Implodir a Estrutura do Cinema

Um conceito de cinema que aproxima essa obra do teatro: ao mesmo tempo em que é encenada, é editada e exibida na sala tradicional para o público

A proposta é interessante: um filme feito e exibido em tempo real. Cinema vivo, ou cinema explicíto. Enquanto as cenas são gravadas em cenário aberto, vão sendo editadas. Dentro da sala ou nas locações, o público assiste a história. “Como surgiu, eu não sei”, diz Alexandre Carvalho, diretor de Fluídos, primeira experiência do conceito, “é uma ideia que eu já tinha há algum tempo, mas eu não sabia como fazer. Achava que seria difícil de fazer, no sentido de inviável, de ‘qual seria a tecnologia pra isso’. Mas a tecnologia se adapta à ideia”. O que significa essa obra para o cinema? Qual será o resultado? É como se a própria produção do filme se tornasse um espetáculo: atrai curiosidade por si. De acordo com Carvalho, cinema vivo “é expor a estrutura do fazer cinematográfico”.

Carvalho produziu dois documentários: 35mm, que, segundo ele, “ganhou um prêmio no Festival de Cinema Brasileiro de Nova York”, e Vila Prudente, parte de uma série de documentários sobre os bairros de São Paulo, encomendado pela Prefeitura. O diretor diz que, no caso do cinema vivo, não foi influenciado por nenhum trabalho em particular, e “depois vi que existia cinema ao vivo, ou live cinema; mas a maioria dos trabalhos é mais ligado à videoarte, mais ligados a coisas sensoriais, experimentais. O que estou fazendo é um longa mesmo, narrativa clássica”.

Além da vontade de experimentação, uma das principais, senão a principal motivação dessa obra, há também no cinema vivo uma “função social”: “é você invadir com o cinema o bairro”, diz Carvalho, “na Cachoeirinha, por exemplo, as pessoas não tem muito acesso ao cinema. Então, quando você implode a estrutura do cinema e a deixa vísivel, você faz com que as pessoas se acostumem com essa linguagem”.

O filme trata de três relacionamentos: “enquanto um casal se torna escravo de seus fetiches, uma mulher encontra o marido apenas pela internet e um garoto expõe sua vida num programa de televisão sensacionalista”. As histórias tentam explorar o cotidiano do Centro Cultural — são histórias que poderiam ter acontecido lá, de acordo com o diretor, partindo de uma pesquisa do ambiente: “Que tipo de pessoa vem aqui? Qual o personagem que pode frequentar o Centro?”.

Os ensaios já contaram com a interferência do público. No Centro Cultural da Juventude, os atores foram atacados por um grupo de pessoas que não gostou de uma cena mais sensual que era ensaiada no espaço público. “Lá onde a gente fez todo o trabalho, preparou tudo. Era um ensaio, não estava toda a equipe. Então, essa família passou, viu uma cena que eles não gostaram; só que não dialogaram, já começaram a agredir. Por causa disso, nós tivemos de cancelar a apresentação lá”. No CCSP, outras ocorrências, menos graves: “Ensaiamos uma cena aqui que parou o bar. Era uma briga, todo mundo parou pra olhar. Um cara que estava do lado interferiu, falando pros atores, um garoto e uma mulher mais velha: ô, não fala assim com ela. Não percebeu que tinha uma câmera, outras pessoas”.

Alexandre Carvalho é categórico: se intervenções acontecerem nas apresentações, “o ator vai ter que se virar e aquilo vai virar parte da história”. Segundo ele, “os imprevistos podem dar um ar mais realístico, que é um pouco do que o cinema do ano 2000 pra cá está buscando, utilizando o não-ator, como no Cidade de Deus. É uma realidade dentro do cinema que tem se buscado. Contratodos, do Roberto Moreira, é um exemplo: os atores não tinham roteiro, trabalhava-se o perfil da personalidade do ator, mas não o roteiro, quase que pro ator virar o personagem. Mesmo o Lars Von Trier e o seu Dogma 95 tinham essa busca de realidade no cinema”.

Como as cenas serão encenadas em locação aberta, há no cinema vivo um cárater de teatro: então esse tipo de obra é teatro ou é cinema? Primeiramente, a divisão em gêneros não tem ou não parece ter muita importância para o diretor. Em segundo lugar, quem não assiste ao filme na sala, e sim nas locações “é figurante; ele pode assistir à cena, mas não vai ter ideia do todo. O público, a princípio é aquele que está na sala de cinema”. Por fim, o modo como o espetáculo foi pensado o aproxima do teatro, mas também o afasta dele: “O ator tanto tem que dominar o ao vivo, ter o filme inteiro na cabeça, decorar todas as cenas, quanto saber que atuar ali se a câmera estiver aqui não vai adiantar nada; e se for atuação de teatro, vai ficar horrível na tela, tem que que ser uma atuação cinematográfica”.

Fluídos se tornará a dissertação de mestrado em Cinema que Carvalho faz na ECA/USP. O diretor enxerga também no conceito cinema vivo possibilidades mais amplas de aplicação: “essa é a primeira experiência, pequenininha, discreta, mas dá pra fazer coisas maiores. Ele acontece em torno de um espaço, ele pode acontecer em torno de um bairro, de uma cidade, de várias cidades. Dependendo da tecnologia que tiver, você pode expandir esse conceito”.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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