolfo. Um romance cativante e profundo, de linguagem emocional entre a melancolia e a raiva, com leves toques de condescendência por parte do narrador, para e com as personagens profundamente reais, reais sendo fictícias.
Em crítica literária, não se pode usar de subjetividade. Mas não me importo: é um baita livro. Uma obra que transpassa o espírito de angústia e tédio dos meus contemporâneos ao narrar os deslocamentos e fugas (sempre elas!) de personagens como Murilo Paredes (um ótimo nome para quem quer fugir, sem mais saber, contudo, para onde correr), a sua irmã ou a misteriosa Francisca.
Aqui, as fugas da minha época continuam. Em termos. Se, de 2017 para cá, alguns pontos se acertaram em relação às apostas sociais jogadas em nossos ombros pelos materialistas do pós-Segunda Guerra Mundial, outras ainda seguem muito vivas e longe de serem resolvidas.
Isso é o que transborda das páginas de Julia, uma autora completamente alinhada com o agora. Se, antes, estávamos fugindo, agora, enfim, paramos? Agora, estamos chegando a algum lugar? Agora, estamos, como uma tartaruga (sem spoilers!), sendo nossa própria família?
Sem saber muito o que dizer, fui atrás de Julia por meio da única instituição realmente ilibada hoje: o Instagram. Então, entrevistei a autora e o resultado é o que vocês leem a seguir.
Julia, como você começou a escrever? E qual foi a importância de ser finalista do Prêmio São Paulo em 2016?
Beira o impossível dizer quando comecei a escrever, já que se trata de algo que faço desde criança, um meio de expressão importante para mim. Mas passei a pensar em escrever a sério, digamos assim, quando tinha vinte anos e fiz a Oficina de Criação Literária de Assis Brasil, em Porto Alegre (RS). Naquele momento, entendi que a escrita poderia ser um ofício, ser publicada, ter pretensões estéticas. Naquela época, escrevia mais contos, sendo que alguns estão por aí em antologias. O romance, porém, só foi surgir anos mais tarde. Então, embora a escrita seja parte da minha vida desde sempre, a publicação tem sido um processo lento para mim. E a indicação ao Prêmio São Paulo foi um holofote gigante sobre o meu trabalho. De repente, passei a ser convidada para dar palestras, ministrar aulas, participar de clube de leitura. Por isso, recomendo a escritores iniciantes se inscreverem em prêmios e concursos, pois dão um carimbo de aprovação que abre portas mais tarde.
Nos seus livros físicos, as personagens (pessoas da nossa geração – os millenials, com idades entre 30 e 40 e poucos anos) estão sempre em trânsito. Já no seu e-book, a personagem está parada, isolada do mundo concreto. Por que e do que estamos sempre fugindo?
Não estava preparada para essa pergunta. Uma resposta curta seria dizer que, provavelmente, de nós mesmos. Mas essa resposta meio simplista não basta. Acho que, quando dizemos que estamos fugindo de nós mesmos, falamos, na verdade, que queremos fugir dos limites que enxergamos colocados em nossa vida, tanto pelas circunstâncias externas (o capitalismo, o individualismo, a progressiva catástrofe ambiental) quanto pelas circunstâncias internas (os traumas familiares, o medo do envelhecimento e da morte, a sensação de falta de sentido). Penso na Sara, de Ruína y Leveza: ela está fugindo de si mesma no sentido que foge da profissão que tinha, do namorado que tinha, da cidade que conhecia. No entanto, ela caminha em direção a uma nova versão de si que, de certa forma, é uma versão ampliada, no sentido que lhe permite enxergar a vida prévia com distanciamento e olhar para frente com menos amarras. Então se, por um lado, fugir de si é uma missão fadada ao fracasso, porque a gente sempre se leva junto aonde vai, acho que a fuga é, às vezes, subvalorizada. A fuga costuma ser vista como uma alienação ou um processo de negação, mas ela também pode ser uma recusa daquilo que está posto como caminho único: fujo porque me recuso a fazer parte.
Em Ruína y Leveza, Sara parece sofrer um choque de realidade social. Em Sabrina é um Nome Bonito, a personagem principal parece querer esquecer a realidade social, enquanto que, em Ela se Chama Rodolfo, Murilo visivelmente sabe que a realidade social existe, mas a aceita com estoicismo. Afinal, somos alienados ou desiludidos?
Hoje, em 2022, tendo a idade que temos (eu, particularmente, aos 36), acho que somos as duas coisas. Mas você aponta algo que nunca havia reparado nesse percurso cronológico das personagens: Sara é uma jovem profissional naqueles anos de bonança e pleno emprego no Brasil, um tempo fácil para uma pessoa de classe média ser alienada, não ler jornais, não se comprometer, e ir apenas vivendo. Quando ela tem um choque com a realidade, é também um choque consigo mesma: para onde estava olhando que não enxergava nada disso? Já o menino de Sabrina é um Nome Bonito vive em uma época em que era mais difícil fugir da realidade social, ainda que a realidade virtual estivesse (e ainda está) constantemente nos oferecendo objetos brilhantes de distração. E Murilo, na minha cabeça pelo menos, existe nos dias de hoje (ou melhor: nos dias anteriores à pandemia), quando é impossível se alienar e, de todas as personagens, ele é o mais atravessado pela força das circunstâncias sociais. Ou seja, acho que as personagens costumam estar inseridos na realidade social do momento em que foram criados; logo, são alienados e desiludidos conforme suas possibilidades.
Ela se chama Rodolfo apresenta um tom bem sarcástico em relação aos valores de jovens adultos de classe média. Como o recorte social influencia o seu processo de criação de personagens?
Acho que o primeiro a ressaltar é que sou uma jovem adulta de classe média: muitos dos valores que ironizo no livro são valores que pautam a minha vida real, o que não quer dizer que eu esteja confortável com eles. Acho que a literatura pode ser um modo de lidar com essas contradições: pode-se, simultaneamente, odiar o neoliberalismo e contratar um plano de previdência privada; ao mesmo tempo, desprezar o artista herdeiro da fortuna de uma construtora e invejar profundamente a liberdade concedida por essa posição de privilégio. Em termos de criação de personagem, faz diferença uma personagem ter dinheiro ou não, mas também acho que a classe média não costuma enxergar o quão perto está da pobreza. Esse nosso governo atual deixou isso mais à mostra. Contudo, a classe média sempre é uma classe de trabalhadores, e isso nos deixa vulneráveis. Se eu não trabalho, não pago as contas. Mesmo eu, que trabalho em um campo especializado, que sou doutora por uma grande universidade, que já tenho experiência e uma rede de contatos, sou uma trabalhadora, assim como Murilo é um trabalhador. Dependemos da nossa força de trabalho para viver. Quem dera a maioria dos intelectuais brasileiros se dessem conta disso: lemos livros difíceis e sabemos usar palavras rebuscadas, mas somos uma massa de trabalhadores (exceto aqueles que são herdeiros). Evidente que, entre um professor universitário e um porteiro, há uma diferença social e financeira. Mas, se pensarmos na diferença entre um escritor (ou um ator ou um músico ou um dançarino) e um eletricista, a diferença é apenas simbólica e não mais material. Eu tenho absoluta certeza de que existem motoristas que ganham mais dinheiro do que um diretor de cinema independente, mas a aura de prestígio circula apenas o artista. Teríamos mais chance de criar aquela velha utópica união da esquerda se os artistas se enxergassem como trabalhadores e não como elite pensante. Portanto, não estou assim tão longe do lugar do Murilo. Passei anos trabalhando em um escritório com ar condicionado, exercendo o meu trabalho intelectual. No final de todo dia, o porteiro e eu pegávamos o mesmo ônibus. Não quero diminuir a diferença material entre o ar condicionado e a portaria, mas ambos estávamos a uma demissão de distância da falência.
Nas suas narrativas, as relações matrimoniais são sempre fragmentadas ou frustrantes, enquanto as relações amistosas são sólidas e profundas. Como você entende a construção do afeto?
Acho que é algo geracional e, sobretudo, algo de mulheres, construir amizades mais sólidas do que casamentos sólidos. Historicamente, as mulheres se submeteram a casamentos horríveis apenas em razão do fato de que era socialmente melhor que elas fossem casadas. Hoje, podemos dizer não (podemos fugir de um casamento ruim e aí está um exemplo de boa fuga) e buscar laços mais saudáveis. Claro que a fragilidade dos casamentos também tem a ver com as expectativas irreais que, agora, tem-se do amor romântico: espera-se que uma pessoa preencha todas as nossas lacunas, uma expectativa que não se reproduz nas amizades (e, por esse motivo, é mais fácil manter um amigo do que um marido). Um amigo pode ter outros amigos, um amigo pode ter opiniões que detestamos, um amigo pode ser um chato insuportável quando bebe, mas continua sendo nosso amigo. O mesmo nem sempre vale para um marido.
Tendo em vista todas as questões de protagonismo de minorias e objetificação, como você construiu as personagens andinas e transgêneras dos seus romances?
Com muita humildade, sobretudo. Supondo sempre que estou correndo o risco de cometer um erro e, por isso, indo atrás de estudos, de leituras e do que alguns escritores acham horrível que são os leitores sensíveis. Adoro leitores sensíveis, e, para diferentes obras, fui atrás de leitores indígenas dos Andes, de pessoas trans, de pessoas negras, de pessoas homossexuais e assim por diante (agora me dou conta de quanta gente já incomodei na vida, meu Deus). Mas eu me preocupo com a dimensão ética do livro, e não estou dizendo que todos os escritores devem fazer o mesmo. Para mim, porém, essa dimensão é indispensável.
Você é autora de um e-book e colunista de um jornal on-line. Dado isso, te pergunto: as tecnologias estão mudando nossa forma de consumir obras escritas? Os livros físicos e jornais impressos estão perdendo apelo?
Não sei se perderam apelo ou se ficaram caros demais. E nem falo apenas do preço final do livro, mas dos custos de produção. Já estive dentro de uma editora e sei que fabricar um livro é uma coisa super custosa. Enviar livros pra lá e pra cá nesse país imenso é custoso. Sei ainda que esse governo quer diminuir cada vez mais o acesso à leitura, com ministro defendendo que livro é coisa para elite. Voltando à pergunta: acho que sim, que hoje se lê de outro jeito, tanto em outros suportes (já vi jovens que leem romance no celular) como de modo mais fragmentado, talvez. A crise da atenção atinge todos nós, independente da idade. Lemos em meio a frequentes interrupções.
Por fim, a pergunta que sempre faço: quais autores você está lendo? Por quê?
Nesse momento, estou lendo Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso. Como resistir à premissa de um romance no qual uma mulher rouba um bebê? Ainda estou na metade e já adorei a estrutura do livro, além das duas protagonistas que, cada uma com seus encantos e defeitos, nos mostram sua cara mais honesta. Também estou lendo Aulas de Literatura, de Julio Cortázar, porque gosto de sempre ler, simultaneamente, ficção e não-ficção. Essas aulas que Cortázar ministrou têm também essa qualidade da honestidade, de falar do processo criativo sem as maquiagens místicas do talento nato. Estou me dedicando a ler palavras honestas, sejam elas verídicas ou não.