Viver em primeira pessoa a crucificação — por meio da música

Hegel, filósofo alemão, afirma que o gênero musical do crucifixus deve levar o ouvinte sentir, do interior, o que sentiu Jesus

Andrea Mantegna, Lamentação sobre o Cristo morto (1483)

Na tradição cristã, a Páscoa marca a lembrança da Paixão de Cristo, isto é, sua morte, crucificação e ressurreição. Essa narrativa se tornou um tema para as diversas artes — das artes visuais, destacamos a tela de Andrea Mantegna, acima; no cinema, podemos lembrar de um filme como A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, entre muitos outros —, incluindo, claro, a música, que é o tema desta postagem, inspirada por uma passagem do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), no seu O Sistema das Artes, página 334:

Nas antigas músicas religiosas, num Crucifixus, por exemplo, os profundos motivos que a Paixão de Cristo comporta, o seu divino sofrimento, a sua morte e encerramento no túmulo etc., são concebidos de forma a exprimir não a emoção subjetiva ou o sentimento subjetivo da piedade ou da compaixão provocados por esses acontecimentos, mas, por assim dizer, a própria coisa, a profundidade de sua significação. Sem dúvida, as harmonias e o desenvolvimento melódico desta última expressão são destinados também a impressionar o ouvinte, a agir sobre o seu sentimento: não se lhe solicita apenas que contemple os sofrimentos da crucificação, do encerramento no túmulo, que faça uma ideia geral, mas propõe-se-lhe fazê-lo reviver interiormente toda a profundidade dos sofrimentos divinos, quer fazer-se-lhe sentir a dor da morte, quer-se que a sua alma seja absorvida por esses acontecimentos, que neles mergulhe completamente, que se identifique a tal ponto com eles que tudo aquilo que lhes seja exterior já nada signifique pra ele. E, para que a obra de arte esteja em condições de produzir tal efeito, é necessário que a alma do próprio compositor não exprima somente os sentimentos subjetivos que tal assunto lhe tenha podido inspirar, mas que esteja mergulhado neste com toda a sua alma, formando com ele uma verdadeira unidade.

crucifixus — em latim, “crucificado” — marca, em composições musicais feitas para missas dedicadas à Paixão, o momento da crucificação. Para Hegel, às músicas que se confrontam com esse tema cabe a necessidade de fazer o ouvinte vivenciar, como em primeira pessoa, aquilo pelo qual teria passado Jesus. Os compositores atendem a essas proposições do filósofo? Podemos, através dessa músicas, ter a experiência pretendida por ele? Com essas questões em mente, montamos a playlist abaixo com 33 crucifixus:

A playlist reúne obras de compositores eruditos — como Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Sebastian Bach, Antonio Vivaldi, Claudio Monteverdi, Antonio Lotti e Arvo Pärt —, nos quais se destaca o uso do coro e da orquestra, e de autores que executam o crucifixus em outros estilos (por exemplo, a banda Cruciatus Infernalis o leva ao metal e o grupo Nueva Manteca à música cubana). Um destaque é a composição de José Maurício Nunes Garcia e Manoel Dias de Oliveira: um crucifixus executado pelo barroco brasileiro.

Hegel estava certo? O que você vivencia por meio dessas músicas?

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