Jé Oliveira comenta Sobrevivendo no Inferno

A Companhia das Letras publicou em novembro uma edição em livro das letras de Sobrevivendo no Inferno, álbum dos Racionais MCs lançado em 1997. Úrsula pediu depoimentos sobre o disco e sua importância. Neste depoimento, fala o ator, dramaturgo e diretor de teatro Jé Oliveira.

Leia também o depoimento do poeta Marcelo Ariel.

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Sobrevivendo no Inferno é um álbum dos Racionais MC’s lançado em 1997, isso todo mundo que se interessa pelo assunto sabe. Que, na época, vendeu mais de 1,5 milhão de cópias, também. O interessante é tentar entender um pouco do por que e do como isso aconteceu…

De um modo genérico podemos dizer que uma das palavras que define toda a obra dos Racionais desde 1989 — quando o grupo se formaliza — até o presente, é coragem. Vejamos: quatro jovens (o mais velho deles, na época, tinha 20 anos) pretos e pobres nascidos em duas periferias extremas da cidade de São Paulo, zona norte e sul, ousam se expressar livremente por meio da arte — quatro anos após o fim da ditadura civil-militar, um ano após a formalização da Constituição Federal e 101 anos após a “abolição” da escravidão. Não à toa, a primeira faixa do primeiro álbum, Holocausto Urbano, de 1990, é “Pânico na Zona Sul”, quase um pedido de socorro de uma gente preta que vive amedrontada na borda do mundo, com a sensação de que ninguém se importa com suas vidas e de que o próximo a ser exterminado pode ser qualquer um que julgarem parecido com o “marginal cor padrão”. Já a primeira faixa de Escolha o seu Caminho, lançado em 1992, é “Voz Ativa”. Nela, bem menos explicativos e polidos, mais contundentes, provocativos, amplos e corajosos, localizam e classificam os inimigos que querem que os negros sejam todos iguais: “Madames fodidas e os racistas fardados de cérebro atrofiado”.  Em seguida é lançado Raio X do Brasil, em 1993, e dele a primeira faixa é “Fim de Semana no Parque”, que já em sua introdução tem a coragem de afirmar que “um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse país” é a liberdade de expressão; e, no decorrer da canção, continua corajosa ao começar a definir a periferia — de modo inédito — não só pela falta, mas pelo que possui também: “Na periferia a alegria é igual, é lá que moram meus irmãos, meus amigos, e a maioria por aqui se parece comigo”.

Finalmente chegamos na primeira faixa do disco em questão, “Jorge da Capadócia”, regravação da canção de Jorge Ben de 1975 com sample de Isaac Hayes. A coragem aqui é abrir o disco com uma saudação a Ogum, orixá do candomblé e da umbanda — portanto, temos de saída uma afirmação negra — divindade criadora da metalurgia (consequentemente, da estrutura da arma de fogo) e protetora dos caminhos. Não por acaso, em “Genesis”, faixa posterior, entre as poucas posses do narrador estão “uma bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta” de alguém que está tentando “sobreviver no inferno”.

Estou convencido que todas as primeiras faixas citadas nos guiam pela tônica de cada um dos discos. Igualmente, algumas das chaves para a compreensão de Sobrevivendo no Inferno estão anunciados nesses trechos introdutórios: alguém que possui uma fé materializada em uma bíblia velha, prestes a definhar com sua fragilidade de papel (essa mesma imagem é retomada em “Diário de um Detento” como metáfora da frágil condição física do ladrão em confronto com a potência bélica que estraçalha corpos negros “que nem papel”); uma pistola automática para autodefesa e ajuda na tentativa de busca pela sobrevivência, mesmo que seja para sobreviver no inferno. É notória nesse disco a capacidade épica (nos termos do dramaturgo alemão Bertolt Brecht) de Mano Brown, que consegue partir de uma experiência pessoal do ponto de vista racial, social e geográfico e fazer com que ganhe dimensões políticas e subjetivas do perspectiva da coletividade. E faz isso sem grandes pretensões, quase naturalmente, como nos faz parecer todo grande intelectual e narrador: “Eu sou apenas um rapaz [Brown tinha apenas 27 anos] latino-americano, apoiado por mais de 50 mil manos”. É um disco que contém uma capacidade rara e pouco encontrada na música mundial, por isso o termo literário épico se encaixa tão bem, a obra tenta nos ajuda a entender, de modo aprofundado, sem abrir mão em nenhum momento da alta capacidade poética e imagética, de uma experiência social abrangente, complexa e cruel como é a brasileira.

É interessante notar como “Capítulo 4, Versículo 3” responde ao nosso cruel quadro social: basta o mínimo de sensibilidade para perceber o quanto de ira existe nesse revide musical, artístico, da mais elevada qualidade estética, tanto na construção das bases musicais e arranjos, como nas letras: “Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”. Os Racionais nos apresentam aí resultantes da desigualdade social: a sempre possível entrada no crime como modo de corresponder às cobranças do status social e das necessidades materiais; a raiva e também a inveja trazidas pelo não-pertencimento social etc. Mas o mais pulsante e importante nessa faixa que  ajuda a definir o macro discurso do disco é a sabedoria de se manter vivo nesse quadro civilizatório degradante ao qual somos empurrados como negros/as desde a escravidão: “Se eu fosse aquele moleque de toca, que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca — de quebrada, sem roupa, você e sua mina — um-dois, nem me viu, já sumi na neblina… mas não, eu permaneço vivo, prossigo a mística, 27 anos contrariando a estatística”.

Nas demais músicas as questões se adensam quando se trata das complicações e riscos internos de quem vivencia o mundo do crime e seus códigos de ética, valores e julgamentos — por exemplo, “meus aliados, meus manos, meus parceiros, querendo me matar por dinheiro”, em “Tô ouvindo alguém me chamar”. O mesmo se dá na exposição da complexa e nuançada vida de quebrada, narrada com propriedade e abrangência por Edi Rock em “Rapaz Comum” e “Periferia é Periferia em Qualquer Lugar’”. O épico volta em “Diário de um Detento” para vivenciar em primeira pessoa o massacre do Carandiru, de 1992, canção talvez mais conhecida pelo grande público por meio do impressionante videoclipe, em que Mano Brown (que nunca esteve preso; é sempre bom salientar o caráter artístico dessa obra) vivencia com maestria e visceralidade, em primeira pessoa, um dos massacrados.  Em “Qual Mentira vou Acreditar”, podemos notar uma exposição irônica, bem humorada e sarcástica do modo cotidiano que o racismo encontra para se perpetuar.  Um bom exemplo é uma passagem na qual dois amigos conversam e, após um deles identificar que a polícia sempre o para por ser negro, o outro responde: “O primo do cunhado do meu genro é mestiço, racismo não existe, é para sua segurança”, o outro então desiste do debate e conclui: “Deixa para lá”. Em “Mágico de Oz”, talvez a mais lírica do disco, em par com “A Fórmula Mágica da Paz”, acompanhamos um pedido visceral e emocionante de ajuda a Deus, para que se mude o quadro social em que as pessoas pretas da periferia vivem, sobretudo a destruição do crack: “A minha liberdade foi roubada, minha dignidade violentada, que nada, pedir pros manos se ligar, parar de se matar, amaldiçoar, leve para longe daqui essa porra, não quero que um filho meu — Deus me livre — morra”.

Na canção síntese do disco, “A Fórmula Mágica da Paz”, vemos o indivíduo tentando lidar com todo esse contexto histórico social de opressão, crueldade, exploração, racismo, crime, religião, indagando o que fazer. Questionando a si próprio e suas responsabilidades diante desse quadro. É a primeira vez na obra do Racionais que vemos um Mano Brown de alguma forma fragilizado, em dúvida, lírico (isso é aprofundado e adensado no disco posterior Nada Como um Dia Após o Outro Dia, de 2002, na faixa “Jesus Chorou”): “Eu já não sei distinguir quem está errado, sei lá, minha ideologia enfraqueceu: preto, branco, polícia, ladrão ou eu? Quem é mais filha da puta, eu nem sei”.

Enfim, não é possível dissecar em poucas linhas uma obra da magnitude desse disco, sua importância e profundidade, apenas tentei levantar aqui alguns pontos que ajudam a entender minimamente a potência dessa criação que figura entre as principais obras artísticas da humanidade.

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