Diário do México #7 | Sol e Chuva

Aquela anterior capacidade do homem de divinizar-se mediante o mistério de suas próprias ações me pareceu fascinante

Em menos de 40 minutos da capital mexicana, onde casas, prédios, asfalto, carros, ônibus, metrô, pessoas apressadas se amontoam, tentam passar, esborrifam fumaça e poluição, no conhecido cubismo da Guernica moderna que pinta a guerra de cidade grande, chega-se ao sítio arqueológico de Teotihuacan, a antiga cidade de pedra. Várias populações se alternaram na cidade encontrada pelos astecas já abandonada por povos anteriores onde se encontram as pirâmides do Sol e da Lua. As indicações nas placas que guiam o passeio pela Calzada de los muertos até cada uma das pirâmides pouco diz sobre essas populações. Afirmam apenas que cerca de 85 mil pessoas viveram ali, no auge da cidade, cultuando Queztalcoatl, o deus em forma de serpente emplumada que mostra sua cara escupida nas pedras que circundam as pirâmides. O nome da avenida que corta a cidade de norte a sul tampouco é esclarecido, comentado-se apenas que os aztecas a teriam denominado assim por pensarem que as pequenas pirâmides que a margeiam eram tumbas. Outras pirâmides estão subterradas sob as ruínas da cidade que vemos erguidas ainda hoje. Ali os espanhóis não interviram de forma a desmoroná-la como fizeram com o Templo Mayor, subterrado no poluído centro da Cidade do México. O que fizeram foi tirar algumas pedras das pirâmides para com elas erguerem seus templos católicos em outros lugares.

A ansiedade em conhecer a cidade e a memória do esforço que foi subir o cerro de Tepozteco fez com que a subida ao topo da pirâmide do Sol ocorresse com relativa facilidade. De lá de cima o sol impiedoso seguia nos queimando, as pedras da cidade não eram capazes de desenhar uma sombra ao redor das pirâmides, e a Calzada de los muertos reluzia dourada. Diante daquele sol chapado, vigorante, é fácil compreender porque foi visto como um poderoso deus e teve a maior e mais trabalhosa pirâmide de Teotihuacan oferecida a ele. Aqueles povos adoravam exatamente aquilo que estava ao seu redor, identificavam sua atuação direta nas suas vidas, a toponímia de suas cidades e templos reflete a correspondência direta entre os elementos da natureza, divinizados, e a realidade terrena. Teotihuacan é justamente o lugar onde até mesmo os homens se convertem em deuses, segundo sua tradução do náhuatl. E um dos motivos para essa divinização talvez se dê também por todo o mistério que encobre a história da cidade. Quem eram os homens que povoaram a cidade antes dos astecas? Como foi realizada a construção daquelas pirâmides imensas, feitas de pedras que pesam toneladas? Grande parte de Teotihuacan está proibida para a visita dos turistas sedentos por fotos, muitos de seus segredos estão de certa forma compartilhados pelos arqueólogos que têm o maravilhoso trabalho de tentar desvendá-la. Mas que ainda assim, certamente, não têm todas as respostas. Em meio a um entorno tão pouco transcendente em que a civilização atual, ao contrário, esvazia o sentido dos signos da natureza e os reinventa sob o molde único da mercadoria, aquela anterior capacidade do homem de divinizar-se mediante o mistério de suas próprias ações me pareceu fascinante.

Voltei para a Cidade do México com a vertigem da queda dos deuses. Curiosamente, a minha própria vertigem não me atacou enquanto subia as pirâmides em Teotihuacan, ainda que muitos me tinham dito que provavelmente não conseguiria alcançar o topo das pirâmides por causa dessa fobia. Mas, no mesmo dia pela noite, ao subir em um prédio para visitar uma amiga no décimo primeiro andar, novamente senti a náusea e o contido pânico que me acometem na altura. As nossas cidades de cimento, que nos rebaixam às condições humanas esvaziadas de qualquer divindade, nos enchem, por sua vez, de medo. Medo não do mistério, do desconhecido, mas medo justamente do que se vê, das alturas artificiais que se erguem cada vez mais para, ao invés de buscar o deus no céu, como as pirâmides indígenas, contrapor-se com o que há lá embaixo, à terra de que tentamos nos afastar e que reflete nosso fim, nossa queda. Todas as nossas avenidas de cimento são as modernas calçadas de mortos. Mortos decaídos, em todos os sentidos dessa última palavra.

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