“A Pantera”: Equilíbrio Instável

Na peça, a tensão entre a vontade de sair e o temor de se mover; o perigo e o fascínio do horizonte inexplorado

A Pantera, tragicomédia dirigida por Luiz Montes, tem uma premissa kafkiana: um casal nas vésperas de seu casamento está em um supermercado, escolhendo produtos para uma das festas do noivado. Súbito, são afetados pelo absurdo. Percebem que o estabelecimento está vazio, a não ser por eles; não conseguem encontrar saída nem pedir socorro a ninguém. Enquanto tentam solucionar o imbróglio, um estrondo, um vulto, uma suspeita os assusta terrivelmente: começam a acreditar que estão sendo espreitados por um animal selvagem. A crise externa se aprofunda em uma crise interior: o relacionamento dos dois deixa ver suas lacunas, suas tensões.

O enredo é tocado com humor e pode gerar identificação: os conflitos de relacionamento dos protagonistas são conflitos de todos nós. A peça sabe os momentos em que deve agravar o tom e constrói bons momentos dramáticos também. Os problemas são visíveis de forma cômica já na primeira cena, que desenha os protagonistas dessa forma: a noiva (Silvia Lourenço) é grudenta, extracarinhosa, ciumenta; o noivo (Gustavo Vaz) é condescendente, irônico, irritadiço com o modo como ela age. Nos atos seguintes veremos outros motivos para divergência: ela quer que ele se imponha mais nas situações; ele se sente oprimido pelas exigências dela.

Se em um primeiro momento essa caracterização parece próxima demais do clichê, é preciso reconhecer pelo menos duas qualidades. A primeira, como já citado, são as várias oportunidades de identificação. Já no início, é possível sentir empatia por essa situação em que um cônjuge tenta determinar o modo de agir do outro. Ou pela aceitação do hábito através do silenciar irritado. No decorrer da peça, assistimos a um desfile de pequenos problemas que vão minando devagar a relação. Se quem assiste for conseqüente, terá chance de se autocriticar.

A segunda é que o texto parece usar os lugares comuns para exibir as patologias que causam. Ela, esposa dedicada, se inferioriza, tenta se aproximar com gentileza excessiva dele e da sua família. Ele, marido provedor, força atitudes heróicas e esconde o que pensa dela e o que seus parentes pensam para manter, senão a estabilidade, a aparência da estabilidade. A conclusão é que um dos elementos da crise é o fato de que estão tentando se adequar aos clichês.

As situações absurdas — o cárcere no mercado, a pantera feroz à espreita — no entanto vão forçar que sejam sinceros.

A Fuga do Pássaro

Que cada um queira que o outro satisfaça suas necessidades se tornará claro; e como isso não ocorre, serão mutuamente violentos.

As aparências, então, caíram como cascas secas. Em uma cena particularmente intensa, ambos estão imersos no palco escuro, investigando o local com lanternas. Dialogam consigo mesmos, reclamando do parceiro. Motivos profundos do relacionamento são expressos. Ela: “Eu queria segurança”. Ele: “Comecei e vou até o fim”. Mais adiante, a noiva conta uma história que a marcou, sutilmente deslocada do tom habitual da peça, e que condensa seu significado: ela vê um pássaro em uma gaiola em um local qualquer. Alguém por um momento deixa a porta da gaiola aberta. O pássaro foge. Voa, voa — e se espatifa de encontro a uma superfície de vidro, e morre. A liberdade recém-adquirida não lhe trouxe qualquer felicidade.

Há então a incerteza, completa falta de garantias além da estabilidade atual. Aceitar o que é atualmente estável ou o que tem sido parece uma boa escolha. Na peça, o noivo dá à noiva um colar tradicional entre as mulheres de sua família. Por algum tempo ela se nega, despreza-o, mas termina colocando-o sobre o próprio pescoço — resoluta e resignada. Portanto, se por um lado a tentativa de enquadrar o cônjuge em um papel causa problemas, se encaixar em um papel é um modo de obter alguma felicidade, na medida em que essa palavra signifique a segurança e a sensação de objetivo alcançado citados pelos personagens. Paz externa.

A pantera, a ameaça à espreita, parece ser a metáfora para a liberdade possível, a tensão entre a vontade de sair e o temor de se mover; o perigo e o fascínio do horizonte inexplorado. Mas, bem além disso, a pantera pode ser ela própria um reflexo — um objeto de identificação.

Hábito de Cativeiro

A mulher se identifica com o animal: a pantera, tão sozinha, sentindo um chamado dentro de si mesma, um dia (um dia!) ela atende este chamado e foge. A atriz interpreta o relato de modo oblíquo, no limite ela pode tanto estar falando abertamente sobre si quanto apenas sobre a fera. Mais a frente, no entanto, o homem fará perceber que as grades permanecem incrustadas nela. A pantera roda ao redor de si mesma: “Hábito de cativeiro”, define ele. O modo como ela age, automático, lembra as atitudes dos personagens até aqui. Eles percorrem suas obsessões, de novo e de novo, apenas para se cansarem dela e continuarem o cotidiano.

A ideia de chamado nos remete à Clarice Lispector. É na escritora que encontraremos talvez o tratamento mais complexo do sentimento que a noiva, em A Pantera, expressa. Em pelo menos dois contos de Laços de Família vemos esse impulso misterioso que causa transformações. O primeiro é o que dá nome ao livro. Em “Laços de Família”, lemos:

Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…

Já em “A Imitação da Rosa”:

Ele a olhou envelhecido, curioso. Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Enve­lhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqüila como num trem. Que já partira.

O chamado e a aceitação do chamado parecem, pondo em paralelo peça e livro, essa fronteira sutil: em um momento, a prisão; noutro, já uma outra dimensão, o ser já inalcançável.

Por outro lado, apesar da existência do chamado, apesar da partida, o cárcere permanece. É uma variação importante do tema do pássaro: ele foge e se perde definitivamente. Aqui, a pantera foge, mas não escapa. As duas metáforas se entrelaçam para descrever a situação relacional dos protagonistas. O perigo de se machucar, a persistência das estruturas antigas, o desejo contido de liberdade extensa, a adoção de tradições como a satisfação possível, tudo se condensa, todos esses elementos estão em permanente tensão. Apesar de alguns trechos fracos do roteiro e do alcance pequeno da história, A Pantera atinge aqui uma formulação complexa. É a vida, ou o amor, como um equilíbrio instável. E nós entre tempestade e calmaria.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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