Escritor, editores e leitores sensíveis vão mexer no seu texto — e isso é bom

imagem: Bill Dickinson

1 – É a edição, estúpido!

Editores vão mexer no seu livro. Editores vão sempre mexer no seu livro. Não é censura, é o mercado funcionando. Editores vão querer polir seu texto. Não é censura. Editores vão pedir para cortar partes da história que pareçam gratuitas. Não é censura. Vocês não são floquinhos de neve. Os autores que vocês mais admiram passaram por isso. As duas grandes verdades do mercado editorial são essas: autor ganha pouco e o editor vai mexer no seu texto.

Se um editor não mexer no texto de vocês, fiquem com o pé atrás. Porque isso não significa que vocês são gênios e que entregaram um livro perfeito. O que significa é que o editor provavelmente nem leu seu livro e está pouco se importando com o que vai ser publicado. É preciso ter diálogo. Chilique não resolve nada. E transformar a editora em sua inimiga resolve ainda menos.

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Nos meus anos de editora, eu sempre marcava trechos que achava que poderiam ser problemáticos ou que não achava que estavam bem explicados ou resolvidos e enviava essas preocupações para os meus autores. Qualquer dúvida era resolvida pela conversa, pela troca de e-mails, de mensagens de texto. E minha opinião nem sempre era lei. Às vezes, deixávamos o trecho que eu grifei como estava. Comunicação é essencial no mercado editorial. E muitas questões que podem soar problemáticas ou ambíguas para um primeiro leitor podem ser resolvidas se o autor desenvolver mais o trecho apontado e comunicar com clareza o que está se passando na história.

Vocês precisam estar prontos para isso: para cortar seus textos, para cortar o que for supérfluo e gratuito. Esse é o mundo real da publicação.

2 – Quem você vai chamar? O DVDM!

Outra coisa: uma editora tem o poder de vetar uma história que tenha o potencial de alienar seus leitores. Para avaliar essa possibilidade, a empresa pode recorrer aos chamados leitores sensíveis — agentes do Departamento de Vai Dar Merda, aquelas vozes da razão que vêm em socorro de autores que nunca vivenciaram aquilo sobre o que estão escrevendo.

Se o seu livro tem cenas de estupro que são necessárias para tornar a personagem mulher mais forte, muitas leitoras provavelmente não vão querer prosseguir com a leitura. E elas vão comunicar isso à editora e/ou ao público geral. A editora, decidindo que não quer afastar metade da população, pode chegar à conclusão de que é melhor cortar certas cenas ou abandonar a ideia de publicar o livro. E isso é absolutamente normal no mercado.

No cinema, é muito comum a prática de se exibir produções ainda não finalizadas para audiências aleatórias e julgar, da reação desse público, o que cortar, o que acrescentar. A maioria dos filmes que vocês tanto amam passaram por esse processo. Ninguém lança um filme sem esse primeiro teste de audiência. No mercado editorial, o processo é parecido.

Não é censura. Uma editora é uma empresa privada que julga a quais autores ela quer associar sua imagem. Nada impede um autor que foi rejeitado de se autopublicar, de ir atrás de outra editora que queira seu manuscrito. Então parem de chorar, bando de floquinhos de neve.

A leitura sensível tem uma reputação ruim porque, penso eu, certos tipos de pessoa não podem ler a palavra sensível sem se contorcer. O mundo está chato, tudo é censura, e aquela bobagem de sempre.

3 – Quem mexeu na minha falta de base?

No início do ano, foi publicado nos Estados Unidos um livro chamado American Dirt; foi publicado já com alarde, cheio de elogios, endossado pela Oprah e tudo mais. Era um livro sobre a realidade de uma imigrante ilegal do México tentando chegar até os Estados Unidos. Era para ser a voz de um povo sofrido e raramente ouvido. Até que pessoas que realmente são mexicanas pegaram o livro e viram um absurdo atrás do outro. Estereótipos. Uso errado da língua. Geografia que não fazia sentido nenhum. Essa descoberta gerou uma polêmica gigantesca: de um lado, imigrantes mexicanos, ou descendentes de imigrantes mexicanos, dizendo que uma cultura inteira estava sendo retratada erroneamente; do outro lado, a autora, que não é mexicana, nem descendente de mexicanos, e um mercado editorial totalmente branco gritando que o livro estava sendo censurado. O livro nunca foi censurado. O livro não foi censurado, porque você pode encontrá-lo à venda em qualquer lugar. Pode encontrá-lo até em tradução aqui no Brasil. Mas a polêmica levantou outra vez a acusação de que a sensibilidade dos outros estava arruinando o mundo literário. De que editoras estavam sendo forçadas a se dobrar ao terrorismo de certas minorias. De que a Arte com a maiúsculo estava sendo calada. Algo que ecoa muito do que eu vejo no nosso mercado editorial.

Pois bem. Vamos a um exercício: imaginem que alguém lançou um livro que os outros (jornalistas americanos, brancos) afirmem ser o retrato definitivo do Brasil; que finalmente as sofridas vozes brasileiras serão ouvidas. E que o livro se passe no meio de São Paulo, capital. E que já na abertura do livro os personagens estejam em uma praia no fim da Avenida Paulista, sambando e jogando futebol ao mesmo tempo, enquanto seguram uma caipirinha numa mão e um prato de feijoada na outra. E que eles não falam português, mas espanhol. A sua primeira reação — depois de checar a contracapa, só para ter certeza de que o livro não é algum tipo de parodia — provavelmente seria a de se perguntar se por acaso algum brasileiro chegou a ler o manuscrito antes da publicação; se a editora americana sequer se coçou para fornecer um consultor brasileiro ao autor, Chad McAmerican, que mora no Missouri e nunca pisou no Brasil, só conhece o nosso país pelo que ele lê nos jornais ou pelos estereótipos de filmes.

Você provavelmente levantaria sua mão e, com certo constrangimento, diria: Ok, mas, gente, isso aqui não é o Brasil. Nem de longe isso é o Brasil.

E trezentas pessoas apareceriam nas suas redes sociais para te acusar de ser sensível demais e de querer censurar arte.

E você gritaria: ESPANHOL NÃO É A LÍNGUA QUE O BRASILEIRO FALA, GENTE.

E te chamariam de ditador e mandariam um emoji de cocô pra você. O grande retrato definitivo do Brasil seria publicado e aclamado do mesmo jeito. Chad McAmerican embolsaria seus milhões e um estúdio de Hollywood começaria a gravar uma adaptação estrelada pelo Ricardo Darín. Qualquer amigo gringo que você fizesse a partir desse ponto sempre te perguntaria quantos traficantes você tem na família e, ao visitar São Paulo, pediria para ser levado à praia da Avenida Paulista. Ao ser apresentado ao seu apartamento de 4 mil reais na Santa Cecília, seu amigo gringo, com algum assombro, perguntaria por que você não mora em uma favela. E você olharia para a câmera que nem o Jim de The Office.

O leitor sensível é o muro que muitas editoras têm entre a aquisição de um manuscrito e a completa loucura que eu acabei de descrever.

O leitor sensível é quem vai te dizer: isso nunca aconteceu.

Não é assim que as coisas funcionam no país X.

Não, o país X não é feito só de desertos.

Essa visão de um jovem gay descobrindo sua sexualidade é estereótipo de filme ruim.
Não, não faz sentido o seu herói branco passar duas páginas explicando para um personagem negro o que é racismo.

E se tem alguém aí que neste exato momento está pensando, “bom, Clara, eu nunca voei em um dragão; quer dizer que não posso escrever sobre dragões?”, eu tenho um recado pra você: enfia sua edição de luxo de Game of Thrones na bunda e cala a boca. Porque você entendeu do que eu estou falando. Vocês todos entenderam. O único floquinho de neve é aquele que não aceita ser criticado ou que não quer reconhecer que ele não é dono de todo o conhecimento do mundo e que, para escrever sobre certas vivências, você precisa saber do que está falando, porque você não é autoridade nas questões que dizem respeito a um grupo de que você não faz parte.

4 – Estamos no mesmo barco

Se pareci gatekeeper de alguma coisa, explico que não sou sensata, não sou guia, não sou leitora sensível. Eu sou branca e heterossexual e imensamente privilegiada, e só me considero autoridade em pouquíssimas coisas além dessa vivência. Sempre vou precisar de quem edite meus textos. Se meus textos voltam sem comentários ou marcações ou puxadas de orelha, eu suspeito. Estou no mesmo patamar em que todos os escritores estão.

Posto isso, digo: abracem seus leitores sensíveis. Seus primeiros leitores, consultores, como quer que vocês queiram chamá-los. E, editoras: invistam nesse tipo de profissional.

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