Bolsonaro, a covid-19 e o falso dilema entre medo e coragem

imagem: Palácio do Planalto

A campanha de Bolsonaro pelo colapso do sistema de saúde, pelo enfraquecimento eleitoral dos governadores e outros políticos “de oposição” e pelo retorno dos lucros dos grandes empresários nos joga em uma série de falsos dilemas. Sem filosofia, é impossível desfazer o emaranhado e perceber o quadro mais amplo de cada debate. Deve ser por isso que esse governo despreza a filosofia.

Um desses falsos dilemas é medo X coragem. Quem aceita o isolamento social seria covarde; quem “quer trabalhar” seria audacioso, capaz de suportar os riscos. O arrasto das brigas de opinião nos coloca essa opção binária: você é medroso ou corajoso, você recua com receio ou você negocia com o perigo? É forte ou é fraco? Eis o cenário posto pelo presidente. Por isso, ele se esforça em fazer-se “forte”: é atleta, propõe churrasco, passeia de jet ski.

Isso seduz, porque a gente sente a vontade de não ter medo, de acreditar que não há razões para o medo. Se as opções são só essas duas, então preferimos “ter coragem” e ver que não é um diabo tão feio assim. Há um ganho nisso, vocês percebem? Bolsonaro oferece um ganho de potência. A nós ele deixa o papel de quem quer menos vida. Um papel recessivo.

Se paramos de pular entre a casa 1 e a casa 2 do tabuleiro, a questão é remodelada e até se torna possível o diálogo com quem não temos a chance de dialogar. Por exemplo, e se nós contestarmos que só o que move as nossas ações seja o medo ou a falta de medo?

Digo: Bolsonaro, eu não tenho medo. Tomo as precauções que acho necessárias, mas não me assusta sair de casa, pegar um Uber, atender o entregador em pessoa, ir no mercado. Não fiz nenhuma higienização de compras. Se pegar a covid-19, acho como você que eu sobreviveria; sou jovem etc. Alguns me leem e já se agitam para me incutir mais medo, querem lembrar dos que morreram com 30 anos etc. Eu sei de tudo isso. Não tenho medo. E não preciso.

Não tem de ser o medo, Bolsonaro, não tem de ser o medo, pedagogos do pavor, que me guia. Se eu lavo mais as mãos, com mais cuidado, é por ter considerado o problema. Saber bem o que é uma doença e se precaver não implica em pânico. O pânico não é causa nem efeito do conhecimento sobre a doença. Mas, sim, esse conhecimento pode ser causa de modos de tratar a doença e os seus efeitos dão outra face à doença. Ao optar pela “coragem” vazia, você se nega a conhecer. Ao se negar a saber, você se nega a fazer da doença outra coisa.

Festa ou contrição? Churrasco ou lista das mortes? Primeiro reconheçamos que ambas têm o mesmo sentido, são disputas pelo afeto que deve guiar nossas ações. Em nome disso, mediocrizamos a ciência: seus prognósticos têm de ser muito aterrorizantes, de modo que façamos algo (e do outro lado surgem os que trazem dados científicos ou pseudo que são mais otimistas). Ainda aqui estamos presos na sensação. Não é preciso que seja o afeto a nos guiar. Podemos considerar o problema.

Acima de tudo, o mais pérfido dessa falácia do falso dilema medo X coragem é que ela finge resolver o problema no âmbito do indivíduo. Eu posso não estar dividido entre a audácia de quem mente pra si mesmo e um pavor que sem sabão não tem efeitos (o sabão, porém, sozinho tem consequências), mas eu posso considerar, ao mesmo tempo, como proteger a mim de forma razoável e como meus atos atingem outras pessoas. Assim, não precisa ser o medo a me deixar em casa: pode ser só saber que aumento a chance de que outros, desconhecidos ou entes queridos, adoeçam.

É possível ser corajoso pelos outros, pode a coragem de um pisar os outros? Aqui mais uma coisa que o falso dilema bolsonarista esconde: tudo parece se resolver no campo do indivíduo; se ele se sente “forte”, “seguro”, está tudo bem. Mas a escolha não é essa, assumir pessoalmente ou não os riscos; a escolha é: quero colocar outros em risco? Quero que a minha coragem aumente o medo e a morte? Afirmar a si pode ser poderoso em tempos de dúvida. Mas se afirmar não é tomar posse de você mesmo. Não é aprender a agir.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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