Um homem, uma mulher: o cinema, o amor e o tempo

O que Lelouch nos mostra é que a vida deve valer, sim, mais do que a arte, mas apenas a arte pode captar este valor superior da vida

“É preciso saber que nunca somos um sujeito amoroso, estamos, isto sim, sujeitos à potência do amor. (…) É preciso reinventar o amor; é isto, pois, o que faz cinema.”

Esta certamente não é a maneira mais adequada de se iniciar um artigo. No entanto, é preciso algumas vezes transgredir as regras da impessoalidade do discurso analítico para deixar falar a espontaneidade de certas impressões que de outro modo perderiam completamente seu frescor (e sentido). Assim, peço licença ao leitor por um momento para explicar como cheguei ao objeto que aqui pretendo abordar. Na verdade, em algum momento entre os últimos dias do ano que passou e os primeiros que dão conta deste que alvorece, recebi o convite para colaborar com este periódico que o leitor tem agora diante de si. Aceito o convite, passei outros momentos mais divagando a respeito do assunto que deveria tratar. Como é comum, mil coisas nos passam pela cabeça, mas nenhuma parece suficientemente boa para que dediquemos a ela o esforço imponderável de deitar tinta sobre o papel; assim se instala então a indecisão e o adiamento indefinidos, afinal amanhã parece sempre um dia mais propício para a execução de tal tarefa. Os tempos modernos, a vida sob o regime do capitalismo tardio (seja lá o que isso signifique) e sua inconfundível (sub)literatura descobriram uma palavra formidável para resumir este estado de espírito: a procrastinação. É inacreditável como a cruzada contra a procrastinação constitui, hoje, algo amargamente análogo ao que no passado se conheceu como um movimento literário. Segundo nos informam também os programas televisivos de variedades, é preciso expulsá-la de todos os âmbitos de nossa vida, para assim controlarmos de maneira conveniente nosso tempo e torná-lo absolutamente produtivo. Obviamente, nada pode ser mais falso. Quando se pensa em escrever algo, creio que é preciso abandonar a atenção, por algum tempo, a seu próprio ritmo de flutuação; deixar-se afetar pelos objetos pelos quais passamos até que algum deles, pela força especial com que nos toca, arrebate a consciência e faça nascer nela a necessidade de debruçar-se sobre ele para então compreendê-lo. Foi dessa maneira que Un Homme et une Femme (1966), obra-prima de Claude Lelouch, acabou chegando até mim.

Sua fotografia de inexprimível delicadeza utiliza-se habilmente da oscilação entre P&B, sépia e technicolor para criar imagens e ambientes sensorialmente instáveis; o jogo sutil das luzes e das sombras faz surgir uma atmosfera em que as nuvens cinzentas da melancolia se amalgamam com linhas cintilantes de um universo onírico, criando assim um halo poético no qual se cristalizam e dissolvem as paisagens e os sentimentos que envolvem as personagens. A trilha sonora de Francis Lai, embalada pela versão francesa de Samba da Benção (Baden Powell e Vinícius de Moraes), representa um espetáculo à parte cuja beleza por pouco não iguala a de Anouk Aimée. Isto já seria suficiente para fazer de Un Homme et une Femme uma película verdadeiramente encantadora. Mas a altivez de Aimée, superando todo o resto, mais do que nunca faz valer a máxima de Auriol, segundo a qual: “O cinema é a arte de se fazer criar belas coisas para belas mulheres”.

A intriga é das menos inspiradas, quase banal: um homem e uma mulher se conhecem, se reencontram e então se desencontram. Tal como pode acontecer na sua vida, na minha e na de qualquer pessoa.  Jean-Louis Duroc (Jean- Louis Trintignant), piloto de automobilismo, e Anne Gauthier, roteirista de cinema, são viúvos e se conhecem por acaso ao visitarem seus filhos, Antoine e Françoise, que estudam num mesmo colégio interno. A partir daí, eles se aproximam, se interessam um pelo outro, contam suas histórias através dos chuvosos e intermináveis quilômetros que separam Paris de Deauville (cidade em que fica o colégio) e, por fim, numa cama de hotel, se perdem um do outro graças a presença ainda marcante do falecido marido de Anne em sua vida. O essencial, entretanto, para Lelouch, não está na complexidade da trama, mas na maneira de transformá-la em um espetáculo sensorial. A imensa maioria de nós pode estar neste momento trazendo à mente, talvez com alguma nostalgia, a imagem de um amor perdido, de uma possível felicidade desperdiçada, mas o grande mérito de Un Homme et une Femme é ultrapassar esta simples associação do prazer nostálgico de uma felicidade que, apesar de anunciada, não soube se concretizar e alcançar a beleza que está por trás do próprio fato da não-realização.

Isto, entretanto, contradiz um dos dialogos mais reflexivos de todo o filme. Passeando pela praia com seus filhos, Anne e Jean-Louis avistam um velho homem caminhando ao lado de seu cachorro. Ela exalta a beleza da cena, comenta como ambos caminham de modo semelhante; Jean-Louis, então, lembra um pensamento de Giacometti. O escultor costumava dizer que se em meio a um incêndio estivessem em perigo um Rembrandt e um gato e só lhe fosse possível salvar um deles, escolheria o gato só para depois deixá-lo partir. Quer dizer, a vida não deve sucumbir à arte. Entre a arte e a vida, a última seria a escolhida. O curioso, porém, é que o alcance da lição vem justamente por meio do cinema, isto é, da arte, e não da vida. De certa maneira, o que Lelouch nos mostra é que a vida deve valer, sim, mais do que a arte, mas apenas a arte pode captar este valor superior da vida. Somente assim se pode explicar como a intriga banal pela qual um casal se une e depois se separa acaba por converter-se em um fabuloso ensaio sobre as relações amorosas.

Jean-Louis vai à Monte Carlo participar de um Rally que Anne acaba acompanhando pela TV. Até este momento, apesar de estarem flertando, eles são ainda algo como “apenas amigos”. Ela, então, envia um telegrama a ele: “Bravo! Eu te amo! Anne”. Recebido o telegrama, Jean-Louis abandona imediatamente o jantar de encerramento da competição e dirige durante toda uma noite a seu encontro. Num crescendo, que marca uma das mais belas sequências da história do cinema, ele chega à praia de Deauville e pisca os faróis do carro para chamar a atenção dela, que lá se encontra com as crianças. Pouco a pouco, um suave delírio em sépia revela a imagem de seus corpos entregues um ao outro no movimento de imersão que é próprio a uma cama. Todo o som se desvanece, restando apenas o ruído advindo do contato entre as superfícies corporais que revela toda uma música sagrada que nasce de tal encontro. Assim como em Valéry, também em Lelouch, “o mais profundo é a pele”. Anne, no entanto, parece presa a um passado. O desolado “Por que?”, balbuciado por  Jean-Louis, tem como resposta um marido falecido. Ela resolve partir de trem. Ele segue em seu carro e chega à Gare Saint-Lazare antes dela, a espera no desembarque e então eles se abraçam ternamente.

Felizes para sempre? Difícil dizer. Durante um dos diálogos, alguém afirma que quando não levamos algo a sério dizemos que é como no cinema, como em um filme. Certamente, o final feliz seria simplesmente coisa de cinema. Mas a questão persiste: Anne e Jean-Louis tem por volta de 30 anos, cada um deles tem um filho e buscam reconstruir suas vidas após a morte precoce de seus parceiros. A vida, então, resolve fazer com que seus caminhos se cruzem. Ela manda um telegrama dizendo “Eu te amo”. Ele atravessa o país para encontrá-la. Ora, por qual inexplicável motivo não ficariam juntos? A resposta é simples: a vida. “Eis um homem e uma mulher”, afima Deleuze, comentando Fitzgerald, “eis casais que tem tudo para serem felizes, como se diz. (…) E depois alguma coisa se passa, fazendo com que eles se quebrem exatamente como um prato ou um copo”. Os caminhos da vida, chamemo-los ou não de destino, como sabemos, são caprichosos. E estes caprichos, geralmente, atendem por um nome: Tempo. Perguntado a respeito do desfecho, Lelouch afirmou que dali 20 anos voltaria à Cannes com uma resposta.

Todos conhecemos a famosa sequência final de O Leopardo, de Visconti. A cena do baile que deve selar o acordo entre os velhos e os novos tempos. “É preciso que tudo mude para que as coisas fiquem como estão”. Burt Lancaster, o príncipe de Salina, sela o acordo em uma dança com a belíssima Claudia Cardinale, filha de um burguês rico, que se casará com seu sobrinho, interpetado por Alain Delon, para garantir alguma estabilidade em um mundo que está prestes a desmoronar. Enganam-se aqueles que encontram aí apenas a exposição da degradação histórica de uma classe. O Leopardo funda, na verdade, um modo de compreensão do tempo. A associação com a burguesia ascendente, revela ao príncipe, interpretado por Lancaster, que é tarde demais para a aristocracia; que as coisas não ficarão como estão. Mas, mais que isso, o tarde-demais não marca apenas o crepúsculo de uma classe, mas também o de um amor impossível. A imponência do casal formado por Lancaster e Cardinale na dança final, a maneira como ela se atira em seus braços e lhe revela discretamente a mais afetuosa admiração é a marca definitiva de uma decadência que pode ser significada pela ideia do tempo como aquilo que chega tarde. Lancaster e Cardinale são o verdadeiro “par romântico” de O Leopardo, mas eles estão fendidos, eternamente separados pela forma do tempo. Em outras palavras, é tarde demais para eles, assim como para a vida.

Em Lelouch, há algo próximo, mas também avesso, a esta invenção de Visconti. Conforme prometido, o diretor reúne novamente Aimée e Trintignant e nos apresenta a conclusão do encontro/desencontro vivido em 1966. Em 1986, chega aos cinemas Un Homme et une Femme 20 ans déjà. Não houve final feliz. Eles não ficaram juntos e pouco tempo depois, com a saída da filha de Anne do colégio em Deauville, deixaram de se ver. Agora uma poderosa produtora de cinema, Anne Gauthier, após um fracasso de bilheteria, resolve procurar Jean-Louis e lhe pedir autorização para transpor ao cinema a história que viveram no passado. Vinte anos pode ser muito tempo. Mas, conforme o planejado (porém impossível) em Visconti, Anne e Jean-Louis mudaram competamente para que permanecessem os mesmos. Agora por volta dos cinquenta anos, eles se sentam novamente à mesa para falar, por meio de sua relações com os respectivos parceiros, da tímida e apaixonante atração que, entre eles, ainda persiste. Daí em diante, assistimos a uma impressionante aula de cinema. A aventura de 1966 é revisitada diretamente por flash-backs memorialísticos que se misturam ao  presente, e, ao mesmo tempo, por sua reconstrução indireta na forma do musical em que Anne pretende transformar a história do passado. Muito mais sofisticado do ponto de vista do enredo, o segundo filme certamente perde em parte a inocência e a simplicidade que faziam o charme do primeiro, mas tem a vantagem de revelar nada menos que uma nova síntese do tempo.

Utilizando uma fórmula de Peter Szondi, a respeito da filosofia de Walter Benjamin, diríamos que Un Homme et Une Femme 20 ans déjà é perpassado pelo sentimento encantador de uma “esperança no passado”. Mas os traços deste reencontro não devem ser revelados como uma associação nostálgica à juventude de cada um. O tom da nova aproximação é como o de uma retomada imediata. Como se, ignorando completamente a força destruidora das horas e dos dias, o amor voltasse a crescer desde o ponto em que havia estacionado vinte anos antes. Por uma série de questões que não vale a pena levantar aqui, o filme que toma lugar dentro do segundo filme e que é uma espécie de desconstrução do primeiro, acaba naufragando. Devemos nos lembrar de que a vida é mais importante que a arte. A história de Anne e Jean-Louis não poderia se tornar um filme, simplesmente porque ela ainda não havia acabado.

Há duas grandes lições a serem tiradas destes dois grandes filmes. A primeira, como diz uma das canções da trilha sonora, consiste  no fato de que “o amor é bem mais forte do que nós”. É apenas por uma limitação, advinda do caráter grosseiro da linguagem, que dizemos frases como: “Eu amo”, “Eu sou amado”. Pois o amor dificilmente pode ser encarado como uma ação a ser praticada voluntariamente. Na verdade, Lelouch nos ensina que somos tomados pelo amor; é o amor que passa por nós, que toma vida por meio de nossos espíritos e corpos, e não o contrário. Como um genuíno delírio dos deuses, o amor  nos faz atravessar estradas tarde da noite, enviar telegramas desajeitados, etc… Mas, é preciso saber que nunca somos um sujeito amoroso, estamos, isto sim, sujeitos à potência do amor. Muitas vezes, o apego à vida como uma forma individual nos oferece a falsa idéia de que somos nós que amamos ou deixamos de amar, mas a verdade é que o apego de Anne à sua história pessoal (a lembrança da morte recente do marido) revela-se um modo de interrupção do devir-amoroso entre ela e Jean-Louis. Este amor, então, se vê sem possibilidade de efetivação, mas nem por isso ele deixa de ser real e de exercer sua potência.

E aqui se abre a segunda lição: o amor de Anne e Jean-Louis permanece vivo aguardando por um tempo no qual ainda não seja cedo-demais. Em Un Homme et une Femme, conhecemos o tempo como o cedo-demais. Anne e Jean-Louis se racham e se separam porque era cedo-demais para seu amor. Eles não estavam prontos um para o outro. É preciso que vinte anos se passem para que o amor, agora, possa instalar-se. Lelouch mostra que o tempo, com sua força de corroer o futuro e tranformá-lo em passado, pode ser também a potência que engendra o passado no presente, construindo assim o momento singular em que os amantes estão prontos, não simplesmente um para o outro, mas para o amor como o mais sagrado dos acontecimentos. É preciso reinventar o amor, já dizia Rimbaud, é isto, pois, o que faz cinema.

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