Cat Power: Flores, melancolia e minimalismo

A musicista impressiona e encanta, silenciosamente, pelos gestos lentos, arrastados, pelos olhos fechados

O show seria às 17h. Às 13h, já havia pessoas sentadas em frente ao palco, coladas na grade. Sedentas. Via-se de longe pessoas escrevendo cartas, cartazes, contando fatos e desfilando sutilmente com camisetas com a foto dela. Mas o que se sentia de mais forte era uma ansiedade gritante e muda que só sabia esperar pela voz. Assim que ela entrou, o Parque da Cidade, em São José dos Campos, cheio de palmeiras imperiais e começando a apresentar o pôr do sol, estava cheio de gente. Hush now, don’t explain, ela cantou, you’re the cause of all my trouble and pain.

Eram versos de Don’t Explain, faixa dolorida do se último álbum, Jukebox. Cat Power, definida pelo NY Times como “indie-folk rocker”, é um pouco de Janis Joplin, mais um quê de Aretha Franklin e algo de Bob Dylan, tudo isso com uma pegada minimalista, repleta de melancolia, jazz, solidão e uma voz extraordinária. Ela canta de um jeito que impressiona e encanta, silenciosamente, pelos gestos lentos e arrastados, pelos olhos fechados. Pelo chá que, na pausa entre uma música e outra, ela se abaixa para tomar. João Paulo Cuenca a descreveu como “mulher de 38 anos, mistura de Jane Birkin, Valentina e Betty Page – desenhada pelo Milo Manara”, que “passa quase o tempo todo curvada como um monge em autoflagelo medieval”.

Mas não nesse dia. Cat Power, ou, se preferir, Chan Marshall, verdadeiro nome da cantora e compositora americana, estava perceptivelmente mais aberta e solta, arriscando até mesmo algumas dancinhas e sorrindo sem parar. No final da década de 90, talvez. Cat Power teve problemas com álcool e drogas, o que a levou a uma depressão profunda e até a pensamentos suicidas: “I asked God, I said, I’m tired, I can’t do this. I was asking him to just take me” [“Eu chamei Deus, eu disse, eu estou cansada, eu não posso fazer isso”], disse ela, em 2006.

Ela também era extremamente tímida e tinha uma espécie de pânico de palco, o que acabava fazendo com que fizesse os shows quase que fora do corpo. Nessa fase, chegou a ponto de decidir abandonar a carreira musical completamente. Foi salva por um noite de pesadelos. Em meio aos sonhos ruins, surgiram as letras de seu álbum Moon Pix (1998). Talvez por isso, muito de suas músicas refletem a sensação de não pertencer a nada e estar sempre procurando por algo que talvez não exista, losing the star without a sky…

Em São José, o silêncio era tangível, concreto, era o que mais chamava atenção após aquela voz triste sussurrando, gritando, cantando músicas como a famosa The Greatest, trilha sonora do filme Um Beijo Roubado, Metal Heart, Ramblin (Wo)man e Sea of love. Quando se olhava em volta se via apenas um monte de olhos desconhecidos, anônimos, estrangeiros, mas olhos encantados, envoltos na transcendência do piano, dos solos de guitarra e daquela voz de adjetivo indizível. Nos intervalos entre as canções, podia-se ouvir gritar frases em inglês como “you’re my Bob Dylan!”.

Bob Dylan é o ídolo maior da cantora, inclusive foco de uma das duas músicas de autoria própria de se último disco, Song to Bobby. Nela, a cantora declara:

You sang the song that I was screaming'(…)

Giving you my heart
Was my plan
I wish I could tell you.

No palco, ela não tinha quase nada daquela idealização romântica que as grandes cantoras têm. Ela é humana e alcançável. Disse que todos estavam muito longe, que era pra chegarem mais perto – ela está acostumada a fazer shows em que o caráter intimista transcende a música e deixa o público bem mais próximo. A proximidade parecia impossível, devido à quantidade de seguranças e à grade. Mas, ao final do show, enquanto Chan joga flores e distribui set lists, essa grade se fez invisível. Todo mundo deu um jeito. Eu inclusive. Peguei uma flor e um pedaço do set list, que por sorte era exatamente o pedaço que tinha a minha música preferida: Metal Heart. Depois disso, ela ainda tocou um pouco de bateria, com os cabelos suados e sorrindo bastante. Feliz e leve – finalmente. As pessoas sorriam em resposta, em uma espécie de entendimento mútuo.

Quando ela saiu do palco, o silêncio voltou a ser barulho. Quando ela saiu do palco, tudo o que consegui pensar, ainda atônita, foi, Chan, you’re my Bob Dylan

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