Dome seu Medo

“Chapeuzinho Amarelo teme algo que não se pode ver: um ‘lobo’ virtual, que talvez nem exista”

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, é uma releitura da obra original de Perrault, Chapeuzinho Vermelho. Nessa obra, Chico subverte uma história há tempo está cristalizada na memória coletiva — realiza um questionamento sobre a construção de sentidos, sobre os entendimentos de mundo e, em última instância, sobre os medos que construímos na nossa relação com o exterior. História feita para o público infantil, é capaz de ser reinventada e explorada além do texto, formando leitores ‘pensantes’ sobre si e o mundo que os rodeia.

As ilustrações ao livro são de Ziraldo. O desenhista, já conhecido e consagrado por obras que instigam discussões e reflexões (O Menino Marrom, Flicts), traz ao texto de Chico imagens que ampliam sua dimensão.

Era a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada, nem descia.
Não estava resfriada, mas tossia.
Ouvia conto de fada, e estremecia.
Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.

As cores de Chapeuzinho são pálidas; seu olhar, de esguelha, desconfiado. Os verbos estão no pretérito imperfeito, indicando continuidade de um fato (o medo); são em tom melancólico, triste (descia, resfriada, tossia, estremecia) e sempre acompanhados de negativa. Os discursos de autor e ilustrador se completam.

Em Perrault/Grimm, a personagem Chapeuzinho Vermelho ainda não conhecia o medo, que se instaura com a figura dominante do Lobo. Os papéis cumpridos pelos sujeitos da história trabalham uma ética moralizante, que ensina à criança determinados preceitos e condutas condizentes à época em que foram escritos. Já Chapeuzinho Amarelo está impregnada desses prejuízos e teme algo que não se pode ver: um ‘lobo’ virtual, que talvez nem existisse, era o maior dos medos — talvez a reunião de todos eles.

E Chapeuzinho amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele.
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz de comer duas avós, .
um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz…
E um chapéu de sobremesa.

Depois de iniciar trabalhando a intertextualidade entre o texto original e o de sua autoria, Chico leva o leitor a um caminho inesperado, desencadeado pela ‘diminuição’ do significante LOBO, para “só lobo” exatamente no momento em que a menina o vê de perto:

Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo:
o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.

Ora, o autor explicita ao leitor que Chapeuzinho deve enfrentar o que se teme, perceber se, na realidade, esse medo é tão grande quanto ela pensa. A narrativa, neste ponto, é totalmente invertida, em valores e papéis. O ‘lobo’, antes temível, procura manter seu valor, e para tal se vale da repetição do seu nome, “umas vinte e cinco” vezes. De tanto repetir, o ‘lobo’ inverte a ordem da palavra. De ‘lobo’ vai à ‘bolo’, e a inversão do significante é também a inversão do medo.

Agora, Chapeuzinho domou seu medo e é ela quem se impõe ao lobolo. Agora, não há nada a temer. Todo o seu medo tornou-se amizade, uma vez invertida a ordem dos significantes. A ilustração de Ziraldo nos dá o índice da mudança ao traçar o caminho do lobo ao bolo, em um jogo de contrastes, branco e preto. O mesmo acontecerá com os demais medos.

E transforma em companheiro
cada medo que ela tinha:
O raio virou orrái; barata é tabará;
a bruxa virou xabru; e o diabo é bodiá.

Toda a obra instiga a criança a perceber que os medos podem ir e vir e que a solução da personagem recontada por Chico Buarque foi essa, mas ao fim refletimos sobre a possibilidade de criarmos outros monstros e a nos perguntar sobre nossos medos. Se jogarmos o jogo de Chapeuzinho Amarelo, encontramos logo na própria palavra medo uma mensagem: invertendo-a, conseguimos o imperativo dome. Que nos indica, mudando apenas um detalhe na música de Chico, o caminho para, com a vista enevoada, ver o inferno em maravilha.

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