A Vida é Real e de Viés

destaque: Performance Involuntários da Pátria, em 2018, no FIAC Bahia | imagem: Isabela Bugmann

As repressões atuais podem parecer difusas, mas não menos reais e covardes do que as realizadas por ditaduras e fascismos clássicos. Se as formas de perseguição são outras, a sua natureza é a mesma. E, se essas formas são múltiplas, o combate também há de ser. Como combater o sentido de identidade nacional essencialista e a cruzada pela moral? Trata-se de uma pergunta-utopia?

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“Utopia” é um termo criado pelo filósofo Thomas More por volta de 1516. A principal obra desse filósofo, diplomata e escritor inglês carrega esse nome. O livro, apoiado no novo saber humanista, sustenta-se ainda na descoberta da América. More se fascina pelas narrações sobre as navegações de Américo Vespúcio, que o ajudaram a compreender que a América não era um lugar perdido na Ásia, mas um novo mundo, e cria, com “utopia”, uma justaposição de termos que significa “não lugar” ou “lugar que não existe”.

Recupero o período do descobrimento, a América e o “não lugar” para ligá-los à aula pública ministrada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro durante o ato Abril Indígena, nas escadarias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 20 de abril de 2016.

Três dias antes da aula pública, em 17 de abril, fora instaurado pelos deputados federais o processo de impeachment de Dilma Rousseff. A insanidade e violência das falas dos parlamentares prefiguravam o que viveríamos e escancaravam o golpe. O texto de Viveiros de Castro me fez lembrar que o golpe de 2016 começou em 1500 e, ao mesmo tempo provocou em mim o desejo de resistência.

Não podemos ser indiferentes nem mesmo neutros. Temos condições e devemos mobilizar o desejo de acolher novas personagens, incorporando suas pautas, marcas e alegrias. Muitos fizeram e fazem isso há muito tempo, mas a urgência atual nos exige muito mais pois estamos em guerra

Intitulado “Os Involuntários da Pátria” 1, o discurso de Viveiros de Castro acusa aqueles que se acham os donos do Brasil, a saber, a burguesia do agronegócio, o grande capital internacional e a otária fração fascista das classes médias e altas urbanas de prepararem uma ofensiva final contra os índios sob a forma, entre outras, da PEC 215 2, apoiados desavergonhadamente por um Estado que tem por obrigação constitucional proteger os índios.

De forma clara e contundente o texto em questão mostra a diferença entre índio, indígena e brasileiro. E a forma como os índios — os primeiros involuntários da pátria — foram transformados em pobres assim como os negros, para servirem ao sistema capitalista. Caiu-lhes sobre a cabeça uma pátria que não pediram e que só lhes trouxe humilhação, escravidão e despossessão.

Involuntários da Pátria no Sesc Ipiranga | Cacá Diniz

Esse texto continuaria reverberando em mim. Depois dessa experiência, passei o mês de junho no Campo Arte Contemporânea, espaço de residências artísticas criado pelo coreógrafo Marcelo Evelin e sua produtora Regina Veloso, em Teresina (PI). Lá conheci Fernanda Silva, artista de Parnaíba, litoral piauiense. Reconheci imediatamente nela a força que vem da terra quente em que vive e no seu corpo todos os povos involuntários: o povo negro, o povo indígena, o povo pobre, o povo LGBTQ. Transexual, Fernanda luta diariamente contra a ignorância conservadora de sua cidade, estado, país.

Quando a vi imaginei-a lendo a aula de Viveiros de Castro num púlpito, a exemplo do que fez o líder indígena Ailton Krenak diante da Assembleia Nacional Constituinte, há 30 anos. Minha intenção foi citar momentos históricos na construção e demolição desse país, reverberar e debater as acusações e reflexões apontadas na aula pública.

Fernanda engoliu o texto feito uma canibal.  O púlpito foi a margem do rio Parnaíba, onde gritou cada palavra com a urgência de uma vida cuja expectativa é de 33 anos no país líder no ranking de assassinatos de transexuais.

Devemos Produzir Diferenças

Fernanda subverte a soberania hegemônica. Afirma sua existência apesar de todas as coerções. Inteligente, forte, não se omite. A única da família com ensino superior, foi um professor respeitado antes da transição de Fernando para Fernanda. No dia que decidiu comprar o vestido amarelo que desejava minuto a minuto e que a vestiria como mulher que é, virou piada e alvo de agressões.

Nas nossas muitas conversas ouço seus sentimentos sem saber o que significa ser uma existência que é vista como uma deformação e uma afronta.

Em meio a tanta agressão se satisfaz por não precisar mais mentir. “Eu sou um corpo aberto e quanto mais aberta mais feliz”, diz ela.

Estamos no poder porque somos curadores, diretores, educadores, gestores, jornalistas e escolhemos quem entra e quem não entra, a quem e ao que damos visibilidade. Estamos no poder porque nossos corpos são poupáveis e não matáveis ou porque podemos ir e vir, comer e tomar banho quente todos os dias

Entre o eu e o outro, entre o artista e o fenômeno, entre o lugar que existe e o lugar que não existe, entre Fernando e Fernanda, há o espaço aberto, a possibilidade de compor uma nova via, o reconhecimento de uma realidade ignorada.

“Eu ainda não acessei tudo do meu corpo, é uma estrangeiridade de mim mesma. É como pensar por outro caminho, pensar pela sola do pé.”

Fernanda não traduz e não reproduz a convenção, produz diferença assim como toda arte que mereça esse nome. Corpo-fetiche para alguns, corpo-sem-sentido para outros.

Me faz pensar na moral sem sentido, proposta por Nietzsche, que diz respeito a uma posição pessoal. É a invenção do sentido de cada um e a responsabilidade de cada um sobre isso.

Diante da imposição de uma identidade nacional, a singularidade é um modo de enfrentá-la. Diante da falta de essência, a arte é uma forma de preenchê-la. Diante da produção da indiferença, produzamos diferenças. Diante da falta de liberdade de expressão, libertemos nossos pensamentos de estruturas hegemônicas.

Testemunha de Existências Mínimas

O que tem de liberdade no texto “Involuntários da Pátria”? É um chamamento e um protesto feito na escadaria da Cinelândia que não poderia acontecer entre muros de uma instituição ou não o teríamos ouvido.

Que liberdade há no Campo Arte Contemporânea? Um lugar de criação e de insurgência. Foi lá onde criamos a performance Involuntários da Pátria com um corpo real e de viés.

O que há de liberdade na Fernanda? A afirmação de uma forma de vida, de uma libido, de uma estética corporal, de uma posição pessoal.

Quanto a mim, nos termos do filósofo Etienne Souriau, a liberdade de testemunhar existências mínimas.

Todos Nós que Estamos no Poder

Todos nós brancos que estamos aqui estamos no poder, não somente os políticos, a polícia, o exército, a elite econômica. Estamos no poder porque somos curadores, diretores, educadores, gestores, jornalistas e escolhemos quem entra e quem não entra nos projetos sob nossas responsabilidades, escolhemos a quem e ao que damos visibilidade. Estamos no poder porque nossos corpos são poupáveis e não matáveis ou simplesmente porque podemos ir e vir, comer e tomar banho quente todos os dias.

Há uma demanda do mundo hoje que recoloca várias questões e conceitos, inclusive o de liberdade.

Se, de um lado a liberdade nos é tolhida pelo governo atual e a onda conversadora que ele carrega (ou pela onda conservadora que carrega o governo atual), de outro há um caminho que o próprio limite aponta.

O outro não está mais invisível, isso não tem volta e talvez essa seja a única força com a qual podemos contar e a única vitória a comemorar. Mas eles-nós ainda correm-corremos muito perigo

Os que estavam ocultos por uma hegemonia crônica nos convocam a fazer uma aliança com a liberdade deles e isso nos liberta também. Nos liberta da ordem unicista, da estrutura de pensamento imperial, da cegueira de não enxergar ou aceitar outras vidas. Não podemos ser indiferentes nem mesmo neutros. Temos condições e devemos mobilizar o desejo de acolher novas personagens, incorporando suas pautas, marcas e alegrias. Muitos fizeram e fazem isso há muito tempo, mas a urgência atual nos exige muito mais pois estamos em guerra.

O Rio de Janeiro com Wilson Witzel tem recorde de mortes em confrontos com a polícia: cinco por dia — mortes que fazem parte de um programa maior de genocídio do povo negro; em julho desse ano o desmatamento na Amazônia cresceu 278% em relação a julho de 2018; indígenas e líderes rurais são brutalmente assassinados como no conflito Wajãpi; desempregados e refugiados são entregues ao abandono; uma mulher é morta a cada duas horas vítima de violência enquanto uma portaria publicada em 19 de agosto no Diário Oficial da União extingue seis órgãos de combate à violência contra a mulher e minorias; o Estado destrói, mesmo que seja preciso matar, todo projeto de luta pelo bem comum, como é o caso do Movimento Sem Terra (MST).

O cerco e a censura à arte e a educação são partes da estratégia de inibir a compreensão e o debate sobre o que está acontecendo e sobre o que somos. Tudo o que está acontecendo nesse país e no mundo somos nós.

Reconhecer e Nutrir a Mudança

Há vitórias também. Uma chama-se Erica Malunguinho. Negra, nordestina, primeira deputada estadual trans na história legislativa de São Paulo. Essa mestra em estética e história da arte entende sua eleição como um “processo de reintegração de posse para negras, negros e indígenas”.

A produção intelectual, cultural e artística do povo negro está muito mais tangível para os que estão do outro lado do muro. Conheci uma professora negra de São Paulo que nunca teve professores negros e hoje dá aulas para uma classe inteiramente branca! Isso seria impossível 30 anos atrás.

E o carnaval, essa arrebentação do povo, essa vitória popular. Lembremos da extraordinária e vital apresentação da Mangueira este ano mostrando com muita beleza tudo aquilo que esse Estado quer que esqueçamos.

Esses são alguns exemplos dos muitos que estão acontecendo. Nos cabe reconhecer e nutrir movimentos de mudança, reconhecer e afirmar tudo que pode gerar uma nova forma de pensar, sentir, fazer.

O outro não está mais invisível, isso não tem volta e talvez essa seja a única força com a qual podemos contar e a única vitória a comemorar. Mas eles-nós ainda correm-corremos muito perigo.

Involuntários da Pátria, em 2018, no FIAC Bahia | imagem: Isabela Bugmann

A Obra de Arte como Ato de Justiça

O filósofo David Lapoujade, em aula recente ministrada em São Paulo, postula que artistas são advogados de realidades que até então não tínhamos percebido. O artista-criador conduz às formas que estão em nós e, nesse sentido, a forma que a arte atinge nos justifica.

Quanto a nós público, nos vemos justificados como testemunhas. E, a obra de arte, em qualquer forma que assuma, se torna um ato de justiça 3 — e de liberdade, proponho acrescentar.

É essa liberdade e justiça o que se quer reprimir e essas “reintegrações de posse” o que se quer evitar, a todo custo, em tempos conservadores.

A arte que nos justifica não é o entretenimento escapista, mas a que nos ajuda a ver e viver esse desconforto, a senti-lo, movê-lo e pensar-inventar coletivamente a partir dele. Uma arte contra a autoverdade, contra a fuga individual e a favor do comum.

***

Texto apresentado na mesa Liberdade da Arte em Tempos de Conservadorismo, do simpósio Cuidado, Arte!, realizado no Goethe Institut de Porto Alegre, em julho de 2019. Atualizado e complementado para esta publicação. O título é uma frase da música Quereres de Caetano Veloso.

 

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