Ricardo Reis: Estoicismo ou Thelema

O tema da vontade talvez revele traços da filosofia thelêmica nas Odes desse heterônimo de Fernando Pessoa

A relação entre o destino e a vontade é um tema recorrente na obra poética de Fernando Pessoa, especialmente em poemas de seu heterônimo Ricardo Reis, que teria nascido em 1887. Percebemos que repercute nas obras de Reis sua formação clássica, recebida em colégio de jesuítas, através de sua linguagem erudita e de constantes referências mitológicas.

Em seus poemas, há duas vertentes no tratamento da liberdade e da vontade. Vejamos as Duas Odes, escritas em 19/11/1930. A primeira nos mostra uma visão do controle da própria vontade, como forma de se libertar das próprias paixões, adaptando-a à vontade dos deuses ainda que esta nos oprima. A segunda nos incita a cumprirmos apenas nossa própria e verdadeira vontade, não nos sujeitarmos a vontades alheias, sermos nossos próprios filhos e, portanto, nossos próprios pais, obedecendo apenas a nós mesmos:

Quer pouco, terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria. Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és. Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto. Sê teu filho.

Discípulo de Alberto Caeiro, Ricardo Reis busca atingir o equilíbrio clássico por meio de antigas doutrinas filosóficas gregas, dentre elas o estoicismo. Criado pelo filósofo grego Zenão de Cítio no início do século III a.C., o estoicismo pretendia a libertação dos sentimentos destrutivos a partir do autocontrole, por meio do que o ser humano atingiria o equilíbrio e se encontraria com a virtude e com sua própria Natureza. A virtude é considerada como um desejo que esteja de acordo com a natureza, e assim, não mais escravizado por suas próprias paixões, o homem exerceria sua liberdade. A relação entre a vontade humana e o determinismo divino também é crucial no pensamento estoico, pois o homem devia adaptar sua vontade à divina, ou ao destino, para atingir a felicidade e adequar-se ao mundo, vivendo conforme a natureza. É na conformação ao destino, portanto, que está a liberdade humana, conforme vimos na primeira Ode e vemos também nesta, mais antiga do que a anterior, escrita em 16/10/1914:

Anjos ou deuses, sempre nós tivemos,
A visão perturbada de que acima
De nós e compelindo-nos
Agem outras presenças.
Como acima dos gados que há nos campos
O nosso esforço, que eles não compreendem,
Os coage e obriga
E eles não nos percebem.
Nossa vontade e o nosso pensamento
São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem
E nós não desejamos.

Nesta ode, a vontade é diferente do desejo. A vontade seria um mecanismo externo, o mesmo que a vontade divina, que coage o homem a agir conforme o destino, ainda que contra seu desejo.

Outra filosofia, certamente influenciada pelo estoicismo e outras doutrinas ocidentais e orientais, é a Thelema. Pessoa teve contato com essa doutrina através das obras do ocultista inglês Aleister Crowley. As relações entre ambos são conhecidas: Pessoa corrigiu o mapa astral do ocultista, que, ao tomar conhecimento do fato, interessou-se em conhecer o português, chegando a ir encontrá-lo em Portugal. Pessoa, além disso, traduziu o poema “Hino a Pã” de Mestre Therion/ Aleister Crowley, tradução publicada em outubro de 1931 em Presença. Há, inclusive, as especulações em torno da misteriosa fotografia descoberta pelo pesquisador Marco Pasi, que retrata Crowley jogando xadrez com uma figura que muitos acreditaram ser Fernando Pessoa, mas que o pesquisador William Breeze concluiu, posteriormente, tratar-se de R. A. Starr, membro da Ordo Templi Orientis, ordem liderada por Crowley.

Aleister Crowley jogando xadrez com R. A. Starr, que muitos acreditaram tratar-se de Pessoa

O nome Thelema vem do grego e significa Vontade. A doutrina foi sistematizada e apresentada no Livro da Lei ou Liber AL Vel Legis, de Aleister Crowley, escrito entre os dias 8, 9 e 10 de abril de 1904. Os dois princípios básicos da Lei de Thelema são: “Faze o que tu queres, há de ser o todo da Lei” e “amor é a Lei, amor sob vontade”, que seriam os preceitos para o novo Aeon, ou o novo ciclo de evolução vivenciado pela humanidade, que duraria até aproximadamente o ano 3900.

Uma leitura superficial poderia nos levar ao pensamento de que a obra prega um hedonismo e uma permissão para a satisfação de qualquer capricho humano, mas a filosofia ali presente mostra justamente o contrário. A liberdade humana é cultuada, pois “todo homem e toda mulher é uma estrela”, o que atesta o caráter divino do ser humano e, consequentemente, a responsabilidade individual sobre cada um de seus atos, já que não haveria deuses para julgá-los. A doutrina defende o autoconhecimento para a descoberta de sua Verdadeira Vontade, ou seja, o propósito de sua vida. A vontade do ser humano seria, portanto, uma parte da vontade divina.

A semelhança entre o estoicismo e a Thelema é evidente, mas com uma principal diferença: para os estoicos, há um fatalismo decorrente da sujeição ao destino, ou aos deuses, passando inclusive pela adaptação da vontade humana à vontade divina. Há um certo conformismo. A Thelema, por sua vez, prega que a única lei consiste em se fazer o que quiser, descobrir qual é a sua verdadeira vontade, diferente da vontade leviana ou dos caprichos, mas o propósito mesmo de sua existência, para encontrar seu lugar no cosmos. Não há, aqui, deuses para condenar e, embora a verdadeira vontade seja parte da vontade divina, não há uma sujeição, mas completude. Há, entretanto, o paradoxo da Liberdade, pois a autonomia da Vontade depende, ao mesmo tempo, da sujeição de todos os nossos esforços àquele objetivo único.

Assim, embora já se tenha afirmado a ausência das doutrinas thelêmicas na obra de Fernando Pessoa, percebemos duas vertentes na abordagem do tema da Vontade e do destino. Nos poemas de Ricardo Reis, em que a presença da temática da Vontade é sempre associada à inspiração grega do heterônimo e ao estoicismo, é perceptível uma certa revolta velada contra essa sujeição da vontade humana à divina defendida pelo estoicismo. Está ali, portanto, o cerne da Thelema que, mesmo se não tiver sido a doutrina motivadora desse aparente paradoxo – um helenista influenciado pelo estoicismo a questionar um postulado estoico –, sabemos que foi conhecida e estudada por Pessoa, o que já poderia, talvez, justificar caminhos em que se divide a Vontade no pensamento de Ricardo Reis:

Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre – sem dita nem desdita.
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.

A quem deuses concedem
Nada tem liberdade.

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