Daniel Murray: Se há sombras aqui, são do amor

“É preciso maturidade para se deixar mimetizar a um compositor, e Daniel Murray aqui se iguala a Tom Jobim em sabedoria artística”

Quando se pensa em Tom Jobim, piano, flauta e orquestra logo vêm à memória. No entanto, o compositor também tocava violão – foi mesmo obrigado a fazê-lo ao entrar no mercado musical estadunidense no início dos anos 1960. De acordo com as rígidas baias étnicas desse país, um latino deveria tocar violão, não piano, e assim podemos vê-lo, em vídeo, com Frank Sinatra. Mas ele, claro, não desdenhava do violão; em 1987, a ele voltou, comemorando os 25 anos da introdução da bossa-nova nos Estados Unidos com um concerto no Avery Fisher Hall.

Certamente, não há erro algum em tocar as músicas de Antônio Carlos Brasileiro nesse instrumento para o qual tanto foi escrito de notável na música brasileira, popular e erudita. Carlos Barbosa Lima, Baden Powell, Paulo Bellinati, Raphael Rabelo, o Duo Assad, Arthur Nestrovski estão entre os violonistas que gravaram composições de Jobim.

A essa ilustre linha vem agora incorporar-se Daniel Murray, com Tom Jobim para violão solo. Carioca, nascido em 1981, além de seu trabalho como solista, Murray integra, desde 2009, o Quarteto Tau de violões com Breno Chaves, José Henrique Rosa Campos e Fabio Bartoloni, bem como o Duo Saraiva-Murray, com o violonista e compositor Chico Saraiva, Duo que já se apresentou em Paris, Londres e Portugal.

Daniel Murray lançou em 2008, com patrocínio da Petrobrás, seu primeiro disco solo, …universos sonoros para violão e tape…, que deve ser considerado um documento fundamental não só do violão, como da música contemporânea brasileira. Além de atestar os recursos técnicos do violonista e a audácia intelectual de gravar este repertório, o disco mostra o rico estado da composição erudita no Brasil.

A formação de Murray no violão erudito permite-lhe fazer jus ao que há de Villa-Lobos na música jobiniana, que nada tem de ingênua. Deve-se lembrar da formação do pianista concertista que Jobim um dia quis ser, e também da influência francesa de, por exemplo, Debussy.

E não seria o violão, instrumento para o qual Villa deu notável contribuição, um dos melhores campos para essa aproximação com Jobim, tanto quanto o piano? Em 2010, Daniel Murray tem feito uma série de recitais no Brasil tocando os dois compositores, interpretando o Estudo nº 5 de Villa preceder Garoto, e Gabriela seguir o Estudo nº 7.

Repertório

No disco, somente dedicado ao músico popular, a maior parte dos arranjos foi escrita por Paulo Bellinati; é o caso das canções Por Toda a Minha Vida, Antigua, Chora Coração, Estrada Branca, Garoto, A Felicidade, Bate-Boca, Luíza, Gabriela. Daniel Murray arranjou Valsa sentimental (Imagina), Eu preciso de você, Eu te amo, Tema para Ana. José Edwin Murray fez o arranjo para Chanson pour Michelle.

A escolha do repertório marca-se pela variedade: de canções da adolescência, como Valsa sentimental, criada como peça para piano (só muito depois ganharia a letra de Chico Buarque e se tornaria Imagina), até a década de 1980, como a suíte Gabriela, composta para o filme de Bruno Barreto.

O próprio Jobim, no encarte do disco Serenata, que Bellinati gravou nos EUA, elogiou a gravação que o grande violonista fez dos arranjos de Luíza e Garoto. Murray, no seu disco solo, está à altura desses arranjos e do próprio Bellinati. Nos arranjos de Murray, como em Eu preciso de você, parece que vamos entrar no Prelúdio nº 1 para violão de Villa-Lobos – e eis que se ouve o tema de Jobim. Gestos como esse, no entanto, não se interpõem entre o ouvinte e a música, e sim a iluminam.

No encarte do disco, que sairá no final de 2010, dois grandes músicos brasileiros elogiam o projeto. Maurício Carrilho afirma que “o disco é música o tempo todo, sem concessão de nenhuma espécie. Pra resumir eu acho que você fez o melhor disco do Tom de todos os que eu ouvi…”. Já Fábio Zanon, “ao contrário de tantos projetos que se apropriam de Jobim e desfiguram sua música, Daniel se rende à precisão de sua arte. […] É preciso maturidade para se deixar mimetizar, desta forma, a um compositor, e Daniel aqui se iguala a Jobim em sabedoria artística”.

Que sabedoria é essa? Em princípio, a de uma tradição. Temos aqui a imagem luminosa de Brasil típica da arte de Tom Jobim, o que também a insere na linhagem de Villa-Lobos — e de Ary Barroso, e que torna tão diversa, em termos ideológicos, sua obra de compositores das gerações seguintes, a começar por Chico Buarque (apesar de terem sido parceiros). Se há sombras aqui, são do amor. Mas, com Jobim, aprendemos a viver de amor, e não a dele morrer.
Nas respostas a seguir, dadas em outubro de 2010, Daniel Murray explica como chegou à concepção de Tom Jobim para violão solo.

entrevista

Depois de ter gravado autores eruditos contemporâneos como Kafejian e Silvio Ferraz, por que se voltou para Tom Jobim?

Desde adolescente ficava bastante impressionado com meu tio José Edwin Murray tocando Jobim. Além disso, meu primo Guga Murray, também violonista, que estudava composição na Unesp, trouxe um cd do Panorama Série de Música Eletroacústica organizada pelo compositor Flo Menezes, com quem ele estava estudando. Tive a sensação naquela época que tinha algo que eu deveria fazer a respeito, não sabia se era compor ou tocar. Mais pra frente (dez anos depois!), descobri que era tocar e encomendar obras para violão e eletrônica! Sempre me incomodou ter de escolher entre tocar popular ou erudito. Sempre fiz as duas coisas. Acho que é algo que faz parte da minha formação… Vejo que posso tentar acrescentar algo interessante tanto por um lado quanto por outro. Me sinto bem fazendo isso.

Além de arranjos de sua autoria, o disco apresenta também alguns de Paulo Bellinati (que grava Tom Jobim desde o final do século passado) e José Edwin Murray. O que norteou a escolha desses arranjos? O que guiou sua escolha de repertório?

Conheci o Paulo com uns 14 anos de idade. Tinha acabado de apreender um arranjo dele da Valsa Brasileira, de Edu Lobo, que chegou na casa de minha mãe por fax pro meu Tio Zé. Desde então toco tudo que aparece dele na minha frente. Nesses arranjos, o Paulo conseguiu colocar no violão tanto o piano do Tom quanto as orquestrações do Claus Ogerman. Nos resta apenas tentar tocar! O Paulo nunca teve muito tempo para orientar alunos devido a sua carreira internacional. Mas, recentemente, estudei arranjo e composição com ele e em uma de nossas conversas surgiu este projeto.

Eu revisei o álbum de partituras lançado nos EUA pela Mel Bay, “Antonio Carlos Jobim for Solo Guitar”, em que se encontram nove dos 14 arranjos do disco e mais alguns que ainda não gravei como: Valsa do Porto das Caixas e Surfboard. Tom Jobim teve como fonte direta de inspiração e identificação a obra villalobiana e, seguindo o trilho dos arranjos do Bellinati, procuramos ressaltar este fato nos meus próprios em diversos momentos e gestos sonoros dos estudos e prelúdios do Villa.

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa