A figura do Mal na política e a história que não é nem tragédia nem farsa

O que explica que Bolsonaro fale tranquilamente de Hitler é o mesmo que explica porque a esquerda não conseguiu entender o que foi dito

“O diabo é um dispositivo que forma comunidades (une pelo medo do que é externo), impõe disciplina (tenho também de ver a nova roupa do rei) e gera quietismo” | imagem: Christopher Sessums

“Presidente, quando a história, né, de Hitler, a gente via muito a questão que ele começou com as crianças. No caso aí, o senhor acha que o nosso Ministério da Educação já poderia estar também fazendo um trabalho com as crianças pra gente voltar a retomar, né, a consciência, a conscientização, né?”. Um vídeo em que um apoiador de Jair Bolsonaro faz essa pergunta viralizou em novembro. Soou como evidência anedótica do quanto o bolsonarismo seria um nazismo (ou um fascismo), até porque o presidente responde naturalmente (que não podia fazer nada). Mas nem o apoiador sugeriu que fossem seguidas práticas de Hitler nem Bolsonaro respondeu que vinha sendo difícil aplicar Hitler.

Sim, se a gente segue linearmente as palavras, se acompanha as frases pelo seu valor de face, foi isso mesmo que disseram. Porém, com um olhar mais capaz de aferir contextos e com uma sagacidade em torno de como pensam os bolsonaristas e os seus afins, vemos de pronto que não foi isso que disseram. A convicção de saber tudo, a ignorância sobre outros quadros de interpretação e a inabilidade em traduzir segundo os valores alheios aponta problemas da nossa capacidade de fazer política. Retomemos então a cena, agora um passo antes: Bolsonaro comenta algo sobre linguagem neutra e o apoiador diz:

“Presidente, quando a história, né, de Hitler, a gente via muito a questão que ele começou com as crianças. No caso aí, o senhor acha que o nosso Ministério da Educação já poderia estar também fazendo um trabalho com as crianças pra gente voltar a retomar, né, a consciência, a conscientização, né?”.

O que parece que ele diz é: Hitler começou a trabalhar com as crianças, então devemos começar com as crianças para atingir o mesmo domínio que ele teve; o instrumento para isso pode ser o Ministério da Educação. O movimento natural é perguntar: que é que isso tem a ver com linguagem neutra, como continua a conversa? Simples: ele assimila as propostas de linguagem neutra à Hitler, um elemento do que ele certamente deturpa com o termo “ideologia de gênero”. Hitler, aqui, é a esquerda: é ela quem teria “começado com as crianças”, propondo linguagem neutra nas escolas. O apoiador reage a isso.

Essa é, de fato, uma das lutas imaginárias do bolsonarismo. Mais cedo em novembro (e talvez por isso fosse esse o tema do presidente no vídeo), foi contestado no Supremo Tribunal Federal um projeto de lei do deputado estadual e sargento Eyder Brasil (PSL), de Rondônia, que proíbe a linguagem neutra no sistema de ensino do estado (o STF está votando). Não se trata de uma confissão de nazismo em plena luz do dia, apesar do quanto isso cai bem com as nossas expectativas. Aliás, estando informados, teríamos de nos lembrar que essa direita busca há mais de cinquenta anos assimilar o socialismo ao nazismo, inclusive com projeto de lei feito pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro. Como elogiariam Hitler?

Diante da teoria da conspiração da vez, portanto, o apoiador questiona, simplesmente: “Rei do gado, será que não dá pra usar o Ministério da Educação para barrar esse processo?”. Sem hesitação, Bolsonaro, como sempre, tira o corpo fora:

Você não consegue… é um transatlântico. Tem ministério que é um transatlântico. Não dá pra dar um cavalo de pau. Eu gostaria de imediatamente botar educação moral e cívica, um montão de coisas lá — coisas boas!

É importante perceber que Bolsonaro saca imediatamente o que foi dito. A pergunta foi feita de forma truncada, porém isso não gera problema de comunicação. Eis aqui um dado que ajuda a entender por que funciona o bolsonarismo, como 20% do Brasil se mantém ferreamente sob um projeto de morte, mentira, fracasso econômico e incapacidade administrativa. Há um saber entender e há uma fala simples e convincente (a metáfora do transatlântico1 me soa como um achado da retórica do Lula). Nós ouvimos esse apoiador e o acusamos de cúmplice do nazismo. Bolsonaro pegou na hora o que ele disse.

E o que responde? Não que se deve criar a Juventude Bolsonarista ou um código que ponha os filhos até contra os pais — fala de retomar a “educação moral e cívica”, matéria vigente durante a Ditadura — há nostalgia, mas o ponto focal é 1964.

Veja também:
>> “Minha Vida em ‘Escolas sem Partido’: 1984-2017′“, por Henrique Milen
>> “A ‘História sem Partido’“, por Primo Deusdeti

 Pensar pela ótica da figura do Mal é apolítico

O que explica que o apoiador fale de Hitler para se referir, tudo indica, a quem propõe a linguagem neutra, é o mesmo que explica porque a esquerda não conseguiu entender o que está sendo dito. Lá e cá se pensa sob a figura do Mal.

Uma ideia famosa se parece com a que estou tentando dizer: Leo Strauss, filósofo político, cunhou a falácia “reductio ad Hitlerum“, ou “redução a Hitler” (batizada em analogia a outra estratégia danosa de argumentação, a “redução ao absurdo“), para nomear a facilidade de anular uma prática, posição ou corrente política assimilando-a ao nazismo. Como se passa com a falácia genética, isso dribla a necessidade de debater: o outro não se legitima como adversário. A princípio, podemos admitir o recurso – “ora, são nazistas mesmo!” – mas é uma faca de dois gumes: a direita não fala de “feminazis” por acaso…

Por outro lado, a desgaste e a ineficácia das acusações de fascismo e nazismo têm sido apontadas há muito tempo: George Orwell, homem de esquerda2, apesar das suas críticas à URSS no romance 1984, já falava sobre isso em 1944. Tudo se passa como na fábula de Pedro e o Lobo: o menino, tendo mentido, não foi acreditado quando veio mesmo à vila uma fera… Mas quero tratar de outro aspecto da questão. Não das deficiências retóricas3, mas de como o seu uso pode depender de um trava, um filtro do olhar.

A figura do Mal, como eu disse. Hitler é a figura do Mal para ambos os espectros da política. Há, sim, neonazistas e há, sim, certa direita que mobiliza os signos do nazismo (do que, no Brasil, Filipe Martins e Roberto Alvim parecem ser exemplos), mas, no geral, Hitler é o símbolo da negatividade. Essa percepção é a mesma que se produz em torno de Stalin. Assim, ambos são apenas nomes para um ícone amorfo que mistura poder ilegítimo, crença irracional e ética não-natural. Ao observar a política, decodifica-se o que se percebe como traços de ilegitimidade, irracionalidade e anormalidade por dois caminhos: ou como a mesma sombra pretérita que ressuscita ou como algo da mesma espécie que nasce. A conclusão: não pode haver o novo. Há nisso tudo uma vontade de saber tudo sem precisar compreender; e há uma vontade de veto a priori.

Hitler/Stalin vale pelo termo “demônio”; em outras épocas se diria Lúcifer, Belzebu4, e os sinais satânicos, assim que indicados à sociedade por quem construiu o poder de definir o que é ou não é maligno, seriam imediatamente claros e distintos, tão de saída inequívocos que quem não seja capaz de notar isso se torna suspeito e sujeito à coerção. O diabo é um dispositivo que forma comunidades (une pelo medo do que é externo ao grupo) e impõe disciplina (se todos veem, tenho de ver a nova roupa do rei).

Além disso, na medida em que o futuro é sempre só o passado, gera quietismo. Não há perigos novos — apenas os Hitler e Stalin do mundo seguirão ressurgindo como zumbis de filme de ação —, não há o que aprender, basta relembrar (sempre somos arrogantes: “Vocês não leem livros de história!”, como se a história soubesse sequer o que vai acontecer quinta que vem). A figura do Mal nos aquieta também porque seríamos aqueles que sabemos o que é o Mal, que mantivemos nossas lâmpadas acesas (há algo religioso aí…). Não é isso o que dizem frases do tipo: “A história não vai perdoar isso”? Estamos do lado histórico certo! No futuro, todos terão essa certeza. Ok, e daí?

Lá a direita e cá a esquerda, nessa história do vídeo, podem ser figurados por aquele meme do Homem-Aranha que aponta outro Homem-Aranha: a esquerda, que enxerga, antes do bolsonarismo e do nazismo, o Mal5, intui sem sombra de dúvidas que um bolsonarista sugeriu lançar a Pátria Educadora Nazista; a direita, que antes de ver que a linguagem é política e que o seu gênero envolve construção e natureza, vê o Mal, denuncia que se escrevermos “menine” em pouco tempo os gulags estarão instalados em Copacabana. E é importante notar como, do outro lado do dispositivo diabo, se coloca algo como uma novidade – o entendimento do que é o bolsonarismo e de como captou tantos brasileiros, para uns, o entendimento de como o mundo é mais complexo do que meia dúzia de costumes, para outros. No fim das contas, são perdas de mundo.

É preciso recuperar um pensamento político da novidade

Falamos do perigo da “volta” de nazismo e fascismo (e a direita da “volta” do comunismo), mas nada disso vai “voltar”. A história não se “repete” nem como tragédia, nem como farsa. A história não se repete. Temos quadros de interpretação e classificamos os eventos de acordo com as coisas que conhecemos; queremos e temos de prognosticar e prognosticamos – mas com base, de fato, em nada. Isso não é exatamente um erro. É claro que existem atores que persistem no tempo ou que conseguem gerar análogos a partir do seu legado; é claro que há disposições de quem está no poder e comportamentos das massas que geram problemáticas semelhantes a casos acontecidos; é claro que a mobilização da história é parte fundamental da prática política. O que critico é o passado tornado única arma e bandeira.

Única arma, porque se credita a certas descrições de eventos históricos um poder de persuasão e concretização política decisivos, ou seja, basta lançar as cartas do fascismo e do nazismo para que, como quando batemos na madeira três vezes, algo aconteça — não temos de lutar, basta soar o alarme, e alguém vai escutar, e alguém vai fazer alguma coisa, a mesma coisa, qual coisa? e tudo vai ficar bem. Na melhor das hipóteses, temos alguns ditames políticos a perseguir e cremos que a ameaça que anunciamos é suficiente para mobilizar as pessoas em torno deles. Quando o inimigo avança, quando as pessoas não vem, ficamos rendidos. Eles não percebem? A história me dará razão…

Única bandeira, porque se constitui aí uma miopia das perspectivas políticas: se o que nos resta é evitar o passado (conter o fascismo, conter o nazismo), estamos sempre acuados, fazendo a manutenção das coisas como estão pelo pavor de algo pior, contentando-se em negar, sem cultivar a capacidade de afirmar. Com Espinoza e Nietzsche, poderíamos pensar essa ideia no sentido de uma dinâmica dos afetos: estamos reduzidos a sentimentos recessivos, quando deveríamos desenvolver aqueles que aumentem ou busquem aumentar nossa potência. Creio que talvez seja necessário, assim, construir um pensamento político centrado, guiado pela novidade6. Onde, agora, o novo?

Um caminho para se educar nesse sentido, me parece, pode estar em se deixar afetar pela diferença. Há novidade na diferença — novidade que queima, que atordoa; que, de tão funda, faz com que alguns atochem passado nela até não haver mais novidade. Há novidade na visão sobre o corpo trazida pelos estudos sobre gênero e nas múltiplas vivências que se fazem ouvir nesse campo — e há um fechar de olhos, um enfiar a cabeça na terra de avestruz, por parte dos bolsonaristas: querem que o mundo seja menor, querem que todos sejam só no círculo em que eles se estabelecem. Há novidade nessas novas direitas, desde a sua influência nas classes populares até a sua estrutura ética e potência revolucionária. Podemos nos dar ao luxo de não entender o que se move aí, à beira de 2022, ainda mais uma vez?

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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